03/12/2008

"And now, for something completely different..." [Monty Python]

PÚBLICA

24 Novembro 1996

“And now, for something completely different...”

John Cleese era a figura com maior carisma dos Monty Python, o mais fantástico grupo de humoristas de todos os tempos. Monty Python’s Flying Circus, a série de televisão que os tornou célebres do mundo subatómico aos confins da galáxia, está a partir de agora disponível no mercado vídeo de venda directa. Será que o Governo português vai cometer o mesmo erro que o seu congénere britânico cometeu há 25 anos e “gastar menos dinheiro com o Ministério dos Passos Disparatados do que com a Defesa Nacional?” John Cleese “dixit”.

Um homem de gabardina, John Cleese, entra numa loja de animais para protestar. Venderam-lhe um papagaio morto. O vendedor, Michael Palin, procura a todo o custo convencê-lo de que o animal está apenas a dormir. O homem bate com a ave várias vezes no tampo do balcão. “Está morto, faleceu, finou-se, bateu a bota, deu o berro, entregou a alma ao criador!” O outro insiste: “Não, não! Está a dormir!” magnífica metáfora sobre a condição humana. E um dos “sketches” emblemáticos dos Monty Python e do seu Flying Circus, série que a RTP exibiu recentemente e cujo primeiro pacote se encontra a partir de agora disponível no mercado vídeo de venda directa.
O “sketch” do papagaio, como é conhecido, tem, à semelhança de muitos outros, o seu “script” totalmente transcrito para uma das várias páginas da Internet dedicadas aos Monty Python, a maior “troupe” de humor de todos os tempos. Mestres absolutos do “nonsense”, o humor dos Monty Python marcou a sua época, entre 1969 e 1974, cinco anos que abalaram o tradicional conservadorismo britânico através da série televisiva Monty Python’s Flying Circus.
O impacte atingiu Portugal dois anos a seguir ao 25 de Abril, em 1976, criando-se desde logo um fenómeno de culto, reforçado na década seguinte, com uma primeira reposição, interrompida a meio. Este ano, os Monty Python regressaram pela terceira vez aos ecrãs nacionais, com a exibição diária da série, na RTP1, que, uma vez mais, não respeitou a sua ordem cronológica nem contemplou a totalidade dos episódios.
Pior ainda, talvez com receio de chocar ou ferir susceptibilidades (passado um quarto de século, a televisão do Estado ainda tem destes medos!), a castidade dos programadores levou-os a arrumar, é o termo, este monumento ao humor universal num horário obsceno, já de madrugada e com a agravante de o retalhar com odiosos intervalos. Decerto em nome dos bons costumes e com a pia intenção de poupar o grande público à iconoclastia e à influência nefasta que o grupo poderia exercer sobre as mentes da nossa juventude.
Os que eram fanáticos, claro, não perderam um episódio, mantendo-se firmes no seu posto, nem que tivessem de esperar até às quatro da manhã. Ou então ligando o gravador. É que tão bom como ver pela primeira vez um episódio dos Monty Python é revê-lo vezes infinitas. Mas os novos, os desconhecedores, todos os que não tiveram nem o privilégio nem a felicidade de ter conhecido a obra dos Monty Python ficaram a perder. Porque ainda estavam mortos? Não, porque estavam a dormir!...
A partir de agora, porém, toda a gente vai poder desfrutar em casa do humor dos Monty Python. Para os tais fanáticos – pois não se pode gostar dos Monty Python de outra maneira, quem não os venera detesta-os – é a oportunidade de conservar para a posteridade, nas melhores condições técnicas, o objecto da sua devoção. Para levar para casa, existe, para já, um primeiro volume, contendo os primeiros quatro episódios da primeira série: 126 minutos de delírio, de génio, de pura religião com o seu templo e os seus sumo sacerdotes, contendo “sketches” clássicos como (só a menção dos títulos, provoca um júbilo irreprimível) “Artur ‘duas cabanas’ Jackson”, “A anedota mais engraçada do mundo”, “O homem com três nádegas”, “O problema do rato”, o antológico “sketch” “do Restaurante”, “Cotoveladas” ou “Autodefesa”. Todos sublimes. Todos capazes de enviar um cérebro inteligente para o hiperespaço do riso. Aliás, os tradutores encontraram bons títulos descritivos, como “Palestra francesa sobre carneiros aeronaves” ou “No tribunal (testemunha no caixão/cardeal Richelieu)”, opção deliberadamente esotérica, dirigida, em primeiro lugar, aos iniciados.
