04/09/2016

Anamar, Né Ladeiras, Pilar - Ao Vivo

Sons
11 Outubro 2002

ANAMAR, NÉ LADEIRAS, PILAR
Ao Vivo
Ed. e distri. Zona Música
7|10

Gravado ao vivo a 24 e 27 de Novembro de 2000 no Teatro Maria Matos, em Lisboa, “Ao Vivo” é um daqueles acontecimentos irrepetíveis que procurou capitalizar a música de três vozes e personalidades ímpares da música popular portuguesa, juntas em busca da magia do momento. Anamar, Né e Pilar são, cada uma à sua maneira, “marginalizadas do sistema”. As suas vozes, os seus interesses e a sua postura dentro da indústria, tendem naturalmente se não a afastá-las, pelo menos a provocar reservas e eventuais desentendimentos. Sob a égide de Tiago Torres da Silva, arquiteto do projeto e autor da totalidade das letras, “Ao Vivo” tem o ar de coisa suspensa daquele fio frágil em que a delicadeza é tanta que corre o risco de, ao contacto com a menor rugosidade, se romper. São três vozes diferentes, mas almas gémeas, que aqui se dão e dão as mãos. Anamar é o fado do indizível, a força indomesticada, a cigana das vielas interiores; Pilar, as suaves fragrâncias do jazz, mas também a inquietação; Né a irrupção das tradições étnicas, venham elas do solo lusíada ou do Brasil. Apesar de irmãs, o que cada uma delas teve para dizer nessas duas noites, disse-o melhor sozinha. Disse-o mais alto e mais fundo, Né Ladeiras, na “Canção da Sibila”, do séc. XVI.

King Crimson - Thrak

Sons
11 Outubro 2002

KING CRIMSON
Thrak
EMI-Toshiba, distri. EMI-VC
8|10

Apesar do título, “Thrak” não cheira mal. Cheirará talvez a enxofre, o que é normal, sabendo-se das relações que o líder dos King Crimson, Robert Fripp, mantém com o “rei carmesim”. Editado em 95, com uma formação composta por Fripp, Adrian Belew, Tony Levin, Trey Gunn, Bill Bruford e Pat Mastelotto, é, com os “ao vivo” “Earthbound” e “U.S.A.”, a mais recente adição ao pacote de remasterizações em 24-bits e capas de cartão do grupo. Não há maneira de apagar este incêndio ateado por fluxos de energia onde o rock, a improvisação e a pauta se interligam na lição de um mestre. “Thrak” transporta o legado do rock progressivo para o caos da atualidade sem que a essência do grupo se tivesse perdido, tendo Fripp o cuidado de pôr novamente a funcionar o “mellotron” que ajudou a fazer de álbuns como “In the Court of the Crimson King”, “In the Wake of Poseidon” e “Lizard” das catedrais mais belas do progressivo. O barroquismo das ambiências, a incandescência da guitarra não ofuscam a transparência de canções como “Dinosaur”, “Walking on air” e “One time” (será que os Radiohead?…). Beleza e violência. Tão inseparáveis como no título-tema, instante de revelação em que o “satori” fere com a brutalidade de uma violação.

Spring Heel Jack - Amassed

Sons
4 Outubro 2002

SPRING HEEL JACK
Amassed
Thirsty Ear, distri. Trem Azul
9|10

John Coxon e Ashley Wales, núcleo operativo dos Spring Heel Jack, são uma dupla visionária que vem pesquisando os limites e as múltiplas possibilidades de interação entre o jazz e a eletrónica, subordinada a um conceito de manipulação que começou por se desenrolar no domínio do “sampling” para finalmente explodir num expressionismo jazzístico de carne e osso. “Amassed” tira de uma vez por todas a “fusão” do gueto para onde fora atirada nos anos 70, legitimando o mesmo futuro que, nos “sixties”, George Russell ensaiara em “Jazz in the Space Age” e “Electronic Sonata for Souls Loved by Nature”, numa união do free jazz com a música concreta e uma demência próxima do êxtase, criada pelas ambiências religiosas (sinos, drones de igreja, o silêncio modelado como catedral “dub”) elaboradas por Coxon e Wales. Han Bennink, Evan Parker (como só ele sabe ser-se, numa trovoada sem fim, em “Maroc”), Paul Rutherford, Matthew Shipp e Kenny Wheeler, luminárias da “free music” das últimas duas décadas, aos quais se junta o guitarrista Jason Pierce, dos Spiritualized, são outros dos construtores do tempo e do templo de uma música que, por enquanto, apenas tem como teto o céu.

