05/06/2009

O caminho das letras que cantam [Os Poetas]

Sons

14 de Novembro 1997

OS POETAS APRESENTAM “ENTRE NÓS E AS PALAVRAS”

O caminho das letras que cantam

Mário Cesariny, Luiza Neto Jorge, Herberto Helder, Al Berto e Franco Alexandre são os poetas da escrita presentes no álbum de estreia de Os Poetas, um grupo de músicos atentos ao som das palavras e ao sentido dos sons. “Entre nós e as Palavras”, assim se chama o disco, é esse espaço de abertura e convergência.

Rodrigo Leão, Gabriel Gomes, Francisco Ribeiro e Margarida Araújo, os quatro instrumentistas de Os Poetas, falaram ao PÚBLICO da fase actual de um projecto que pretende alargar-se, num futuro próximo, à área do teatro e a outros poetas contemporâneos. Cesariny ou Herberto Helder poderão subir ao palco sempre que quiserem.
PÚBLICO – Qual é a génese deste projecto?
MARGARIDA ARAÚJO
– Surgiu de uma conversa entre o Rodrigo, o Gabriel e o Hermínio Monteiro, da Assírio & Alvim, quando este último falou da existência de gravações de poetas a recitarem os seus próprios poemas. Chegaram à conclusão que seria interessante juntar isso com música. No início deste ano entrámos em estúdio.
RODRIGO LEÃO – Começámos em Abril, praticamente do zero. Havia uma ou duas coisas que eu já tinha feito para um espectáculo para a associação Saldanha...
P. – A quem se deve a escolha dos poemas para o disco e para o espectáculo?
R.L.
– O Hermínio emprestou-nos as gravações e a partir delas seguiu-se um processo de selecção muito espontâneo. Não nos interessava inventar um tipo novo de música, mas trabalhar as reacções mais imediatas à tonalidade dos diversos poemas.
GABRIEL GOMES – Foi um acto de paixão. Quando começámos a ouvir os discos dos poetas, as palavras eram demasiado fortes. A partir daí tentámos encontrar uma cadência tanto para os poemas como para a forma como estes eram expressos pelos seus autores. Andámos à procura da coincidência entre a palavra e a música. Fomos experimentando. Umas vezes compúnhamos inspirados directamente na poesia, tocando sobre ela, noutras a música surgia depois do poema, noutras ainda compúnhamos o tema e íamos à procura do poema certo para ele.
P. – Em termos estritamente musicais, é difícil não recuarmos aos primeiros tempos dos Madredeus, até porque há três elementos que fizeram parte desse grupo...
R.L.
– É difícil comparar dois projectos tão diferentes, apesar de haver semelhanças, ao nível da sonoridade. Os Madredeus têm uma cantora, uma figura que canta a poesia de outra maneira. No nosso projecto, são os próprios autores a ler os poemas.
P. – Se tivessem um cantor tudo funcionaria de maneira diferente?
FRANCISCO RIBEIRO
– Quando há um cantor, toda a instrumentação tem de ser adaptada a ele. No nosso caso, embora tivéssemos o cuidado de procurar a tonalidade, as pausas, toda a maneira como o poeta diz, o processo de criação foi mais livre, sem uma melodia rígida em relação à qual nos tivéssemos de cingir. Também aí divergimos dos Madredeus, na medida em que cada um de nós foi livre para criar a música.
P. – Como reagiram, em termos de apreciação e posterior composição, às duas formas diferentes de dizer o poema que utilizaram: uma, a gravação com o próprio autor a declamar, outra, com a declamação, em tempo real, feita pela actriz Margarida Marinho?
F.R.
– A maneira como nos adaptámos à palavra difere de tal maneira, de poema para poema, e de pessoa para pessoa... Imagine-se, por exemplo, que temos a Margarida Marinho a declamar uma das poesias de uma forma mais lenta, aí temos que adaptar a música a essa cadência.
G.G. – Digamos que essas duas situações, uma em “off”, outra em tempo real, são distintas. Se, por um lado, é óbvio que temos de nos habituar à cadência em que o poema foi disparado, e não há a mínima hipótese, temos que nos adaptar, por outro, com a Margarida Marinho, o trabalho pode ser feito em simultâneo, adaptarmo-nos nós ou adaptar-se ela. Pessoalmente, achei supernovo estar a tocar em palco e, de repente, ser disparada uma voz que não está em palco. Com a Margarida Marinho é diferente, é como se ela fosse uma cantora. Complementando com a palavra, que também é melódica. E há poemas em que a música é, à partida, como uma página em branco, que nos empurra para a improvisação, conforme as palavras vão sendo ditas.

