20/11/2019

Contra baixos não há argumentos [Jazz]


JAZZ
DISCOS
PÚBLICO 25 OUTUBRO 2003

Holland e Vitous. Contrabaixistas a ditar as regras do jogo do jazz. O inglês dispõe dos melhores trunfos.

Contra baixos não há argumentos


Nos últimos tempos o homem não tem feito outra coisa a não ser reciclar a sua própria música e a do quarteto que o tem acompanhado desde 1997. Mas dado que o seu nome é Dave Holland, perdoa-se, aceita-se e até se agradece. “Extended Play” é uma obra monumental em dois CDs, gravado há dois anos no mítico Birdland de Nova Iorque. As peças, na maioria extraídas de “Prime Directive” e “Point of View”, têm uma duração tal que só a simples menção dos tempos gastaria a totalidade do espaço disponível nesta página. Mas mais do que tempo, a música esbanja qualidade.
            A máquina cardíaca do líder deu a cada músico espaço para respirar e dizer longamente. Diz Holland que para explorer em larga escala novas formulas para temas antigos, fazendo delas “veículo para a intuição e a imaginação”.
            Potter mostra-se imparável em “The Balance” e “High wire”, solando “free”. Nelson prova ser um dos grandes vibrafonistas actuais, sem nunca abusar do pedal de reverberação, preferindo a clareza e a fluência do ritmo aos registos mais ambientais. O solo de marimba em “Jugglers parade” é funky, progressivo, misterioso, hipnótico. Fãs dos Can, há um mundo de jazz, mesmo ao lado, à vossa espera! Quando Holland faz a sua entrada e o trombone de Eubanks se alarga num manifesto feito de subtileza mas também de súbitas guinadas para a faixa de rodagem da experimentação, o swing rola numa montanha-russa.
            “Claressence”, de “Dream of the Elders”, abre o segundo CD numa nota mais “cool”, com Nelson a chegar-se aos timbres de cristal de Milt Jackson, nos Modern Jazz Quartet. Potter volta a mostrar até que ponto compareceu a esta sessão em estado de graça. O seu diálogo com o trombone de Eubanks é de fazer dançar um moribundo. Holland, o mestre, deixa a sua assinatura lavrada a fogo em “Metamorphos”, imprimindo-lhe um balanço e equilíbrio sobrenaturais. Abusando ou não da reciclagem, Holland acertou uma vez mais na “mouche”. “Extended Play” ostenta a novidade e a incandescência do princípio do mundo. E, porque não, do princípio do jazz. Contra tais factos, contra o seu baixo, não há argumentos.
            Outro contrabaixista, porventura menos conhecido, mas de não menores méritos, é Miroslav Vitous, checoslovaco de nascimento, antigo “sideman” de
Miles Davis, membro fundador dos Weather Report e autor de um magnífico “Journey’s End”, ao lado de John Surman e John Taylor. Em “Universal Syncopations” rodeou-se de um quartet de “figurões”: Jan Garbarek, Chick Corea, John McLaughlin e Jack DeJohnette. A capa mostra uma coreografi a de nuvens e quando os discos da ECM utilizam fotos de coreografias de nuvens já se sabe que som se há-de esperar. Mais ainda se Jan Garbarek estiver presente na sessão, pois também se sabe que cores esperar deste saxofonista que progressivamente foi atafulhando o timbre do seu saxophone com flores e mel (quando toca a adocicar, Manfred Eicher não perdoa - é a perdição dos diabéticos do jazz).
            Pois bem, o Garbarek destas “síncopes universais” arrepiou caminho até às antigas e mais espinhosas encruzilhadas de “Dis”. Voltou a curvar nas esquinas. Corea domina o “som ECM” como se tomasse uma chávena de chá e Vitous aproveita para se mostrar como o contrabaixista ginasticado e, se a ocasião o justifica, nevrótico que é. Entre todos os participantes, é o menos conformista, num programa que junta uma “floresta de bambu, uma “flor do sol”, “Miro bop” (o quintet acorda! Vitous e DeJohnette sacodem Corea e Garbarek bopa), “Beethoven” e “ondas brasileiras”. Tudo bonito, tudo certo, tudo extraordinariamente bem tocado. Sem riscos. A secção rítmica solta, no entanto, as amarras…