Maddy Prior & The Girls - Bib & Tuck

Sons
27 Setembro 2002

MADDY PRIOR & THE GIRLS
Bib & Tuck
Park, distri Megamúsica
7|10


As “girls” são Rose Kemp (presumivelmente filha de Maddy e Rick Kemp) e Abbie Lathe, com quem a até há pouco tempo cantora dos Steeleye Span partilha as vocalizações de um álbum despreconceituoso que agradará porventura mais aos apreciadores de canto “a capella”, registo que preenche a maioria do alinhamento, que aos admiradores dos arranjos barrocos dos Carnival Band, outro dos projetos em que a cantora está envolvida. A esta simplicidade de meios respondem as cantoras ora com o despojamento das antigas baladeiras tradicionais ora com deliciosas interações harmónicas, como em “Acapella stella” ou “Hush hush”, este último um daqueles instantes de música iluminados por uma beleza sobrenatural que acontecem apenas porque Deus esteve presente. “Rain” mostra o que poderia ter sido o encontro dos Steeleye Span com as Zap Mama, mas o tema final, “Cotton triangle”, longa suite conceptual inspirada em temática e sons africanos, parece ter sido prematuramente arrancada aos primeiros estágios de composição, perdida em programações “new age” e num exotismo de superfície que entra em contradição com o que, para Maddy Prior, será porventura mais um “ritual de passagem”.

Pyrolator - Inland

Sons
27 Setembro 2002

PYROLATOR
Inland
Ata Tak, distri Symbiose
8|10


Agora que a salvação (pelo menos para os próximos três meses…) da pop a fingir de adulta está na recuperação enfadonha dos trejeitos da eletrónica comercial dos anos 80 e que, de Moby aos DAT Politics, anda toda a gente entretida a deixar fugir a personalidade, convém recordar os que há mais de 20 anos fritaram os bifes que os talhantes de hoje transformaram em hambúrgueres. Pyrolator, aliás Kurt Dahlke (ex-Der Plan), foi um dos precursores. Se o posterior “Wunderland” deu de mamar às “funny electronics” em voga, foi “Inland”, estreia de 1979 do músico alemão, que escreveu as primeiras páginas do que, nos 80’s, viria a aligeirar-se sob a forma de “pop industrial”, na leitura de Thomas Leer, Robert Rental ou Fad Gadget. “Tape collage”, sintetizadores analógicos regulados de maneira contrária às recomendações do fabricante e uma sensibilidade tipicamente “kraut” montam um sistema de referências que passam pelo “bruitismo” oleoso, o industrial lúdico dos Cluster, passagens de sequenciadores ominosos ao modo dos Heldon e a fantasmagórica algazarra de crianças a brincar no pátio que os Tangerine Dream recortaram em “Phaedra”. Essencial.

Stoned again naturally [The Rolling Stones]

Sons
27 Setembro 2002

stoned again
naturally

O regresso dos heróis. Stoned again, pedrados outra vez. Os admiradores poderão flipar com nova antologia, “Forty Licks”, e, a partir de 21 de Outubro, com 19 reedições de luxo, em super áudio CD, capas digipak e um grafismo que não descura os rabiscos dos originais. Os Stones no centro do universo, lugar que por direito lhes pertence.