Formavam os Monty Python cinco personalidades únicas: John Cleese, Eric Idle, Micahel Palin, Graham Chapman e Terry Jones. Um sexto elemento, Terry Gilliam, era o responsável pelas montagens animadas da série, embora também tivesse esporádicas participações como actor. Mais tarde viria a notabilizar-se na realização, através de filmes como “Brazil”, “O Rei Pescador” ou o recente “12 Monkeys”. Neil Innes, do grupo cómico musical Bonzo Dog Doo Dah Band, e Carol Cleveland foram dois dos convidados mais assíduos. Graham Chapman – o “Brian” da longa-metragem do grupo “A Vida de Brian” – já morreu.
Com o fim da série, que mantiveram intermitentemente durante cinco anos na BBC, iniciaram um novo período de actividade, durante o qual, ainda como Monty Python, fizeram quatro longas-metragens, qualquer delas histórica, “And now for Something Completely Different…”, de 1971, inédito em Portugal, “O Cálice Sagrado”, de 1975, “A Vida de Brian”, de 1979, e “O Sentido da Vida”, de 1983. A partir daí, cada um seguiu uma carreira em separado, com esporádicas associações em filmes ou documentários.
O conjunto total com o genérico Monty Python’s Flying Circus – atenção, tomem nota, para não deixar escapar nada – divide-se em quatro períodos temporais, correspondentes a outras tantas séries de programas. A primeira foi para o ar na BBC a 5 de Outubro de 1969, aí se mantendo até 11 de Janeiro de 1970. É constituída por 13 episódios. A segunda é formada pelos episódios 14 a 26 que estiveram em exibição entre 15 de Setembro e 22 de Dezembro de 1970. A terceira, com os episódios 27 a 39, durou de 19 de Outubro de 1972 a 18 de Janeiro de 1973. A quarta e última, episódios 40 a 45 (sem John Cleese), encerrou o ciclo, entre 31 de Outubro e 5 de Dezembro de 1974. Existem ainda mais dois episódios adicionais, gravados para a televisão alemã, de genérico “The German Episodes”. No total, uma obra com a dimensão e a importância de “Guerra e Paz”, “O Anel dos Nibelungos”, a Enciclopédia Britânica e sexo.
Sim, o SEXO. Os Monty Python reinventaram o sexo para o destruir e reinventar de novo e redestruir e… como reinventaram a religião para a destruir, para… e a política, e o desporto, e a arte, e os papagaios, e os juízes, que eram sempre “travestis”, e os polícias, e os ingleses, e os franceses, e os escoceses, sobretudo os escoceses, de Johann Gombolputty – dois minutos de apelidos – von Hautkopff of Ulm, e a Inquisição (“Nobody expects the Spanish Inquisition”, tchatcham!) e tudo o mais que existe à face da Terra, sem esquecer Ken Buddha e os seus joelhos insufláveis. E até, escândalo dos escândalos, a rainha. Sim, um dos episódios, dos mais ordinários e com o humor mais negro, mesmo próximo do mau-gosto, da série, é-lhe especialmente dedicado. O “sketch” que encerra este episódio é mais ou menos assim. Trata-se de um diálogo entre um cliente (John Cleese) e o empregado de uma agência funerária. Cliente – A minha morreu. Empregado – É para enterrar, cremar ou deitar fora? Cliente (hesitante) – Bem… Empregado – Trá-la consigo? (o cliente acena com a cabeça e atira com um cesto para cima do balcão). Já considerou a hipótese de a comer, temos um belo forno… Cliente (ainda hesitante) – De facto, tenho alguma fome, mas não sei se… E se me sentir mal? Empregado – Não há problema, pode vomitar que nós depois apanhamos e atiramos para a cova. Fim do “sketch”. Com dedicatória a sua majestade.
Mas o humor dos Monty Python é uma moeda com mais de duas faces. A sua essência está no talento para extrair humor de qualquer faceta da vida, por mais ínfima que seja. Os Monty Python inventavam a vida. Tudo, mas mesmo tudo, era usado como fonte de gargalhada ou sorrisos. De transgressão. Puro gozo interior. O êxtase supremo de quem está a fazer humor é ter ao mesmo tempo consciência dele próprio no próprio instante em que está a ser criado. Deste modo se explica o caos estrutural, por vezes no limite do aleatório, que anima e sustenta alguns episódios da série. Nestes, um “sketch” confunde-se, transforma-se ou alterna com outros, aniquilando toda e qualquer espécie de lógica narrativa ou de linearidade temporal. Ladrões do tempo. O intervalo tanto podia surgir no princípio como no fim. Episódios inteiros terminavam antes do tempo (!), com o restante preenchido com interlúdios que tanto podiam ser o ecrã completamente negro, como o logotipo da BBC ou John Cleese dentro de uma armadura, passeando numa praia deserta com um frango depenado na mão.
