26/06/2009

A tradição é uma sandes de presunto [Gaiteiros De Lisboa]



Sons

2 de Janeiro 1998

Gaiteiros de Lisboa falam de “Bocas do Inferno”

A tradição é uma sandes de presunto

Com o seu segundo álbum, “Bocas do Inferno”, os Gaiteiros de Lisboa elevaram a fasquia relativa ao modo de fazer uma música que, por enquanto, não dispensa o material tradicional, embora olhe para ele como “um camponês olha para um porco gordinho, como presunto e toucinho”. “Bocas do Inferno” foi justamente considerado pelo Sons, um dos melhores álbuns portugueses do ano. Três dos Gaiteiros, Carlos Guerreiro, José Manuel David e Rui Vaz, explicaram o que mudou no grupo, na passagem da barbárie para o Inferno.

Entre críticas à produção do álbum de estreia e a satisfação do novo disco estar a vender-se bem, os Gaiteiros mudaram de atitude e de métodos de trabalho. Ou melhor, a diferença de um para outro disco é que agora têm um método de trabalho.
PÚBLICO – Assumiram uma mudança de atitude e de processos criativos neste novo álbum?
CARLOS GUERREIRO – Passou a haver um maior equilíbrio de energias no seio do grupo. A criação, embora repartida, obriga a certa altura a não perder mais tempo. Isto tem a ver com o facto de o José Manuel David e eu passarmos a ser um crivo de todo o trabalho criativo do grupo. Digamos que fomos mandatados para darmos a última palavra. Foi o que fizemos, em termos de produção, direcção musical e direcção de estúdio. Se calhar, o que se nota neste disco é uma maior uniformidade de atitude. O outro disco foi gravado de forma extremamente descontínua, As vezes debaixo de uma grande tensão e nem sempre nas melhores condições. Neste, nota-se o reflexo de um certo conforto em estúdio.
RUI VAZ – Houve processos muito diferentes. Quando acabámos o outro disco, o espectáculo ao vivo já estava feito. Neste momento, passa-se o inverso. Tem que se construir um espectáculo a partir do disco.
FM – Em termos de arquitectura musical, “Bocas do Inferno” é um disco bastante mais barroco que “Invasões Bárbaras”...
R. V. – No jazz acontece uma coisa semelhante. Há a improvisação, mas também houve sempre outra parte: os Duke Ellingtons que escreviam os temas e os orquestravam. No princípio, todos os temas dos Gaiteiros foram construídos a partir de uma improvisação colectiva. Mas quando um tipo está fechado em casa a pensar no que vai fazer e a arquitectar uma determinada estrutura sem ter ninguém que lhe dê na cabeça, é natural que haja coisas que saiam mais complexas...
JOSÉ MANUEL DAVID – ... a arquitectar a partir do seu enquadramento pessoal. É assim, faz-se um tema em casa: “É pá, tenho aqui um tema porreiro!” Depois levamo-lo ao colectivo e há sempre uma discussão: “Então e se fosse antes assim?” Para este disco, tivemos um orçamento mais reduzido, tivemos menos tempo, sendo obrigados a trabalhar de uma maneira em que eu e o Carlos tínhamos que responder pelas coisas. No outro disco, isso não se sentia tanto.
C. G. – No disco anterior, também tivemos uma disponibilidade maior, em termos de grupo. A malta ia manifestamente para o estúdio experimentar, gravar e ouvir as vezes que fossem precisas. Andámos assim durante três meses. Neste momento, nenhum dos elementos teria a disponibilidade para voltar a passar por essa “via sacra”.
R. V. – Tentávamos gravar a todo o custo, mas acabámos por despender muito tempo para fazer muito pouca coisa.
C. G. – Com esse tempo, tínhamos gravado um triplo-álbum...
P. – Toda a apresentação do disco e mesmo alguns títulos dos temas apontam para uma preocupação vossa em mostrar os instrumentos, alguns deles bastante estranhos, que utilizaram. É o lado didáctico dos Gaiteiros?
C. G. – A capa foi idealizada por mim. Lembro-me que, quando comecei a ouvir discos de música mais esquisita, como aquelas edições de Le Chant du Monde, uma das coisas que me dava um gozo imenso era pegar na capa. Inclusivamente, foi a partir de algumas dessa capas que comecei a construir os meus primeiros instrumentos, como flautas de Pã, afinadas como lá vinha. É importante as pessoas perceberem o que é que está a produzir determinado som. Se não, bastava pôr a marca do sintetizador...