Há uma palavra certa

P. – Além da música e da poesia, há uma componente teatral nos vossos espectáculos, já para não falar no modo como o Francisco Ribeiro canta “quem me dera (amanhã)”. Tencionam desenvolver mais esta faceta?
R.L.
– O disco cristaliza o momento, segundo o conceito dos poetas recitarem a sua poesia e nós musicarmos essa poesia em diversas situações. Nos espectáculos, temos vindo a desenvolver essa componente mais teatral.
F.R. – É mais uma “performance” que dá lugar à expressão corporal. A ideia é, de resto, essa, de juntar diversos campos artísticos.
R.L. – A personagem que o Francisco encarna no tema que canta não foi estudada, foi surgindo a pouco e pouco, mas agora realmente sentimos que ele encarna mesmo uma personagem. De resto, ele também já faz a declamação, ao vivo, do poema “Há uma hora, há uma hora certa”, do Cesariny.
P. – Todos os elementos do grupo partilham a mesma forma de encarar os poemas que foram escolhidos “a priori”?
G.G.
– Quem assistir aos nossos ensaios perceberá como funcionamos. Cada um tem uma ideia, mas há como que uma sintonia, porque o outro já estava a pensar em algo semelhante. Não existe grande confrontação.
R.L. – ... Embora também haja momentos de dessintonia perfeita!... Sobretudo nos últimos três meses de estúdio, houve muitas discussões, mas acabámos, de forma quase inconsciente, por achar as soluções certas e encontrar uma unidade estética.
G.G. – Por exemplo, há um poema do Al Berto com música do Francisco. Não tínhamos música para ele, mas queríamos mesmo usar o poema, “XXX”. Porque é que não haveríamos de usar apenas o Al Berto e o violoncelo? Experimentámos com uma música que já estava feita há muitos anos, e que inclusive já tinha sido tocada em espectáculos dos Madredeus. Foi aproveitada e funcionou na perfeição na relação entre o poeta solitário Al Berto e o violoncelo solitário do Francisco.
P. – Já puseram a hipótese de convidar algum dos poetas deste projecto para declamar ao vivo, com o grupo, em palco?
G.G.
– Há poucos dias tivemos a honra de fazer um “videoclip” com o Mário Cesariny, que é uma coisa fantástica. Conheci pela primeira vez o senhor e fiquei bastante impressionado. Convidei-o para ir ao espectáculo [que teve lugar na Aula Magna, na passada terça-feira]. Não vamos pedir, obviamente, que ele vá recitar... A não ser que ele queira mesmo... Já tem idade e posição suficiente para fazer o que lhe apetece. Se ele disser: “Quero ir recitar”, o palco é para ele e a música que improvisarmos há-de ser feita. E com o Herberto Helder também gostaríamos que acontecesse... Quanto ao Franco Alexandre, vai mesmo colaborar connosco proximamente.
P. – Também não se lembraram de experimentar com a chamada “poesia fonética”, de Mello e Castro, por exemplo?...
R.L.
– Podia ser giro, mas é preciso ver que não somos verdadeiros especialistas em poesia. Só este ano é que começámos a levar para a frente este projecto, e temos vindo a apaixonar-nos e a envolver-nos cada vez mais com a poesia. Até é possível que apareça um segundo disco, embora não tenhamos obrigatoriedade de carreira com este projecto.
F.R. – E há outra situação super-interessante que podemos explorar no futuro, que é ter poetas vivos, contemporâneos, connosco em estúdio, para uma criação em conjunto. Composição em tempo real entre a palavra e a música. Que é o que, de resto, se passa, por vezes, com a Margarida Marinho.
P. – Um grupo com um poeta no lugar do cantor?
G.G.
– Exacto. Aliás, a ideia inicial deste projecto incluía a participação do próprio Al Berto. Infelizmente ele faleceu e isso não aconteceu. Se calhar, ele até poderia compor poesia original para as nossas músicas, ou vice-versa... Mas esta ideia permanece de pé, com outros poetas que eventualmente escolhermos.
P. – “Desde os primórdios que a poesia nasceu para ser cantada ou recitada”, escreveu Hermínio Monteiro, a propósito do lançamento do disco. A afirmação é discutível...
G.G.
– Mas quando ele diz isso está a recuar à época dos gregos, a poemas como a “Elíada” ou a “Odisseia”, que eram poesia para ser cantada. E na Idade Média acontecia a mesma coisa.
P. – Vocês são os trovadores desta geração?
F.R.
– Um pouquinho... Não, estou a brincar.
R.L. – Não, temos é a possibilidade de fazer a conjugação das artes. Ultimamente, cada uma tem caminhado sempre um pouco no seu campo. A nós interessa-nos juntá-las.
P. – O declamador tradicional tende a desaparecer? Villaret e Mário Viegas já cá não estão... Será que a poesia necessita, hoje, de ser dita em outros contextos?
F.R.
– É um facto que a poesia tende a ficar cada vez mais guardada numa prateleira. Neste sentido, o projecto “Entre nós e as Palavras” vem mostrar mais uma vez que a poesia existe e está viva.

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