21 de Dezembro de 1994
EM PÚBLICO
FREI HERMANO DA CÂMARA *
Entre “O Nazareno” e este seu novo disco, “Missa Portuguesa” distam 16 anos. A que se deve um intervalo tão longo?
Deve-se sobretudo à fundação que eu fiz, dos Apóstolos de Maria, uma fundação com duas vertentes. Somos religiosos contemplativos e activos. Pela contemplação rezamos, temos uma via de adoração intensa. Pela acção, temos o nosso apostolado através da música. Como deve calcular, uma fundação nova dentro da Igreja dá sempre muito trabalho. Depois, as minhas gravações são quase todas com músicas compostas por mim e isso exigiu um reportório especial.
Até que ponto o novo disco é fiel às várias fases da liturgia?
Tem todas as características de uma missa. Segue o esquema do missal romano, nas suas partes invariáveis e variáveis. Tem o cântico de entrada, o “Kyrie”, o “Glória”, “Aleluia”…
Porque razão escolheu, em duas canções, textos das místicas Teresa de Lisieux e Teresa de Ávila?
Primeiro porque tenho uma grande paixão pelos grandes místicos, dos carmelitas como Teresa de Ávila, Santa Teresa do Menino-Jesus [Teresa de Lisieux] e São João da Cruz. Achei que Santa Teresa de Lisieux se aplicava ao Ofertório, porque fala de oferta – “os meus perfumes são para ti, Senhor” – e o de Santa Teresa de Ávila à Comunhão.
O disco surge numa altura em que outros, como o dos monges de Silos, estão a ter um enorme sucesso. Que razões encontra para este sucesso?
É um fenómeno que eu não sei explicar. Mas dá-me a impressão que as pessoas estão fartas daquela música que não acalma, que não serena, da chamada música pesada. As pessoas precisam de sossego e de calma.
Em vez de acordar as pessoas, adormecê-las… Não será isso uma fuga, um escape, um sedativo para os problemas do dia-a-dia, em última análise uma outra forma de alienação?
Não sei se o facto de as pessoas ouvirem uma música calma seja uma alienação dos problemas. Pelo contrário, acho que a pessoa, para tomar consciência desses problemas, tem que ter calma e serenidade. Não é neste ruído do mundo, nesta barulheira das “boîtes” e da música que se ouve na telefonia, que as pessoas têm tempo para pensar.
Mas não é possível criar o silêncio necessário no meio desse ruído? Afinal o tal acto contemplativo, mas fora das paredes do convento?
Repare no caso do Papa. O Papa disse numa entrevista que num primeiro momento a sua vocação surgiu para a vida contemplativa, mas depois de ter reflectido – é uma pessoa inteligentíssima, de grande categoria – percebeu que a vida dele não seria a contemplação, a vocação dele não era enfiar-se num convento. Então o que acontece é que o Papa vive a vida contemplativa, mas é um contemplativo do mundo. Mas isso não acontece com toda a gente. Repare, nós também somos contra sociedades contemplativas. A minha fundação é uma fundação contemplativa, mas temos, como já disse, uma vertente activa. De apostolado através da música em que fazemos espectáculos, gravações de discos e programas de televisão. Mas, além disso, todos aqueles que são sacerdotes exercem o seu ministério sacerdotal. Neste momento, estamos num chalé junto da basílica, onde celebro missa todos os domingos.
O Papa conhece os seus discos? Tem alguma opinião sobre a música?
Mandei de facto os meus discos ao Papa. Ele agradeceu imenso e enviou uma bênção. Mandei-lhe “O Nazareno” e outro disco, dedicado a ele, a “Serenata Mística”, que tem o atentado ao Papa, com tiros e tudo.
Porque é que utiliza sempre nos seus discos meios tão espalhafatosos, grandes encenações ou, como neste caso, a Royal Philharmonic Orchestra de Londres?
No meu caso, nunca pedi nada a uma editora, nem esta nem aquela orquestra. Quando gravei por exemplo “O Nazareno” puseram à minha disposição a Orquestra da Gulbenkian e coros do Teatro de S. Carlos. Não pedi nada a ninguém.
É para chegar mais facilmente às pessoas?
Pode chegar-se de qualquer maneira às pessoas. Até só com uma simples guitarra, como foi o caso, por exemplo, da célebre “Irmã sorriso”, uma dominicana belga que cantava, tocava guitarra, e gravou um disco que apareceu nos escaparates do mundo inteiro. Ou o caso dos monges de Silos que cantam sem qualquer acompanhamento.
Já agora, não há monges em Portugal capazes de fazer uma coisa semelhante?
Já podia ter sido feito, com os Beneditinos. Penso que ainda não se fez nada pela mesma razão de sempre: as editoras não querem arriscar. Possivelmente nunca lhes passou pela cabeça que gravar um disco de gregoriano com monges portugueses poderia ser um sucesso mundial.
