10/06/2025

Guitarras elétricas e neuróticas [Sonic Youth]

 

Pop

 

A DISCOTECA

 

GUITARRAS ELÉTRICAS E NEURÓTICAS

 

Ruído, guitarras elétricas, melodias pop, paranóia urbana. A fórmula não é nova, mas ninguém como os Sonic Youth conseguiu aplicá-la com tanta eficácia. O segredo está em saber utilizá-la ao serviço de uma ideia. O novo álbum, “Goo”, dá a ideia que para a banda de Lee Ranaldo e Thurston Moore o pesadelo e a loucura não têm fim.

 


            Os Sonic Youth fazem efetivamente muito barulho. Em decibéis e no esgravatar dos cérebros e das consciências norte-americanas. São originários, como não podia deixar de ser, da cidade de Nova Iorque, “fétiche” privilegiado de todas as imagens e perversões. Encarnações de infinitas fantasias. Sonhos por vezes tornados pesadelos. A banda de Lee Ranaldo, Thurston Moore, Kim Gordon e Steve Shelley faz questão em dissecar minuciosamente as taras e os medos de uma América confrontada consigo própria, no meio de uma crise de abundância e de valores. Os temas que tratam nunca são cómodos e muito menos inocentes. Ferem, fazem mossa, inquietam, trazendo para a luz do dia o lado negro e tenebroso do “American way of life”. A religião, a violência, o sexo e a loucura são alguns dos seus temas preferidos, abordados exaustivamente ao longo da sua discografia sempre de uma forma coerente e esteticamente inovadora.

 

Ruído e Melodia

 

            Desde o álbum de estreia, “Sonic Youth”, que o som ficou definido – uma torrente ininterrupta de eletricidade, produzida pelas guitarras de Thurston Moore e Lee Ranaldo, criando o pano de fundo obsessivo sobre o qual se vão contando as histórias e delineando as melodias. São notórias algumas influências: Stooges (a voz de Iggy Pop aparece escondida entre as espiras de “Bad Moon Rising”...), MC5, Velvet Underground, Hawkwind (alusão óbvia no título “Silver rocket” de “Daydream Nation” e escute-se com atenção as progressões e linhas de baixo de “Kool thing” e “My friend Goo”, do novo álbum...) e Glenn Branca são as mais evidentes. Branca, com quem Moore chegou a tocar as suas sinfonias para orquestra de guitarras. Dos Velvets aprenderam que o ruído e a distorção nada valem se não existir o esqueleto que sustenta o caos – a melodia. Simples, direta, eficaz, construída a partir de uma sucessão imparável de “riffs” sobrepostos, num caudal sonoro monstruoso e hipnótico. Em termos exclusivamente sonoros os Sonic Youth, desde o início até “Goo”, têm progredido sobretudo em termos de apuramento de uma sonoridade cedo bem demarcada. Sem que se tenha perdido a “acidez” que caracteriza toda a sua música, há, contudo, e a partir de “Daydream Nation”, a preocupação de domesticar minimamente a fera sonora, abrindo espaço para estratégias mais subtis. Como aquelas já evidenciadas no projeto paralelo Ciccone Youth em “The Whitey Album”. Da ilustração sonora do pesadelo mergulhemos então no seu centro fantasmagórico. No sonho psicótico, colorido de sangue e humor negro.

 

Sonhos Invertidos

 

            “I dreamed a dream” era o título de uma das canções do álbum estreia, que prenunciava esse outro sonho imenso que é o duplo “Daydream Nation”, repositório exaustivo de alucinações coletivas e infinitos medos. Desde a imagética das capas à constante referência aos símbolos (de que são exemplo sintomático aqueles inscritos nos rótulos de “Daydream”, à semelhança do que fizeram os Led Zeppelin) e a conotações obscuras com o “voodoo” e outras práticas rituais, todo o universo dos Sonic Youth é um tratado de fazer inveja a mestre Freud. “Daydream Nation” é o inverso do sonho americano. Os Sonic Youth praticam o psicadelismo voltado do avesso.

