Y 10|OUTUBRO|2003
música|robert wyatt
voando sobre um ninho de cucos
Irónico, apaixonado,
solitário e solidário, reconciliado com a vida. Assim é Robert Wyatt, um dos
resistentes dos anos 70 que insiste, a cada novo disco, em nos atirar à cara
uma obra-prima. A última chama-se Cuckooland – metáfora de um mundo cada vez
mais dominado pela solidão.
Aos 58 anos, Robert Wyatt é um dos mais respeitados músicos da atualidade.
O seu novo álbum, “Cuckooland”, junta mais um pedaço de genialidade a uma obra
que começou no free jazz, prosseguiu com a aventura psicadélica dos primeiros
Soft Machine e nas desfocagens pop dos Matching Mole e, finalmente, cicatrizou
as feridas do infortúnio numa carreira a solo de que se não conhecem pontos
fracos e da qual resultou uma das obras-primas deste século, “Rock Bottom”.
Wyatt, o
ideólogo e o esteta, o Che Guevara da música popular e o humanista terno, traça
a rota de uma viagem solitária ao mesmo tempo capaz de sublimar a nostalgia do
passado e de se projetar num futuro ao qual continuam a não faltar motivações.
Acima de tudo, em “Cuckooland” ressalta a ideia de um homem e de um músico que
soube adaptar-se e transcender a mudança dos tempos, e desatar os nós de si
próprio, ao seguir as correntes de uma lógica feita de humor, inteligência e
emoção. Não é jazz, nem pop, nem canção de autor – pelo menos das que estamos habituados.
É o fascinante mundo de Robert Wyatt, o ex-baterista que continua a marcar a cadência
dos corações que lutam.
O Y conversou,
via telefone, com ele, percorrendo de A a Z tópicos relacionados com o disco e
com a sua personalidade.
ARTE
Cirurgia
plástica
BENGE (Alfreda), sua mulher, autora da capa e das letras de “Cuckooland”
– a nova capa é diferente das pinturas ilustrativas que a sua mulher desenhou
para os álbuns anteriores…
Não sei como
ela faz. Neste álbum desenhou uma coisa mais hieroglífica.
CORNETA – tocou pela primeira vez este instrumento no novo disco, mas os
teclados continuam a soar bastante “cheap”
É uma trompete
que se pode tocar dentro de casa, uma trompete íntima. Quanto aos teclados, usei
material novo da Yamaha para fazer uma espécie de jacuzzi onde mergulhei as
canções.
DEATH (morte)
Ah, isso… Está sempre a
acontecer, não é? Mas não normalmente às pessoas que gostaríamos… (risos). Não
me preocupa, graças a Deus, é algo que não se pode separar da vida, da mesma
forma que não se pode separar a noite do dia. Alguns poetas falaram da
quantidade de pequenas mortes que antecedem “the big one”. De qualquer forma, depois
de morrermos, a vida continua…
ENO (BRIAN) tem uma participação neste disco simbólica. Em “Tom Hay’s fox”
deixou-o tocar apenas a “última nota”…
O escritório de
Brian fica perto de minha casa e um dia passou por lá de bicicleta. É um tipo
muito “low tech”. A presença dele no disco é difícil de definir... É um
entusiasta… Durante as gravações decidiu de repente que queria viajar até ao
Brasil, a seguir fez um “tour” de bicicleta pelo Sul de França. De qualquer
forma foi uma participação valiosa. Quanto a essa “última nota”, foram na verdade
duas ou três, embora lhe tivesse dado inteira liberdade para tocar a última
(risos). É uma nota linda!
FOREST tema de “Cuckooland”. Uma valsa enigmática
Inspirei-me
numa melodia da Europa Central, na fronteira entre a Polónia e a
Checoslováquia, uma região recheada de memória de florestas. Escolhi um
compasso de valsa por ser uma cadência tipicamente europeia, introduzida no continente
pelos ciganos, antes de se tornar uma dança respeitável para os músicos
clássicos. A floresta tem duplo sentido: pode ser um local maravilhoso mas
também onde se escondem as vítimas, pessoas perigosas… E lobos… Um local de
magia. Branca e negra.
