JAZZ
DISCOS
PÚBLICO
25 OUTUBRO 2003
Holland e Vitous. Contrabaixistas a ditar as
regras do jogo do jazz. O inglês dispõe dos melhores trunfos.
Contra baixos não
há argumentos
Nos últimos tempos o homem não tem feito outra coisa a
não ser reciclar a sua própria música e a do quarteto que o tem acompanhado desde
1997. Mas dado que o seu nome é Dave Holland, perdoa-se, aceita-se e até se agradece.
“Extended Play” é uma obra monumental em dois CDs, gravado há dois anos no mítico
Birdland de Nova Iorque. As peças, na maioria extraídas de “Prime Directive” e
“Point of View”, têm uma duração tal que só a simples menção dos tempos gastaria
a totalidade do espaço disponível nesta página. Mas mais do que tempo, a música
esbanja qualidade.
A
máquina cardíaca do líder deu a cada músico espaço para respirar e dizer
longamente. Diz Holland que para explorer em larga escala novas formulas para
temas antigos, fazendo delas “veículo para a intuição e a imaginação”.
Potter
mostra-se imparável em “The Balance” e “High wire”, solando “free”. Nelson
prova ser um dos grandes vibrafonistas actuais, sem nunca abusar do pedal de
reverberação, preferindo a clareza e a fluência do ritmo aos registos mais
ambientais. O solo de marimba em “Jugglers parade” é funky, progressivo, misterioso,
hipnótico. Fãs dos Can, há um mundo de jazz, mesmo ao lado, à vossa espera!
Quando Holland faz a sua entrada e o trombone de Eubanks se alarga num
manifesto feito de subtileza mas também de súbitas guinadas para a faixa de
rodagem da experimentação, o swing rola numa montanha-russa.
“Claressence”,
de “Dream of the Elders”, abre o segundo CD numa nota mais “cool”, com Nelson a
chegar-se aos timbres de cristal de Milt Jackson, nos Modern Jazz Quartet.
Potter volta a mostrar até que ponto compareceu a esta sessão em estado de
graça. O seu diálogo com o trombone de Eubanks é de fazer dançar um moribundo. Holland,
o mestre, deixa a sua assinatura lavrada a fogo em “Metamorphos”, imprimindo-lhe
um balanço e equilíbrio sobrenaturais. Abusando ou não da reciclagem, Holland acertou
uma vez mais na “mouche”. “Extended Play” ostenta a novidade e a incandescência
do princípio do mundo. E, porque não, do princípio do jazz. Contra tais factos,
contra o seu baixo, não há argumentos.
Outro
contrabaixista, porventura menos conhecido, mas de não menores méritos, é
Miroslav Vitous, checoslovaco de nascimento, antigo “sideman” de
Miles Davis, membro fundador dos Weather Report e
autor de um magnífico “Journey’s End”, ao lado de John Surman e John Taylor. Em
“Universal Syncopations” rodeou-se de um quartet de “figurões”: Jan Garbarek, Chick
Corea, John McLaughlin e Jack DeJohnette. A capa mostra uma coreografi a de
nuvens e quando os discos da ECM utilizam fotos de coreografias de nuvens já se
sabe que som se há-de esperar. Mais ainda se Jan Garbarek estiver presente na sessão,
pois também se sabe que cores esperar deste saxofonista que progressivamente
foi atafulhando o timbre do seu saxophone com flores e mel (quando toca a
adocicar, Manfred Eicher não perdoa - é a perdição dos diabéticos do jazz).