            O amor (tema constante nas suas canções) é apenas sexo e este doença que se propaga como um vírus (“Touch me, I’m sick”, “single” dos S.Y./Mudhoney) para utilizarmos a metáfora do cineasta David Cronenberg, um dos polos de interesse extramusicais, partilhado pelos membros da banda. Entre o sangue e a morte, elementos inseparáveis do sexo, o “amor” é sinónimo de violência, o seu inverso – “evol”, “love” ao contrário, quase Evil, o Diabo, amigo de longa data dos Sonic Youth. “Confusion is Sex”. Charles Manson é o anti-herói satânico que personifica esta atitude. A mulher aparece nua nas capas, apenas como um corpo, objeto de assunção do poder. “Support the power of woman, use the power of man, use the word: fuck. The word is love” – como se diz em “Bad Moon Rising”. As figuras de Walt Disney da capa da “Sister”, Cinderella (“Cinderella’s big score” do novo “Goo”) e mesmo Louise Ciccone, imagens a um tempo cândidas e perversas, em que se revê grande parte da juventude americana, são monstros camuflados que escondem o lado oculto por detrás das aparências. A realidade de uma sociedade à beira da dissolução é a paranóia absoluta. “I’m insane” (de “Bad Moon Rising”), “Schizophrenia” (de “Goo”) gritam os Sonic Youth, e ao som dos gritos os putos começam a dançar. Esquizofrenia e ilusão, o real esvaziado de sentido por uma excessiva acumulação de informação, transforma-se em alucinação vertiginosa. Mensagens sem emissor nem recetor, circulando no vazio. Informação fantástica e estereográfica, transmitida via satélite “no dia em que o corpo morre”. A santidade elétrica. Ruído branco. “Stereo sanctity”, faixa de “Sister”, aludindo a “Radio free Albemuth”, versão prévia de “Valis”, obra grande de outro dos heróis dos S.Y., o escritor Philip K. Dick, esquizofrénico genial e assumido. Mundos dentro de mundos, “All comin’ from human imagination, daydreamin’ days in a daydream nation”.

 

O Som da Entropia

 

            A religião é o terceiro ponto chave da temática dos Sonic Youth. “I got a catholic block” (de “Sister”). Thurston Moore teve uma educação católica e não sabe o que lhe há-de fazer. Entre a santidade e o mal (“The good and the bad”, de “Sonic Youth”, “Cotton crown”, de “Sister”) e a crucificação (“White cross” de “Sister”), melhor é crucificar sim, mas Sean Penn (“The crucifixion of Sean Penn”, de “Evol”) e permanecer na tal santidade elétrica, branca e vazia, de “White cross” – “Stay away another sonic life”. Ou “Sonic Death”? E, mais além, o infinito, simbolizado graficamente em “Daydream Nation” e materialmente concretizado na repetição, simulacro demoníaco da eternidade, dos sons aprisionados no final de “Evol” e em cada espira, nos “instantes de ruído” de “From Here to Infinity” de Lee Ranaldo.

            Para já disponível na discoteca Contraverso, “Goo” (nome de uma rapariga da cena “punk” de L.A. em 1979 e personagem de um filme de Raymond Pettibon), ironicamente feminista, é “apenas” o capítulo mais recente dessa eterna viagem pelos confins do pesadelo americano, repetindo “ad infinitum”, de diferentes e novas maneiras, a face sempre mutável e ilusória da loucura. Os Sonic Youth continuam apostados em revelar a essência escura do psicadelismo (mesmo quando se disfarçam de “rappers” como em “Kool thing”, inspirado em LL Cool J e que conta com a participação de Chuck D. da Def Jam), disfarçados com as cores e estrelas que vestem os corpos fotografados e os sons. Astros aparentes, encobrindo buracos negros que tudo invertem e aspiram. Guitarras elétricas e nervosas. A galáxia da pop como o lugar mais perigoso do Universo. Implosão sónica. O som da entropia.

 

QUARTA-FEIRA, 11 JULHO 1990 VIDEODISCOS

João Peste & O Acidoxibordel - Groovy Noise - Dada Rock

 

Pop

 

PESTE NA CORDA BAMBA

 
JOÃO PESTE
GROOVY NOISE – DADA ROCK
Maxi, Ama Romanta



















           Não há dúvida que Peste gosta de arriscar e experimentar. Só que o experimentalismo é uma faca de dois gumes, podendo resultar em objetos esteticamente fascinantes, mas também em exercícios de pretensiosismo e de vazio. Digamos que neste seu novo disco, o músico, letrista e mentor da Ama Romanta vai de um extremo ao outro. No primeiro caso estão o segundo tema do lado A, “Cocaine, amigo” e, ligeiramente abaixo, “Clio software” que abre o segundo lado. O tema principal “Groovy noise” cumpre perfeitamente as funções que lhe foram destinadas – ser imediatamente atraente e acessível ao ouvido, sem ser vulgar e chamando a atenção para o resto das canções. É uma espécie de chamariz. O tema que em princípio fará vender o disco. O passo em falso é dado com o tema final – “Distante domingo (TL-2 Napoleon)”.

            Analisemos cada um mais detalhadamente e desde o princípio: “Groovy noise” é puro gozo, “Rádio fun fun” povoado de associações livres, “I want to be pop-a-lula in the tears of a clown” e alguns achados ao nível da produção que incluem um solo de guitarra de Jorge Ferraz (atualmente nos Santa Maria Gasolina Em Teu Ventre e inimigo declarado de Peste...) e uns toques de “scratch” da autoria de Rafael Toral. Basicamente é o velho rock ‘n’ roll coberto com a capa e o verniz modernistas.