No fim de contas, quem é o vencedor e o vencido? Quem levará para casa a taça de “melhor banda de rock ‘n’ roll do universo”? Beatles ou Stones? Stones ou Beatles (os Radiohead e os U2 estão, para já, fora da competição…)?
                Só o futuro o dirá. Até ver, o rótulo aplica-se com generosidade, e sem grandes protestos da concorrência (incluindo Thom Yorke, Bono e companhia), à banda de Mick Jagger e Keith Richards. Mas que gozo dá vencer uma corrida quando se corre sozinho?
                Seja como for, ninguém poderá tirar aos Stones a fama de banda mais trabalhadora do planeta. Ou insistente. Ou simplesmente teimosa. Ou terá o diabo mesmo a ver com tudo isto, e feito a sua transação comercial?
                A questão está em saber de que massa se fazem os mitos. Se de um sonho prematuramente interrompido (e então os Beatles triunfaram em toda a linha), se de uma realidade construída a pulso, com muita massa envolvida e, nesse caso, a conta bancária dos Stones servirá de comprovativo de vitória.
                Ao contrário dos Beatles, que fizeram história dentro da história do seu tempo (entre 1959 e 1970), os Stones, seus rivais na época, renovaram sucessivamente o passe, prolongando “ad infinitum” o seu prazo de validade. Sem desfalecimentos (Mick Jagger é praticante de jogging), nem – depois da partida de Brian Jones, a 3 de Julho de 1969, para o outro mundo – o “fait-divers” das “overdoses”, que antigamente conferiam “patine” ao aprendiz de rocker mas que os anos 90 condenaram justamente ao acervo da estupidez.
                Há quem não lhes perdoe a desistência da rebeldia militante (os que acreditavam que a revolta duraria para sempre); há os putos que gozam os cotas que fazem os pais vibrar; há quem se comova a ver as rugas sulcarem-lhes os rostos, da mesma forma que muitas das suas canções sulcaram as dores das suas juventudes. E os que os acusam de vendilhões do templo. Os Stones riem-se, com o desdém de quem já não tem nada a provar, continuando a gravar discos, a encher estádios e a ganhar milhões. Como aliás, vem estipulado no contrato que assinaram com aquele que vocês sabem.
                Pouco importa a controvérsia. Eles estão aí. Para o que ainda der e vier, defendidos por uma carreira de 40 anos que foi da raiva à bonomia, dos “blues” ao mainstream, do LSD à Coca-Cola. E se o rock’n’roll já pouco tem para lhes agradecer, convirá recordar os anos de glória, dos anos 60 e 70, quando das raízes do “blues” fizeram crescer a árvore do rock e dela desabrochar (eis um termo bem Stoniano…) as flores do mal do psicadelismo, sob o patrocínio do próprio mafarrico.
                Por tudo isto, saúde-se o regresso dos heróis. “Stoned again”, pedrados outra vez. O lema, antes apenas apanágio dos malditos, aí está de novo, pronto a funcionar. Ainda com mais força, a partir do momento em que os milhões de admiradores espalhados pelo globo poderão flipar à vontade com uma nova antologia do grupo, o duplo CD “Forty Licks”, e, a partir de 21 de Outubro, empaturrar-se com um pacote de 19 novas reedições de luxo, em super áudio CD, capas digipak e um grafismo que não descura o mínimo rabisco dos originais.