P. – Não são poucos os instrumentos que utilizaram...
J. M. D. – Vinte e cinco! A sala de ensaio é um bocado como um museu. Até com instrumentos que nunca utilizámos.
P. – A escolha para cada tema deve ser difícil...
J. M. D. – Seria mais fácil se tivéssemos uma formação do tipo rock, com vocalista, guitarras, uns teclados, um baixo e uma bateria, cada um a tocar só aquilo.
C. G. – O que eu acho milagre é, por exemplo, os Rolling Stones conseguirem viver há 30 anos sempre a tocar os mesmos instrumentos! Mas isto também tem a ver com outra coisa. A música é um bicho que se pode agarrar por muitos sítios, pelos cornos, pelo rabo, pelas patas, pela pele, pelo lombo... A nossa atitude não tem nada a ver com a da maior parte dos outros músicos.
P. – Por onde é que vocês agarram?
J. M. D. – Pelos cornos! Uma pega como aquelas lá da minha terra, Vila Franca. Fazer o que fazemos, com os instrumentos que construímos, com os problemas todos que eles criam, porque não são instrumentos comprados em lojas, não é fácil. Não podemos ir ter com o representante e dizer: “Então esta merda não funciona?” No nosso caso, o representante é o Carlos.
P. – Menos a trompa, que foi comprada numa loja, não? Ou também já pensaram em desmontá-la e montá-la de outra maneira?
C. G. – Já pensámos em endireitá-la! [risos]
P. – Curiosamente, o álbum coloca uma ênfase muito forte nas vozes. Trabalharam-nas de forma diferente, em comparação com o disco de estreia?
C. G. – A diferença profunda, em termos de método de trabalho, foi termos tido um método de trabalho! [risos] O outro disco, entregámo-lo a um produtor [N.R. : José Mário Branco] que acabou por nos desiludir um pouco, já que não produziu nada. Foi um trabalho com ausência de produção.
P. – Continuam a respeitar as raízes tradicionais que, afinal de contas, ainda constituem a base de muitos dos temas do novo álbum?
J. M. D. – O “background” está lá. Não somos um grupo de música tradicional, nem nunca dissemos que éramos. Mas esse “background” permite-nos andar em torno dessa música com alguma segurança.
P. – Ainda ouvem discos ou gravações de recolhas tradicionais?
C. G. – Sim. Por exemplo, pego numa cassete de música de Trás-os-Montes e vejo o que é que há ali. Normalmente, aproveito logo o primeiro tema que ouço. No fundo, do que precisamos é de uma espécie de excipiente, de um corpo para vestir. As ideias que estão implícitas nessas recolhas fazem logo saltar uma quantidade de coisas. Para mim, da música tradicional, qualquer coisa serve.
R. V. – Chegámos à música tradicional pela via complicada. Já tínhamos uma série de coisas na cabeça. Quando ouvimos temas tradicionais, o que nos encanta mais são os seus elementos mais estranhos, mais fora do convencional.
C. G. – Eu olho para a música tradicional como um camponês olha para o seu porquinho, quando ele já está gordinho: presunto de um lado, toucinho do outro! [risos]
P. – Em “Bocas do Inferno” as gaitas-de-foles têm um papel mais discreto do que no álbum de estreia. Será que começa a fazer pouco sentido a designação do grupo?
R. V. – Costumo dizer que nos chamamos Gaiteiros de Lisboa porque em Lisboa não há gaiteiros. Acontece uma coisa engraçada na Galiza. O nome “gaiteiro” desencadeia logo algo na Galiza que não tem nada a ver connosco. Isso tanto pode funcionar a nosso desfavor como a nosso favor. Mas há quem na Galiza já ouça a nossa música como ela deve ser ouvida, uma música de pessoas que não se preocupam muito com a afinação, mas sim em não tocar sempre a mesma “muiñeira”.
P. – Já têm algumas indicações sobre as vendas de “Bocas do Inferno”?
C. G. – Já se venderam dois mil, ao fim de três semanas. As “Invasões Bárbaras” venderam cinco mil em dois anos...
P. – Depois da barbárie, o Inferno. Fizeram algum pacto com o Diabo?
J. M. D. – Talvez, metaforicamente. Para este disco, não. Mas para o próximo talvez venha a ser chamado mesmo.
C. G. – Devíamos pedir um subsídio para o disco ser vendido juntamente com aquelas acendalhas para lareira, “Lúcifer”! [risos]

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