“Cocaine, amigo” é muito boa (a canção, não a outra). Cantada em inglês, francês e português constrói a melodia a partir da música das palavras. Ambiência irreal e fonética, o cantor fazendo deslizar sonhadoramente a voz por entre os vapores inebriantes da irreal amiga e cantando “tous les mots sont des poèmes que se desfazem na minha [atenção, na ‘minha’ dele] mente”. Sucessão de imagens que, como nuvens, se desfazem ao ritmo flutuante dos ventos da imaginação. Neste tema Peste agradece a colaboração especial dos Sonic Youth, Jimi Hendrix, Butthole Surfers, Led Zeppelin, Kurt Schwitters, Almada Negreiros, Wyndham Lewis, Jean Cocteau e Pablo Neruda. Fica sempre bem um pouco de exibicionismo cultural...

            “Clio software” é outra alucinação sonora e João Peste revela-se um autêntico psicadélico. A letra refere-se à pessoa amada cujo cérebro, quando ligado ao ecrã do televisor, faz Peste “delirar com as imagens escondidas na sua mente”. Imagens de “losangos e quadrados de cores” que, afirma, “nem sabiam que existiam”. É o que faz abusar!... Trata-se de uma canção cibernética (seja lá o que isso for) que fala de “Cristo abençoando um prédio cinzento”, Coca-Cola, néons e Nova Iorque, sobre um ritmo eletrónico decalcado dos Suicide e o cantor lembrando vagamente os trejeitos vocais de Philip Oakley, dos Human League. Destaque para a intervenção de Rodrigo Amado, no saxofone. Apesar dos “encostos” o tema funciona, conseguindo criar o ambiente “Blade Runner” pretendido.

            “Distante domingo” é que se torna perfeitamente dispensável. João deixa de ser Peste para querer ser Villaret e o resultado é lamentável. O texto é declamado e enfia no mesmo saco o espírito de Rimbaud, o computador central de Helsínquia, soldados castanhos e um jacinto vermelho. Loucura controlada? Nem por isso. O “poema” não tem a força que lhe permita dispensar o apoio musical, que aqui se apaga quase completamente, afundando-se as palavras na voz monocórdica e dolente do seu autor.

Sintetizando: o maxi está muitos furos acima da produção média nacional, reiterando o que já se sabia – ser João Peste uma das personagens mais invulgares e provocadoras do nosso meio musical, capaz do melhor e do pior. Neste caso de ambos.

 

QUARTA-FEIRA, 11 JULHO 1990 VIDEODISCOS

Tango na noite [Fleetwood Mac]

 QUARTA-FEIRA, 11 JULHO 1990 local

 

Tango na noite

     ENTRE A PUREZA dos blues e o circo de multidões, foi longo o caminho percorrido pelos Fleetwood Mac, hoje sinónimo de sucesso conquistado à custa de golpes de rins e algumas concessões. Da formação inicial, constituída por Peter Green, Mick Fleetwood e John McVie, mantiveram-se os dois que lhe deram o nome – o Fleetwood e o Mac. Tornaram-se notadas as vocalistas: Christine McVie, classe e “savoir faire”; Lindsey Buckingham, um rosto bonito que passou; Stevie Nicks, loura atraente, contraponto juvenil da maior veterania da colega. As harmonias vocais tecidas pela voz de ambas são a principal atração do atual som da banda. Mas nem sempre foi assim. Há quem se lembre do antigo “hit” instrumental, “Albatross”. Ou dos bons álbuns “Kiln House”, “Future Games” e “Bare Trees”. Mas foi a partir de 1975 e do relançamento com “Fleetwood Mac” que a música se alterou profundamente, tornando-se comercialmente rentável. Vamos vê-los esta noite, num espetáculo ao vivo de 1978, Tango in the Night Live, no Cow Palace de São Francisco, e escutar alguns dos seus êxitos, como “Gipsy”, “Songbird” e “Oh Well”. O regresso das senhoras.

            Canal 1, às 14h50

À procura das raízes culturais da Europa [Encontros Musicais da Tradição Europeia]

 

cultura QUINTA-FEIRA, 5 JULHO 1990

 

Começam hoje em Évora, Famalicão e Oeiras os Encontros Musicais da Tradição Europeia

 

À procura das raízes culturais da Europa

 

À procura das raízes culturais. A partir de hoje e até dia 13, terão lugar em Évora, Famalicão e Oeiras, os primeiros Encontros Musicais da Tradição Europeia, organizados pela Cooperativa Cultural Etnia, sediada em Caminha. Da Galiza, Grã-Bretanha, Occitânia e Piemonte virão cultores de antigos sons. Paredes representará o espírito português: a fatalidade e a distância.