                40 lambidelas. “Forty Licks” poderá ser encarada como uma resposta bem gizada à coletânea e mega-sucesso dos Beatles, intitulada “1”. Aliás, vem de trás a sina dos Stones de “dar resposta a”, ainda para mais a um grupo do qual metade dos músicos já morreu. À semelhança de “1”, “Forty Licks” funciona como uma “jukebox” contendo os maiores êxitos da banda. Para espevitar o apetite, foram incluídos no alinhamento quatro inéditos, “Don’t stop”, “Keys to your love”, “Stealing my heart”, todos da melhor cepa stoniana, linha rock, e “Losing my touch”, balada com a assinatura de Keith Richards curiosamente evocativa de Lou Reed.
                A relação total das 40 lambidelas respeita o seguinte alinhamento: CD1 – “Street fighting man”, “Gimme shelter”, “(I can’t get no) Satisfaction”, “the last time”, “Jumpin’ Jack flash”, “You can’t always get what you want”, “19th nervous breakdown”, “Under my thumb”, “Not fade away”, “Have you see your mother, baby”, “Sympathy for the devil”, “Mother’s little helper”, “She’s a rainbow”, “Get off my cloud”, “Wild horses”, “Ruby Tuesday”, “Paint it black”, “Honky tonk woman”, “It’s all over now” e “Let’s spend the night together”; CD2 – “Start me up”, “Brown sugar”, “Miss you”, “Beast of burden”, “Don’t stop”, “Happy”, “Angie”, “You got me rocking”, “Shattered”, “Fool to cry”, “Love is strong”, “Mixed emotions”, “Keys to your love”, “Anybody seen my baby?”, “Stealing my heart”, “Tumbling dice”, “Undercover of the night”, “Emotional rescue”, “Only rock ‘n’ roll but I like it” e “Losing my touch”.
                Excetuando o isco dos quatro inéditos, pouco haverá digno de registo a não ser a qualidade do som, que é notável. Mas só aparentemente. Os fãs decerto hão-de notar que pela primeira vez na história da sua banda favorita uma coletânea abrange as quatro décadas que já levam de vida, sendo que a escolha dos temas é da responsabilidade dos próprios músicos. Proeza apenas possível porque, também pela primeira vez, a EMI e a Universal se uniram para esta “joint venture”.

                eterna insatisfação. Mas talvez seja injusto comparar qualquer disco dos Stones a um disco dos Beatles. Passando ao lado do “cliché” que distingue os “meninos bons” de Liverpool dos “meninos maus” de Londres (Mick Jagger foi mais rebelde que John Lennon?), quis o destino que as duas bandas seguissem caminhos diferentes. Aos Stones coube a fama de “maus”, simplesmente por se terem mantido por mais tempo fiéis à negritude e revolta dos “blues”, enquanto os seus rivais optaram por fazer a revolução da música pop.
                Há uma explicação dolorosa. Lennon e McCartney eram uma máquina infalível de compor pedaços perfeitos de pop, algo que Jagger e Richards jamais conseguiram ser. Nos Beatles havia, invariavelmente, magia. Nos Stones, à míngua dela, sobrou revolta. Quando não se tem uma varinha de condão empunha-se o punhal da provocação. Luta-se com as armas que se tem.
                Por isso, e por finalmente terem reconhecido que neles o génio foi injusto ao ponto de não lhes aparecer com a mesma assiduidade com que comparecia aos encontros com os “fabulosos quatro”, os Stones ganharam, paradoxalmente, a contenda. Mas não contra os seus adversários de estimação. Sim, eles são, de facto, a “maior banda de rock ‘n’ roll do universo” porque o rock foi tanto a sua bandeira como o seu refúgio. Os Beatles ficarão para sempre como a “maior banda”, ponto final, e que nos perdoem as claques dos Kinks e dos Beach Boys, sentados nas respetivas bancadas a apitar e a acenar com os cachecóis.
                As marcas dessa raiva foram apagadas pelo tempo e pelos cifrões. Mas quem quiser, que compare: o hino dos Beatles chama-se “All you need is love” e canta-se com sorriso Pepsodent. O dos Stones tem como nome “(I can’t get no) Satisfaction” e é um grito que continua a enlouquecer os que, ontem como hoje, sentem um nó na garganta. Um coração de pomba contra um fígado bilioso. Haverá duelo mais desigual?
                Mas que mal tem, se Lennon e McCartney eram sempre Lennon e McCartney e Jagger e Richards “apenas” uma acutilante, e por vezes inspirada, parelha ao serviço do rock? Ao perfume dos “sirs” respondiam umas vezes com pólvora, outras tentando manejar as mesmas armas, de forma mais ou menos desastrada. Era esse o seu charme. Poderia ter sido de outro modo? Jamais o saberemos. E no entanto…
                Quando os Stones enfrentaram, cara a cara, os Beatles, e pretenderam responder-lhes no seu próprio terreno, apontando o álbum “Their Satanic Majesties Request”, ao mesmo alvo que “Sgt. Peppers Lonely Hearts Club Band” (tentativa idêntica à que levou Brian Wilson, dos Beach Boys, ao desespero, pretendendo com “Smile” competir com o mesmo monstro, com os traumas consequentes que se conhecem…), ambos editados no mesmo ano de 1967, os resultados foram, no mínimo, perturbantes.
                Para muitos, incluindo os próprios Stones, que hoje renegam este objeto estranho da sua discografia, “Their Satanic…” é uma obra falhada, marcada por um pretenciosismo que não estaria à altura das capacidades da banda, se não mesmo uma “traição” ao seu espírito original. Para outros (grupo no qual nos incluímos), poré, é uma das obras-primas dos Stones e um dos álbuns mais belos do psicadelismo, onde estão incrustadas gemas como “Citadel”, “She’s a rainbow” e “2000 light years from home”. Mas, lá está, “Sgt. Peppers” foi composto como uma sinfonia abençoada pelos anjos e “Their Satanic” destila os olores estupefacientes do ópio com uma ânsia magoada. Não haja confusões. O Sargento Pimenta não é Satanás. E a miúda que abandona a casa dos pais em “She’s leaving home” não é bem o mesmo viajante perdido que se afasta 2000 anos-luz do lar. A partir daí os Stones apearam-se dos mellotrons e das “sitars” e apanharam outro comboio. Um comboio-fantasma.
                Não se sabe o que lhes teria acontecido se Brian Jones continuasse vivo e tivessem recebido a benção do amor. Talvez tivessem acabado na altura própria… Mas as cartas foram jogadas. Os Rolling Stones são a “maior banda de rock ‘n’ roll do universo”, mas isso não é suficiente. Nunca será suficiente. Jagger permanecerá até ao fim dos seus dias D. Quixote a lutar contra os moinhos de vento. Os Stones jamais se derrotarão a si próprios. O diabo, na sua maligna sabedoria, negou-lhes esse poder. É essa a mais terrível das suas maldições.


