18/06/2009

Vários - Egypt: Music Of The Nile From The Desert To The Sea + Vários: Echos Du Paradis: Sufi Soul

Sons

5 de Dezembro 1997
DISCOS – WORLD

O paraíso entre o deserto e o mar

Vários
Egypt: Music of the Nile from the Desert to the Sea (9)

2xCD Virgin, import. Symbiose

Vários
Echos du Paradis: Sufi Soul (10)

2xCD Network, distri. Megamúsica

A chamada “world music” está para a música étnica como o jardim está para a floresta. A autenticidade, por vezes selvagem, em contraste com a sofisticação e o apuro formal. Nos últimos anos tem-se assistido à proliferação de ambas no panorama editorial, de discos, livros, revistas e espectáculos ao vivo, da revitalização dos clubes ao aumento dos grandes festivais. Uma das questões que se colocam é a de saber se é a música étnica – necessariamente conotada com determinadas especificidades espirituais, culturais, sociais e geográficas – que conduz o potencial auditor para o tipo de produto associado à “world music” ou se, pelo contrário, o caminho se processa no sentido inverso. Estamos em crer que a segunda hipótese será a mais correcta. É provável que os discos dos Chieftains, de Youssou N’ Dour ou das Zap Mama sejam os primeiros a ocupar as prateleiras em casa do melómano interessado em conhecer novas latitudes musicais. Daqui nascerá, ou não, o interesse pelas raízes genuínas que sustentam esses nomes mais mediáticos que, cada vez com mais força, se vão insinuando nos “tops” de vendas.
Faz, desta forma, todo o sentido que no último par de anos tenham surgido editoras decididas a investir num tipo de produto cultural menos imediato e mais contextualizado, para a chamada música étnica, tornando-a num objecto cultural não menos sofisticado do que as normais edições de “folk”, “world”, “fusão”, etc.
Deste grupo de editoras, a Network e a Ellipsis Arts... foram as primeiras a ter distribuição nacional, juntando-se-lhes agora a multinacional Virgin, sempre atenta às movimentações e motivações do mercado. Caracterizam-se estas edições, em geral, por conjuntos de dois ou mais CD, embalados numa apresentação invariavelmente luxuosa que inclui detalhados livros de apresentação, em geral bilingues ou trilingues, contendo textos informativos e fotos de inultrapassável qualidade.
“Echos du Paradis: Sufi Soul”, o mais recente lançamento da clássica Network, depois de “Desert Music” e “Road of the Gypsies”, é um compacto duplo (72m00 + 61m43) com exemplos das diversas tradições “sufi” do planeta, da Ásia Oriental ao Norte de África. O “sufi” é o asceta, por vezes anónimo, que dedica toda a sua vida à descoberta de si próprio e da divindade, dispensando os intermediários, ou seja, as religiões oficiais. É nesta medida que se pode comparar o místico “sufi” ao gnóstico medieval, também ele numa procura do contacto directo com o Divino. A música, enquanto movimento puro, constitui instrumento privilegiado para aceder a esse estado de transcendência. Música ritual, de elevação. Música de condução e êxtase, mas também música de dança (prática indissociável da ascese, para os “dervishes” do Norte de África, no seu rodopio em torno de si próprios até alcançarem o transe que os atira para a outra dimensão). Dança do corpo e da alma. Por isso, faz todo o sentido referirmos a equivalência entre a música “sufi”, ou dos “sufi”, com a “soul music”, a “gospel” e os espirituais negros, os quais partilham idêntico objectivo de conduzir o corpo e alma para a liberdade e para a alegria.