            “Tribute to Lester” é uma homenagem ao trompetista Lester Bowie, falecido em 1999, pelos seus antigos companheiros no Art Ensemble of Chicago. Bowie era o tipo dos óculos e da bata que punha ordem na selva e orientava os rituais pela bússola do jazz, dos gritos “free” ao “mardi gras” de Nova Orleães. A justa homenagem que Roscoe Mitchell, Malachi Favors e Don Moye lhe prestam funcionou como o despertar de uma longa letargia. O habitual clamor de gongos e sonoridades exóticas ficou mais focado, embora seja lícito questionar se o solo de flauta barroca, de Roscoe Mitchell, em “Suite for Lester”, é ou não apenas mais uma das múltiplas “boutades” extrajazz que os AEC por norma incluem nas suas “performances”. De resto, há a usual componente sul-africana, “free” do melhor (“As clear as the sun”, com Mitchell a uivar de dor nos agudos) e uma nova versão de “Tutankhamun”, onde o solo de saxofone baixo de Mitchell poderia servir de sarcófago para a música do homenageado. Mas é na improvisação coletiva final, “He speaks to me often in dreams”, celebrada nos píncaros de uma montanha no Tibete, que os espíritos e os silêncios falam aos homens.
            Espírito é o que não falta a Lol Coxhill, saxofonista e lunático. Com Coxill é sempre Natal. Os jazzados da cabeça que escarafuncham noutras paragens escancaram um sorriso tão largo como o do gato das histórias de Alice só de imaginarem o desempenho delirante deste saxofonista na obra-prima do rock progressivo excêntrico dos anos 70, “Shooting at the Moon”, de Kevin Ayers. Lol Coxhill poderia ser o chapeleiro maluco. “Ear of the Beholder” (com uma impensável formação composta por Burton Greene, Jasper Van’t Hoff, Pierre Courbois e David Bedford) é outro álbum do saxofonista careca que os puristas do jazz menosprezam e os loucos do Progressivo veneram.
            Coxhill aparece em “Coxill Street” a convite do guitarrista George Burt e do saxofonista alto e soprano, Raymond MacDonald. Música improvisada, bruta, enformada pelas angulosidades da guitarra, que Coxill aproveita para levar o saxophone soprano à histeria e recorrer às técnicas de multifonia que tão bem domina. Toca-se com a convicção dos iluminados, encarcerados num mundo fechado sobre si mesmo, porém fascinante para quem ousar abrir a porta e dar de caras com a loucura. O chapeleiro louco está nas suas sete quintas, claro.
            Ainda no campo da improvisação limítrofe, “Imaginings”, de Frances-Marie Uitti, no violoncelo, e Jonathan Harvey, nos sintetizadores, desenvolve-se no sentido do impressionismo . “Exploração de timbres” e emprego de técnicas extensivas fazem parte do léxico destes dois executantes com larga experiência na música eletroacústica (Harvey trabalhou no IRCAM, a convite de Boulez), indicativos dos parâmetros que subjazem à criação de “Imaginings” – painel de sons fantasmagóricos, electrónica residual, drones e ocasionais ruturas num “continuum” elaborado a partir de diversas linhas de tensão/clivagem sustentadas pelos dois músicos. O que é que o jazz tem que ver com tudo isto? Nada! Mas em que outro espaço poderíamos escrever sobre este disco?...

DAVE HOLLAND QUINTET
Extended Play
ECM, distri. Dargil
9 | 10

MIROSLAV VITOUS
Universal Syncopations
ECM, distri. Dargil
7 | 10

ART ENSEMBLE OF CHICAGO
Tribute to Lester
ECM, distri. Dargil
8 | 10

THE GEORGE BURT/RAYMOND MacDONALD QUARTET c/LOL COXHILL
Coxhill Street
FMR, distri. Sonoridades
7 | 10

FRANCES-MARIE UITTI & JONATHAN HARVEY
Imaginings
Sargasso, distri. Sonoridades
7 | 10

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