Mudando de assunto, o que pensa dos cátaros, místicos cristãos da Idade Média que professavam a religião do amor (“Amor”, anagrama inverso de “Roma”) e praticavam a gnose (contacto directo com Deus, sem intermediários) sem obediência à Igreja Católica, que os considerava heréticos?
Na minha opinião, tudo o que seja uma separação, que não esteja em ligação com o vigário de Cristo, o Papa, está errado. Desde que seja conscientemente. Está errado porque Nosso Senhor Jesus Cristo instituiu uma hierarquia, pôs Pedro como pedra da Igreja, e disse: “Tu és Pedro e sobre esta pedra fundarei a minha Igreja e as forças do Inferno não prevalecerão contra ela.” A partir de Pedro há uma sucessão apostólica transmitida de Papa para Papa, portanto tudo quanto seja fora não está em união com a cabeça. Cristo é a cabeça da Igreja e nós somos um corpo. A igreja não é só o templo, são os sacerdotes e os leigos. As pessoas. Somos pedras vivas, como diz S. Pedro. Depois, há religiões e há seitas. Todas aquelas religiões que estão bem intencionadas e não ofendem a dignidade humana, mesmo que aparentemente estejam fora da Igreja, acho que essas pessoas se salvam da mesma maneira que um católico. Porque acreditam que a sua religião é que é a verdadeira. Agora as seitas, que ofendem a dignidade humana, essas não as aceito. Aí já há uma coisa diabólica pelo meio, contra a qual temos de lutar.
Há quem diga que o Diabo já se instalou em Roma…
Aí está. É isso mesmo. Não diria que o demónio se instalou em Roma, mas sim que o demónio está instalado em toda a parte. Digo muitas vezes na minha comunidade que é preciso dar um testemunho de amor, como os primeiros apóstolos que diziam “vede como eles se amam”, marca pela qual se conhecem os apóstolos de Cristo. Costumo dizer na minha comunidade, quando há qualquer coisa mal, uma tempestade lá dentro, que é porque está lá a garra do demónio.
Já teve algum contacto com esse mal, com o demónio?
Nunca o vi, mas sinto que ele existe. Muitas vezes há coisas que não consigo explicar e digo “isto é o demónio!”. Santa Teresa de Ávila era muito perspicaz e tinha uma facilidade muito grande para descobrir onde é que o demónio estava. Mas não são todas as pessoas que têm esse discernimento.
Concorda com as recentes posições do Papa contra o aborto ou a utilização do preservativo?
Estou plenamente de acordo com ele. Embora as pessoas que são atingidas por esses problemas, problemas reais, gostassem de outra resposta, tenho que acreditar, e acredito, eu as posições que o Papa toma são para o bem da humanidade. O Papa não é um carrasco, que esteja ali com uma disciplina militar. Não se trata sequer de leis. O Papa reza e pede ao Espírito Santo que o ilumine e lhe diga o que é melhor para a humanidade. Por exemplo, no caso de pessoas casadas pela Igreja que se separaram e perderam o direito a receber os Sacramentos. Tem havido uma pressão grande para que o Papa autorize essas pessoas a frequentarem os Sacramentos. Veja o que seria uma abertura, abrir um precedente, neste sentido. O casamento ia ao ar!
Estaremos de facto a viver o fim dos tempos, o Apocalipse?
Cristo disse no Evangelho que esse dia ninguém sabe quando acontecerá. Nem mesmo Ele, o Filho do homem. Mas Ele sabe. Já S. Paulo dizia que nós, os que cá estivermos no fim dos tempos, não morreremos, mas seremos levados imediatamente quando Cristo vier. Pode ser que estejamos no princípio do fim dos tempos. Não quer dizer que seja já amanhã ou daqui a um ano. Pode ser daqui a 20 anos. Há uma coisa muito importante que é preciso não esquecer. Nossa Senhora disse”Por fim o Imaculado Coração triunfará”. Ora nós vemos que o Coração Imaculado de Maria está a triunfar em toda a linha. Quando foi a consagração do Papa, em Roma, em que à irmã Lúcia pediu a conversão da Rússia, logo imediatamente a seguir deram todos aqueles acontecimentos no Leste, a queda do Muro de Berlim, tudo isso aconteceu naquela altura. A irmã Lúcia, numa entrevista, respondeu que realmente a consagração tinha sido ouvida. Temos de acreditar que o Imaculado Coração de Maria está a triunfar. E Ela disse “por fim”. Portanto, podemos acreditar que será o início do fim dos tempos.
Quer deixar aqui alguma mensagem de Natal?
A minha mensagem é a mesma de sempre, desejar a paz para todas as pessoas.
* monge e cantor. Autor de “O Nazareno” e de uma “Missa Portuguesa” acabada de editar. Criador da fundação Apóstolos de Maria, de dupla vocação, contemplativa e de apostolado pela música.
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