GILMOUR (DAVID) guitarrista em “Forest”
Conheço-o há
anos, tocámos juntos nos mesmos sítios [quando os Soft Machine e os Pink Floyd
formavam o par de bandas mais importantes da pop psicadélica em Inglaterra].
Voltei a encontrá-lo há dois anos, quando o convidei para tocar num festival
que organizei em Londres. No final perguntou-me se estava interessado nos seus
serviços…
HIROSHIMA tema
da faixa “Foreign accents”
O
bombardeamento de Hiroshima constituiu o supremo ato de hipocrisia pelos
poderes ocidentais, numa altura em que hoje tanto falam nos perigos das armas
de destruição maciça. A ideia de que só os outros povos têm essa
responsabilidade e as nações ocidentais não, é de um racismo absoluto.
IRAQUE em “Lullaby for Hamza”
… Que antes se
chamava Mesopotâmia. Entre o Iraque e o Irão situa-se o berço da civilização ocidental.
As pessoas falam de Roma e na Grécia quando, na verdade, as primeiras
civilizações nasceram na Mesopotâmia, na Pérsia, etc. Só este facto já é sufi
ciente para que o Ocidente tenha um pouco mais de respeito.
JOBIM (ANTÓNIO CARLOS) autor de “Insensatez”, adaptado por Wyatt à língua inglesa
A bossa-nova é
um dos géneros musicais com mais pontos em comum com o jazz. Uma das poucas
músicas exteriores aos EUA que fascinaram os músicos americanos, em parte,
devido ao facto da língua portuguesa, falada nas antigas colónias, por exemplo,
ter desenvolvido musicalmente um leque harmónico que se ajusta bem ao jazz.
Adoro a sofisticação do português da América Latina, bem como o espanhol de
Cuba ou da Argentina. Mas essa riqueza é única no Brasil. Tentei enfatizar essa
beleza harmónica. Depois, achei sempre que a voz de Karen Mantler se parece um
pouco com a de Astrud Gilberto e quis verificar se era verdade (risos).
Infelizmente não consigo cantar em português. É difícil. “Insensatez” é a única
palavra nesta língua que consegui usar até agora!
KAREN (MANTLER) filha
de Carla Bley, com quem Wyatt tocou numa série de álbuns. Adora mesmo esta
família, não é verdade? E já agora, o que é o “Karenotron” que vem mencionado
na ficha técnica?
Adoro esta
família, exatamente. Sempre me dei bem, com os pais dela [o trompetista Michael
Mantler]. Carla escreveu canções maravilhosas, por vezes arrepiantes. E foi uma
honra trabalhar com Michael Mantler e ver crescer a sua filha, nos últimos 30
anos, até se tornar numa música adorável. Penso que somos ambos influenciados pela
sua mãe.
O Karenotron é
um Mellotron onde foram inseridas apenas cassetes com a voz de Karen. Pedi-lhe
para cantar uma escala inteira, que depois alarguei, nos graves e nos agudos,
para registos mais bizarros. Tudo tocado num teclado, como num Mellotron.
MADAME “Cuckoo
madame”, tema central do álbum
É realmente um
cuco, as pessoas não acreditam! Alfie [Alfreda Benge] escreveu este poema ao
ver um cuco fêmea à procura de um sítio para pôr os ovos e depois partir. Após
uma reação normal de agressividade, por pensar nos cucos como vítimas, acabou
por meditar em como, de facto, é estranha a vida de um cuco – não conhece nem
os pais nem os filhos e parte sozinho para África, todos os anos. Que vida solitária!