a jóia dos malditos

“Their Satanic Majesties Request”, registo ímpar na discografia dos Stones dos anos 60, faz parte do pacote “The Rolling Stones Remastered”, composto por 19 álbuns (22, se considerarmos que “Out of our Heads”, “Aftermath” e “Between the Buttons” sairão em dose dupla, correspondentes aos diferentes alinhamentos das edições inglesa e americana), que serão postos à venda a 21 de Outubro. Da embalagem em formato digipak a um processo de prensagem “dois em um” que reúne os registos super áudio CD e CD áudio normal, tudo foi pensado em termos de “edição definitiva”. Editado originalmente em 1967 com uma capa com uma foto em 3D (na presente reedição substituída por um holograma), “Their Satanic Majesties Request” é o álbum psicadélico dos Stones. O disco maldito que poucos ousam incluir na sua lista de preferências mas sem dúvida aquele que mais longe levou o lado inexplorado do grupo e é digno de ombrear com os grandes clássicos do psicadelismo, como “Sgt. Pepper’s Lonely Hearts Club Band”, dos Beatles, “Odessey and Oracle”, dos The Zombies ou “Begin”, dos The Millenium. Muito do seu exotismo é fruto do impulso das drogas alucinogénicas que então integravam o “input” inspiracional da maioria dos grupos da época, matéria em que Brian Jones (falecido dois anos mais tarde, vítima de “overdose”) era especialista. Foi ele o primeiro feiticeiro a render-se a Lúcifer, dele recebendo os seus tesouros amaldiçoados, pelos quais pagou com a própria vida. Cravos, mellotrons, “sitars” indianos, ritmos africanos encantatórios, tudo encaixa como os fragmentos simétricos de um caleidoscópio, criando uma fantasmagoria suspensa no abismo da qual emerge uma das mais belas canções de sempre do grupo: “She’s a rainbow”, emblemática da “weirdness” psicadélica, como é Lucy, no céu com diamantes.
Em “Their Satanic Majesties Request” os Stones quiseram ser poetas e, como os Beatles, trazerem para a pop uma beleza sobrenatural. Conseguiram-no, roubando ao mais belo e terrível dos anjos a sua jóia dileta: uma esmeralda. Brian Jones morreu. Mas suspeita-se que a pedra verde continue, oculta, a cintilar no coração de Mick Jagger.