São, no total, 21 temas provenientes de regiões como o Irão, Damasco, Tajiquistão, Afeganistão, Marrocos, Turquia, Paquistão ou o Uzbequistão, recolhidos de muitas e variadas fontes, do Smithsonian Institute e Arquivos Internacionais de música popular, passando por diversas edições discográficas locais. Em “Sufi Soul”, os alaúdes, as percussões, as cordas, os sopros e, principalmente, as vozes, servem um propósito comum: a elevação acima do mundo das aparências. É nesse lugar, ao qual se pode aceder através de alguns sonhos, que se encontra a forma mais pura de beleza. Nusrat Fateh Ali-Khan, provavelmente o único artista presente nesta obra que é conhecido no Ocidente, sabia-o. Enquanto cantava.
Ao leitor, propomos que comece pela audição de “Durnalar sema’i“ (“a dança dos 12 crânios”), de Ashik Müslüm Sümbül, da Anatólia, Turquia. Ashik, “aquele que está apaixonado”, nome dado na Anatólia aos cantores tradicionais místicos, canta e toca “saz” (alaúde de braço longo), num crescendo arrebatador. Deixem fugir a alma, deixem dançar o corpo, deixem dançar a alma, deixem fugir o corpo. Além da música, está a Música. Escutemos ainda a derradeira lição, na conversa entre o mestre Jalâl al-Dîn e um discípulo céptico, com a mente fechada: “Não gosto do ruído do ranger das portas!” Réplica do mestre: “Eu ouço o som das portas quando se abrem, enquanto tu ouves o som das portas fechadas.”
“Egypt – Music of the Nile from the Desert to the Sea”, embora igualmente uma obra excepcional, não ostenta com a mesma evidência a espiritualidade e a dimensão do sagrado que brota, de forma quase violenta, de “Sufi Soul”. Agora é tempo e acompanharmos as diversas tradições musicais que eclodiram ao longo da História no rio Nilo, do deserto do Sara ao delta no Mediterrâneo, de povoações como Abu Simbel ou Ibrim, junto à nascente, até ao Cairo, cadinho de múltiplas influências, rurais e urbanas. É igualmente uma viagem, mas marcada pela areia, pelo sol e pelo mar. Pela inconstância das dunas, pela sensualidade ou pela inclemência do astro-rei, pela ilusão da miragem e a paz momentânea do oásis, pelo descanso final das ondas ou pelo fito do lucro, na chegada à cidade, onde tudo se compra e tudo se vende, as coisas e os corpos. A improvisação (“taqasin”) e a prece, os sons de contenção e as danças, por vezes confundindo-se com a convulsão, guiam o peregrino, numa rota onde a dor se confunde com o prazer. Os cantores do Nilo, os berberes, os beduínos, as mulheres e os homens a sós com o seu destino, marcham como um ente grandioso – o grande Sul em demanda do seu Graal.
No segundo compacto, já despertamos de súbito para o mundo exterior, das vozes discordantes e das muitas coisas separadas. É a electricidade que surge, e com ela uma outra dança, plena ainda de tradição e de autenticidade, mas marcada já pela tensão dos nervos. A música “rai”, incrustada nos hábitos das novas gerações, irrompe em remisturas de “Halat Al-Ânuâr”, por Amid, e de “Yû’ud Wa Yaghlef Wa Êstanâh”, por Gâber al-‘Azab. Programações. Tecno. A música do Alto Nilo contaminada pelos fumos e pelas solicitações do Cairo. Tempo de festa, na nova síntese da música “núbia” com a música árabe, em “Nahawand”, por Sharkiat.
E se, em “Sufi Soul”, Nusrat Fateh Ali-Khan era a estrela, aqui encontramos, já perto do final, Ali Hassan Kuban, “o patriarca da música ‘núbia’ do Cairo”. Mas assim como o mundo se move, também a música retorna à origem, para de novo se lançar em direcção ao futuro, numa espiral interminável, através de um cântico ritual dos “Bechari”, a última das tribos nómadas do deserto, em errância eterna entre o Nilo e o Mar Vermelho. Fica a dúvida. O velho filósofo grego Heraclito tinha ou não razão quando afirmava: “É impossível banharmo-nos duas vezes na mesma água do rio”? Experimentemos ouvir outra vez estes dois discos desde o princípio.

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