Deve haver uma razão evolucionista para explicar este comportamento. Algumas teorias
explicam que é por não haver cucos machos sufi cientes para ficarem a tomar
conta dos mais novos…Toda a gente conhece alguém parecido com um cuco…
NEITHER HERE…” + “…NOR THERE” as duas partes distintas em que Wyatt dividiu o disco, separadas
por uma faixa de silêncio.
Porque existe
uma banalidade nas identidades que nos são atribuídas, nacionalistas ou religiosas.
O que é que isso significa no mundo moderno? Um mundo em que tudo é regido por
uma economia global.
Depois, era
para ter saído como um CD duplo, mas era muito caro, daí ter optado por essa
separação, com um intervalo de silêncio, e aproveitar o dinheiro para dispor de
mais tempo no estúdio.
OLD EUROPE Paris, o romance entre Miles Davis e Juliette Gréco…
Adoro a velha
Europa, sou um velho europeu, sem que isto signifique qualquer atitude de patriotismo.
É mais um sonho romântico sobre uma Europa cosmopolita, cheia de nostalgia e
fantasmas simpáticos (outros menos…) mas ainda na dianteira, no que diz
respeito à “avant-garde”, a novas ideias e a recetividade, mesmo em comparação
com a cultura americana. Acaba por não fazer sentido a divisão entre uma Europa
“velha” e outra “nova”, divisão só possível nas cabeças de políticos amnésicos
e de jornalistas condescendentes…
Tanto eu como
Alfie estivemos em Paris durante a adolescência. É uma cidade maravilhosa onde descobri
uma quantidade de coisas. Tudo o que existe sobre esta cidade nos filmes, nos
discos ou em poemas é verdade. É uma cidade viva, com o drama e os estímulos
que descobri, por exemplo, nos livros que li sobre Picasso.
PIANO que toca em solo absoluto no tema “Raining in my heart”
Pertence a Phil
Manzanera, gravei-o no apartamento dele. É um instrumento curioso, arcaico, dos
anos 30, a imitar “art nouveau”. Pedi ao Phil para o gravar, limpámos-lhe a
poeira… Tem um som estranho que adorei…
RATLEDGE Mike, ex-companheiro nos Soft Machine. A questão que todos
pretendem ver respondida: que é feito de Mike Ratledge?
Tornou-se um
empresário de sucesso. No ramo de anúncios para TV. Aproveitou os lucros
obtidos com os Soft Machine para entrar no negócio, com o seu sócio, Karl
Jenkins [outro antigo membro do grupo]. Foram eles que ficaram com todo o dinheiro
dos Soft Machine. E quero dizer mesmo “todo”!
SETEMBRO, 11
Essa data
tornou-se famosa, como todos sabem, por ser o dia em que os americanos puseram no
poder o general Pinochet, nos anos 70, e também o dia em que Salvador Allende
foi assassinado pelo exército fascista a soldo dos EUA.
TRICKLE DOWN a faixa mais jazzy do álbum.
Sim, mas um
jazz anacrónico. O baixista disse que nunca tinha feito um disco com swing… É notório
que sinto uma nostalgia pelo jazz de há 50 anos, adoro swingar mas ao mesmo
tempo procurei voltar o conceito do avesso. Os címbalos e a secção rítmica são
o acontecimento principal, enquanto os solos são como fragmentos espalhados, relegados
para segundo plano.
VIDA
A vida?... Sssimmm…
bem… nunca esperei saber alguma coisa sobre ela. Tenho três netas e a esperança
de que as próximas gerações endireitem as coisas. Sinto-me impressionado ao ver
como pessoas atacadas e pressionadas por todo o lado continuam a conseguir
divertir-se e a ter uma vida boa, sejam vietnamitas, palestinianas ou ciganas. Às
vezes pergunto-me porquê, mas suponho que tudo tem a ver com uma força
extraordinária. Seja qual for o local e as circunstâncias, há sempre algo que
consegue nascer e crescer. Mesmo num deserto. Mesmo num muro.