THE ROLLING STONES
Their Satanic Majesties Request
ABKCO, distri. Universal
10|10


Pagou 120 contos por um disco e viajou à aventura até Londres, para estar ao lado dos ídolos.

como ser doente pelos stones e sobreviver

Ser fã dos Stones é profissão de fé. Que o diga Pedro de Freitas-Branco, 35 anos, vocalista, guitarrista e compositor do grupo Pedro e os Apóstolos (dos quais acabou de sair novo álbum, “Formigas em Férias”) e autor de livros de aventuras juvenis escritos de parceria com António Pinho (ex-Banda do Casaco), “doente” pela banda de Jagger e companhia desde os 11 anos. Ouviu-os pela primeira vez através de “Aftermath”. A partir daí já não havia nada a fazer. Ficou apanhado. Das edições em vinilo originais, por algumas das quais já pagou pequenas fortunas, a “memorabilia” de toda a espécie, nada lhe escapa. Admite que o seu fanatismo tem algo de “irracional”: “Às vezes acho estúpido ter tantas coisas… vou acumulando… é como ser sócio ‘hardcore’ de um clube”.
                O pai tocava nos Claves, “dos campeonatos ié-ié”, e foi com ele que ouvia em casa “os Beatles, The Kinks, alguma música portuguesa”. Mas isso foi “até conhecer os Stones, a antítese dos Beatles, mais ‘sujos’ e enérgicos, com um discurso diferente nas letras, sobretudo nos primeiros singles”.
                Começou por comprar os discos dos anos 60, “os que na altura estavam editados em Portugal”, em particular “Aftermath”, mas o “tiro mesmo, o golpe de misericórdia”, aconteceu quando, aos 15 anos, viajou até Madrid, ao estádio Vicente Calderón, para assistir a um concerto da “tournée” de 82 do grupo.
                Tem em casa todos os álbuns da banda, dos oficiais aos piratas, “alguns repetidos, pelas capas diferentes, consoante os países em que foram editados”. Só singles, são “quatrocentos e tal”. Pelo dez polegadas “Beat, beat, beat”, “uma edição alemã rara”, pagou 400 libras, cerca de 600 euros, 120 contos. Mais programas de concertos, “o mais antigo, de 65”, revistas, fotografias… Insiste num ponto: “Procuro as edições originais por causa do som, não sou daqueles colecionadores que querem ter por ter. Compro os discos para os ouvir mesmo!”.
                De colecionador “obsessivo”, passou gradualmente a uma atitude “mais seletiva”, privilegiando a “raridade”. Como “Promotional Album”, “feito para as rádios nos EUA e na Inglaterra”, do qual “apenas existem 200 exemplares” e que demorou “vários anos até conseguir ter”, através de um “dealer” inglês, que lhe cedeu, por troca “com um ‘Abbey Road’ de exportação”, um exemplar previamente reservado para Courtney Love.
                Mas Pedro foi mais longe na idolatria. Foi até Madrid, para assistir à tal digressão de 82, “sem a autorização da mãe” (“disse que ia para casa do meu pai mas parti com uns amigos para Espanha. Só passados dez anos é que a minha mãe descobriu, tal era a minha obessão na altura!”). Depois, “há cerca de um ano e tal”, houve uma ida a Londres. “Numa terça-feira, em Lisboa, tocou o telemóvel do João Pedro Pais, que nessa altura estava a fazer um disco com o Luís Jardim: ‘Eh pá, tu que gostas tanto dos Stones, o Luís Jardim está amanhã a tocar no Ronnie Scott [famoso clube de jazz londrino], com o Charlie Watts! Vai ter com o gajo a Inglaterra!’ Não conhecia o Luís Jardim mas meti-me no avião nessa noite. Fui para a porta. Meteram-me lá dentro. Foi giro. Depois do concerto sentei-me à mesa com o Charlie Watts, assinou-me discos… E tive a sorte de nessa mesma noite o Ron Wood e o Keith Richards terem ido ver o espetáculo. Eu estava um bocado bebido, não tinha comido nada, tive aquela coisa de puto, aos trinta e tal anos, de ir ter com eles e sentar-me na mesa deles, fazendo-me passar por amigo de infância do Luís Jardim. Estava com medo, mas os gajos foram impecáveis. Quando a certa altura lhes disse que também gostava de conhecer o Mick Jagger, o Keith Richards disse uma coisa gira: ‘Ainda bem que nos conheceste a nós, ele não tem tanta piada, é maus uma superstar’. A noite acabou a família do Ron Wood a dar-me boleia para o hotel!”.