Pois
bem, o Garbarek destas “síncopes universais” arrepiou caminho até às antigas e
mais espinhosas encruzilhadas de “Dis”. Voltou a curvar nas esquinas. Corea
domina o “som ECM” como se tomasse uma chávena de chá e Vitous aproveita para
se mostrar como o contrabaixista ginasticado e, se a ocasião o justifica,
nevrótico que é. Entre todos os participantes, é o menos conformista, num
programa que junta uma “floresta de bambu, uma “flor do sol”, “Miro bop” (o quintet
acorda! Vitous e DeJohnette sacodem Corea e Garbarek bopa), “Beethoven” e
“ondas brasileiras”. Tudo bonito, tudo certo, tudo extraordinariamente bem
tocado. Sem riscos. A secção rítmica solta, no entanto, as amarras…
“Tribute
to Lester” é uma homenagem ao trompetista Lester Bowie, falecido em 1999, pelos
seus antigos companheiros no Art Ensemble of Chicago. Bowie era o tipo dos
óculos e da bata que punha ordem na selva e orientava os rituais pela bússola
do jazz, dos gritos “free” ao “mardi gras” de Nova Orleães. A justa homenagem que
Roscoe Mitchell, Malachi Favors e Don Moye lhe prestam funcionou como o
despertar de uma longa letargia. O habitual clamor de gongos e sonoridades
exóticas ficou mais focado, embora seja lícito questionar se o solo de flauta barroca,
de Roscoe Mitchell, em “Suite for Lester”, é ou não apenas mais uma das múltiplas
“boutades” extrajazz que os AEC por norma incluem nas suas “performances”. De resto,
há a usual componente sul-africana, “free” do melhor (“As clear as the sun”,
com Mitchell a uivar de dor nos agudos) e uma nova versão de “Tutankhamun”,
onde o solo de saxofone baixo de Mitchell poderia servir de sarcófago para a música
do homenageado. Mas é na improvisação coletiva final, “He speaks to me often in
dreams”, celebrada nos píncaros de uma montanha no Tibete, que os espíritos e
os silêncios falam aos homens.
Espírito
é o que não falta a Lol Coxhill, saxofonista e lunático. Com Coxill é sempre
Natal. Os jazzados da cabeça que escarafuncham noutras paragens escancaram um sorriso
tão largo como o do gato das histórias de Alice só de imaginarem o desempenho
delirante deste saxofonista na obra-prima do rock progressivo excêntrico dos
anos 70, “Shooting at the Moon”, de Kevin Ayers. Lol Coxhill poderia ser o
chapeleiro maluco. “Ear of the Beholder” (com uma impensável formação composta por
Burton Greene, Jasper Van’t Hoff, Pierre Courbois e David Bedford) é outro
álbum do saxofonista careca que os puristas do jazz menosprezam e os loucos do
Progressivo veneram.
Coxhill
aparece em “Coxill Street” a convite do guitarrista George Burt e do
saxofonista alto e soprano, Raymond MacDonald. Música improvisada, bruta,
enformada pelas angulosidades da guitarra, que Coxill aproveita para levar o saxophone
soprano à histeria e recorrer às técnicas de multifonia que tão bem domina.
Toca-se com a convicção dos iluminados, encarcerados num mundo fechado sobre si
mesmo, porém fascinante para quem ousar abrir a porta e dar de caras com a
loucura. O chapeleiro louco está nas suas sete quintas, claro.
Ainda
no campo da improvisação limítrofe, “Imaginings”, de Frances-Marie Uitti, no violoncelo,
e Jonathan Harvey, nos sintetizadores, desenvolve-se no sentido do
impressionismo . “Exploração de timbres” e emprego de técnicas extensivas fazem
parte do léxico destes dois executantes com larga experiência na música eletroacústica
(Harvey trabalhou no IRCAM, a convite de Boulez), indicativos dos parâmetros
que subjazem à criação de “Imaginings” – painel de sons fantasmagóricos, electrónica
residual, drones e ocasionais ruturas num “continuum” elaborado a partir de
diversas linhas de tensão/clivagem sustentadas pelos dois músicos. O que é que o
jazz tem que ver com tudo isto? Nada! Mas em que outro espaço poderíamos
escrever sobre este disco?...
DAVE HOLLAND
QUINTET
Extended Play
ECM, distri. Dargil
9 | 10
MIROSLAV VITOUS
Universal Syncopations
ECM, distri. Dargil
7 | 10
ART ENSEMBLE OF
CHICAGO
Tribute to Lester
ECM, distri. Dargil
8 | 10
THE GEORGE
BURT/RAYMOND MacDONALD QUARTET c/LOL COXHILL
Coxhill Street
FMR, distri. Sonoridades
7 | 10
FRANCES-MARIE UITTI
& JONATHAN HARVEY
Imaginings
Sargasso, distri. Sonoridades
7 | 10
Sem comentários:
Enviar um comentário