WELLER (PAUL) guitarrista em “Lullaloop”
Alfie já tinha
composto o tema, o único feito todo no estúdio e o primeiro inteiramente da sua
autoria, quando Paul apareceu, só para cumprimentar (também vive ao nosso
lado). É uma das vantagens de ter um estúdio no mesmo local onde vivem
celebridades. As pessoas podem pensar que é uma colaboração estranha mas temos
um “background” semelhante. Ambos nos rotinamos a cantar a música negra dos
anos 50 e 60.
YOU (TU). Como se sente, agora que está a completar 40 anos de carreira?
Satisfeito por
ainda estar aqui, até porque não tenho tido muito cuidado (risos). Fico cansado
mais facilmente mas, à parte isso, as coisas estão melhores do que alguma vez
estiveram. Os músicos com quem trabalho são bons, a Alfie ajuda-me e eu ajudo-a
a ela, estou numa editora ótima… Tive sorte por ter chegado a uma situação em
que me sinto confortável.
ZZZZZZZ (DE SONO)
(risos) Sim,
absolutamente, é a minha atividade preferida. Muitas pessoas dizem que o sono
não passa de uma preparação para as atividades do dia. Para mim, é o contrário.
Atividades diárias como comer, reproduzirmo-nos ou dizer ‘olá’, são reparativos
para o verdadeiro propósito da vida que é cair ditosamente no sono.
valsa para um homem só
As primeiras notas de “Just a bit” poderiam
pertencer a uma versão para funeral de “Música no Coração”. E é disso que se
trata. As palavras, aquelas palavras que noutras gargantas soariam a lamentos
de um velho senil mas que caso de Wyatt irrompem como emanações de uma
personalidade que sublimou a dor e a solidão, fazendo delas seus amigos
íntimos, pulsam como os batimentos de um coração ferido. “I’m as mad as any
hatter, I feel safer touching wood” canta, sobre o tal jacuzzi de sintetizadores
que banham e afogam cada sílaba num dilúvio de melancolia. Como quase todos os discos
do ex-Soft Machine desde “Rock Bottom”, desprende-se da música uma tristeza
feita em partes iguais de ternura, lucidez e resignação. Acompanhado por músicos
como Annie Whitehead e Karen Mantler, Wyatt encarrega-se, como vem fazendo a
partir de “Ruth is Stranger than Richard”, a partir o jazz aos bocadinhos, cada
um deles correspondente a um pedaço de espelho que apenas reflete uma parcela de
uma verdade mais vasta. Naipes de sintetizadores girando no Ocaso, saxofones do
princípio do século, valsas da Europa romântica onde Miles Davis corteja Juliette
Gréco, uma inusitada intromissão guitarrística de rock-vaudeville de Paul
Weller, a par dos habituais disparos (sem o estampido de manifestos como “Nothing
can Stop Us”) contra o imperialismo e a injustiça, tudo encaixa no lugar que
este homem determina como sendo o certo, ou seja, o seu, por mais que diga
estar “Neither here..” e “…Nor there”.
Os cucos são aves solitárias. Ao escutarmos de
lágrimas nos olhos (porque a Beleza tem que ter este efeito nas almas dos que
estão vivos), esta voz que parece volatizar-se por trás das nuvens, este oceano
de melodias que limpam e redimem de uma vez por todas as banalidades que
infestam a pop, imaginamos a figura de um homem dobrado sobre os seus sonhos,
medos e esperanças, sentado à mesa, sozinho, a beber chá, no meio de um prado
outonal. Mesmo na orla da floresta, como a de “Forest”, onde se escondem estranhas
maravilhas mas também as vítimas e os lobos – valsa definitiva dos génios e dos
loucos, marcha dos anjos decaídos. Mas anjos, apesar de tudo.
Um dos discos do ano.
ROBERT WYATT
Cuckooland
Hannibal, distri. Edel
10|10
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