Peter Gabriel - Up

Sons
20 Setembro 2002

O homem esquizóide do século XXI despertou. Em “Up” Peter Gabriel volta a emitir sinais de vida e reaprendeu a fazer esgares. Eis como soa a cabeça dele

a cabeça dele soa assim

PETER GABRIEL
Up
Virgin, distri. EMI-VC
7|10

“Up”. Como nos anteriores “So” e “Us”, a exiguidade do título permite encher o saco com conjeturas. Só que enquanto “So” era uma justificação pouco convicta e “Us” uma tentativa de reconciliação mal sucedida, “Up” soa com a urgência de uma campainha de despertador. Toca a levantar, parece dizer. Gabriel limpou as ramelas e reabriu as asas. Já não de anjo, mas de corvo.
            Nem sempre foi assim. Apesar do apelido de anjo, teve fama, até aos primórdios dos anos 80, de diabrete. Nos Genesis, disfarçado de rã com acne (como se apresentava nos concertos durante a fase mais teatral do grupo, entre 1970 e 1973) ou de Rael alucinado (personagem que encarnou no último álbum gravado com a banda, “The Lamb Lies Down on Brodway”, de 1974), e já a solo, nos primeiros quatro discos, onde ensaiou, a vários níveis, a disformidade e a alienação.
            Embalado no berço da Inglaterra do psicadelismo e do rock progressivo do final dos anos 60, juntou o universo da fábula Carrolliana a uma crueldade própria dos surrealistas. Mestre dos disfarces e da maquilhagem psicológica (como Bowie, ainda que o seu Rael seja mais complexo que Ziggy Stardust ou o Thin White Duke…) Gabriel colou (ainda como Bowie) a psicose ao entretenimento, a beleza à monstruosidade, cultivando uma ambiguidade que lhe permitiu percorrer, incólume, duas décadas de música popular.
            “The musical box”, do terceiro álbum dos Genesis (“Nursery Cryme”), é o exemplo acabado do ambiente de ópio, ocultismo e mistério que Gabriel emprestava aos Genesis, com as suas máscaras, histórias de crianças perversas e demónios vitorianos, e as vocalizações de Arlequim. Já sem o ferrete do Progressivo, enfrentou os anos 80 com o olhar renovado de um “intruder” (“The intruder”, tema de abertura do álbum a solo nº 3), observador, vítima e carrasco de uma década que foi tanto de trevas como de revolução.
            Eram os anos do néon, da descoberta do sampler (foi dos primeiros a usar em disco um “Fairlight”) e da disseminação da “world music” (causou furor a restrição das percussões, limitada aos tambores, no terceiro disco). Em cada um dos primeiros quatro trabalhos a solo, todos intitulados “Peter Gabriel”, as capas figuravam as várias etapas de uma metamorfose centrada no rosto. Da solidão, ainda romântica, personificada pelo homem triste e isolado do mundo, encolhido no interior de um automóvel (disco de estreia), ao instantâneo vídeo do volume quatro que se diria recortado de uma experiência tecnobiológica mal sucedida de Cronenberg, passando pelo esfacelamento da capa/vitrina em “trompe l’oeil” do volume 2 e a corrosão facial do volume 3, opera-se a dissolução de uma imagem, enquanto superação e aniquilação da ópera encenada com os Genesis. O rosto de “So” é já o de um homem normal.
            Mas a normalidade coincidiu com o início da decadência. Em “So” a música soa como elemento secundário. O músico cedia o lugar ao designer de jogos de computador (“Xplora” e “Eve” são marcos na evolução conceptual deste tipo de entretenimento eletrónico), ao retocador das músicas do mundo, criador do projeto editorial Real World, e ao visionário que almejava a edificação da Disneylândia artística do futuro – um gigantesco parque temático servido pelas mais modernas tecnologias, idealizado com Laurie Anderson.
            Consumada a reconversão, a máscara tombou, por fim. And “So”… acontece aos melhores, diz-se… Peter Gabriel descobriu novos interesses. As viagens pelos recônditos da mente foram trocadas por viagens de iate na companhia de atraentes top models como Claudia Schiffer. Ninguém, nem os anjos, muito menos as rãs que se transformam em príncipes encantados, escapa ao envelhecimento. Porém, se a música claudicou, divagando entre “So” e “Us”, com passagem pelo exotismo das bandas sonoras de “Birdy” e “A Última Tentação de Cristo”, de Scorsese, foi curiosamente durante este período que demonstrou, uma vez mais, por que razão nunca chegou a ausentar-se verdadeiramente do grupo dos inovadores. É que se as canções eram vulgares, o formato visual que as acompanhava, como em “Sledgehammer”, ganhavam uma originalidade sem precedentes no mundo dos videoclips, ao fazer recurso a inusitadas técnicas de animação e de colagem.