Além do mais, os cinco Monty Python eram extraordinários actores. Vale a pena visionar vezes sem conta cada episódio só pelo prazer de saborear as entoações, as expressões e os pequenos gestos das personagens, segundo uma espontaneidade encenada ao pormenor. Monty Python’s Flying Circus é o humor na sua expressão mais elevada. Cada vez que a série é reposta, cada cena vista e revista centenas de vezes, apresenta sempre algo de novo, numa pluralidade incontável de níveis de leitura. Mesmo antes, há já uma antecipação emocional, uma comoção estética que apenas os fãs dos Monty Python compreendem e sentem. Melhor do que ver um episódio dos Monty Python só discutir um episódio dos Monty Python. Quando dois fanáticos dos Monty Python se encontram para conversar sobre os seus heróis, sentem-se unidos por um elo iniciático. O riso transforma-se num acto sagrado. Os Monty Python pertencem ao domínio do sagrado. A mesma impressão de sagrado que sentiram os milhares de fiéis que nos dias 26, 27, 28 e 29 de Setembro de 1980 se reuniram no Hollywood Bowl, para assistir a uma memorável apresentação do grupo, ao vivo, num espectáculo cuja síntese também se encontra gravada em cassete vídeo no mercado português. “Albatross!”
Perdoem-me se me excedi.
Mas nós sabemos que entre os deuses vivia, e continua a viver, um deus maior. Silêncio. Chama-se John Cleese. A simples menção do nome provoca arrepios de prazer. John Cleese é o mago. O dominador absoluto da arte de fazer rir da forma mais inteligente. John Cleese está marcado pelo humor desde que nasceu, em 27 de Outubro de 1939, em Weston-Supermare (dava um belo título para um “sketch”), no Somerset. O pai chamava-se Reginald Francis Cheese (“queijo”), mudando o apelido para Cleese quando entrou para o exército. Cleese recebeu tratamento psiquiátrico, escreveu livros e continua a representar no cinema. Em televisão, depois de Monty Python’s Flying Circus, realizou com a sua mulher Connie Booth e interpretou a série Fawlty Towers, também já exibida na televisão portuguesa. Quem não se lembra de Manoel, o impagável empregado espanhol da pensão, ou do episódio dos nazis?
Participou como actor, entre outros filmes, em “Os Ladrões do Tempo”, “Clockwise”, “Silverado”, “Um Peixe Chamado Wanda”, “Erik the Viking: The Book of the Film of the Book” e, mais recentemente, tem uma aparição esporádica no “Frankenstein”, de Kenneth Brannagh. No teatro, ainda hoje representa Shakespeare. No registo mais sério que se possa imaginar. Realizou o vídeo “Como Irritar as Pessoas” (“o segredo é dar a entender que não se faz de propósito”…).
John Cleese sente-se particularmente à vontade no papel de psicopata ou em todas as personagens que envolvam histeria. Não resistimos a descrever duas cenas memoráveis, ilustrativas desta sua faceta. Uma é o “sketch” em que faz de instrutor numa aula de autodefesa contra peças de fruta. O seu grito de desafio para um dos alunos, “Hit me with a banana!”, faz parte da História. Outra é uma sequência inteira de “Cálice Sagrado”, quando invade, alucinado, um encantador casamento que se está a celebrar num pacato castelo medieval. Investido com as armas de Cavaleiro da Távola Redonda, vai chacinando sucessivamente todos os convidados. No auge da alucinação, volta atrás numa escadaria, só para decepar à espadeirada uma vela que se encontrava no seu caminho. Quando, no meio de um mar de sangue, em pleno átrio do castelo, se dá conta do equívoco, pede desculpa. Tinha sido um engano.
Num registo diferente, o domínio absoluto do corpo, há outra cena para rever até ao fim dos tempos. A dos passos disparatados. Se a versão original da série é um portento de hilaridade, a versão ao vivo no espectáculo do Hollywood Bowl ainda é melhor. Só visto e revisto. “No ano passado, o Governo gastou menos dinheiro com o Ministério dos Passos Disparatados do que com a Defesa Nacional!”, desabafa Cleese e acerta altura.
Para terminar, duas observações de John Cleese, na área das relações humanas: “Penso que o cimento é mais interessante do que as pessoas julgam” e “Por favor, desculpe a minha mulher. Ela pode não ser muito bonita, não ter muito dinheiro, não ter qualquer espécie de talento e ser chata e estúpida, mas por outro lado ela… perdão, não me consigo lembrar de mais nada!”
“And now…”

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