            arrancado à cama. Estavam as coisas neste pé, com os fãs já resignados a contentar-se com o melhor Gabriel confinado às consolas de jogos, quando o novo álbum, “Up”, sacudiu o entorpecimento e chamou de novo a atenção para um músico a quem estava prestes a ser retirado o benefício da dúvida. O ex-Genesis não estava, afinal, morto, mas adormecido, ou em hibernação. “Up” arrancou-o da cama. Não é o Gabriel das leviandades e das paixões plastificadas, dos abraços dengosos a Kate Bush e do fazedor de sopas com tempero do quarto mundo, mas o anjo negro que retoma o jogo das escondidas com os seus e com os nossos medos.
            O álbum, composto por dez temas dos quais apenas dois não ultrapassam os seis minutos de duração, começa com “Darkness”, tão escuro e ominoso como uma refrega de personalidades múltiplas corroídas por sonoridades industriais. Termina com “Signal to noise”, projeção apocalíptica de um presente em que a perda de referências (os sinais) equivale à predominância do ruído e consequente bloqueamento dos canais de comunicação. Como se fosse, afinal, a continuação de um aviso feito no disco de estreia: “Here comes the flood”.
            Os sinais de estática que inundam os receptores do cérebro aumentaram desde então de potência, até se tornarem ensurdecedores. O dilúvio aumentou de intensidade, tornando inúteis os guarda-chuvas e as gabardinas. Em última análise, terá sido este aumento de precipitação acompanhado do baque das gotas contra o crâneo que fizeram Gabriel olhar de novo para cima com os olhos espantados de quem reencontrou um mundo ainda mais sujo e profanado do que antes, e a descrever numa da canções do álbum, “My head sounds like this”, tema surpreendentemente evocativo dos Genesis, as circunvalações de um percurso feito de convulsões. Rael tornou-se real. Numa reconciliação com o passado e na forma como incorporou, sem sofreguidão, como em “The Barry Williams show”, algumas tendências do “groove” contemporâneo e, em “More than this”, a massa com que cozem os “hits”.
            Ou, como o seu amigo Robert Fripp (com quem colaborou em vários discos) profetizara, ele próprio vestiu a pele do “21st century schizoid man”. Hoje em dia quem é que se impressiona com um homem vestido de rã?


“Up” está disponível no dia 23