 

A iniciativa, que conta com o apoio das três câmaras municipais, tem como objetivo “incrementar o intercâmbio cultural no espaço europeu, com base na promoção e divulgação da música e cultura das suas grandes regiões, e fomentar o contacto entre grupos ou solistas ligados à música tradicional dessas mesmas regiões”. Pretende-se que a série de concertos passe a ter uma realização regular, sempre numa perspetiva de descentralização, procurando deste modo tornar o nosso país num ponto privilegiado de encontro entre as diversas culturas musicais europeias.

            Atuarão ao vivo, entre nós, alguns dos nomes mais importantes de cena “folk” atual, como Andrew Cronshaw, Emilio Cao, Manuel Luna, Perlinpinpin Folc, La Ciapa Rusa, para além do guitarrista português Carlos Paredes.

            Andrew Cronshaw é um músico britânico, responsável por uma original e sedutora fusão das sonoridades tradicionais com o jazz e a música clássica. Como se poderá comprovar pela audição do excelente “Till the Beast’s Returning”, álbum já há algum tempo disponível no mercado nacional. Outras obras importantes são os discos “A is for Andrew, Z is for Zither”, “Earthed in Cloud Valley” (com o guitarrista Martin Simpson), “Wade in the Flood” e o recente “The Great Dark Water”. Intérprete brilhante na cítara elétrica, estende os seus talentos por outros instrumentos – flautas chinesas, concertina, sintetizadores, percussão e o shawm, antepassado medieval do oboé.

            Emilio Cao é galego e já atuou várias vezes em Portugal, tendo colaborado com Fausto em “O Despertar dos Alquimistas” e com o grupo teatral “Os Comediantes”. Exímio executante de harpa, gravou entre outros o marco na evolução da música galega, “Fonte de Araño”. “No Manto da Auga”, “Amiga Alba e Delgada” e “Lenda da Pedra do Destiño” completam a sua atual discografia.

            Também espanhol (se considerarmos que a Galiza é Espanha, o que é duvidoso”...) é Manuel Luna, antropólogo, apaixonado pela música e cultura da região da Cantábria. Publicou vários ensaios e cerca de 30 discos de recolha etnomusicológica. Gravou com os “La Quadrilla” o álbum “Como Hablam las Sabinas”, já importado pela Etnia. A investigar são também “Em los Jardines del Sueño” e o novo “Os Galos de Londres”.

            No Sul de França, entre a Catalunha e a “Côte d’Azur”, fica a Occitânia, região natal dos Perlinpinpin Folc, um dos mais estranhos grupos do movimento folk gaulês. “Musique Traditionnelle de Gascogne”, “Gabriel Valse” e “Al Paїs d’Occitania” são alguns dos seus bons trabalhos. Sobre a sua música escreveu o crítico Pierre Corbefin: “Provoca-nos uma impressão quase opressiva, como se atravessássemos uma paisagem árida, despovoada, apenas habitada por um bater obscuro e pelos rumores da terra”.

            Os “La Ciapa Rusa” são italianos de Piemonte, a Noroeste do país. Combinam a excelência instrumental, através da utilização dos sons tradicionais da sanfona, do violino, do pífaro de pastor e da “musa” (gaita-de-foles piemontesa) com um notável trabalho de harmonias vocais.

            A representação portuguesa está a cargo de Carlos Paredes. Dele o mínimo que se poderá dizer é que é uma parcela importante da alma lusitana. Escutar a sua guitarra, contemplar o modo com se entrega a ela e à música que escorre pelos seus dedos até ao vibrar das cordas, é sentir o Fado e a distância. Ir ao sabor dos “Verdes Anos” até ao oceano sem fim.

            Uma palavra final de louvor para a Etnia que tem vindo a desenvolver um notável trabalho de recuperação e revitalização da cultura tradicional. Desde a realização de espetáculos, exposições e seminários, até à publicação de livros e à importação de pérolas discográficas folk, para já oriundas do país vizinho, como são os álbuns de Rosa Zaragoza, Amancio Prada, Manuel Luna, “La Musgana” e, brevemente, Emilio Cao.

 

PROGRAMA
 
ÉVORA – Praça do Giraldo
 
Quinta, 5 de Julho
MANUEL LUNA
PERLINPINPIN FOLC
 
Sexta, 6 de Julho
LA CIAPA RUSA
CARLOS PAREDES
 
Sábado, 7 de Julho
EMILIO CAO
ANDREW CRONSHAW
 
FAMALICÃO – Jardins da Câmara Municipal
 
Quinta, 5 de Julho
CARLOS PAREDES
ANDREW CRONSHAW
 
Sexta, 6 de Julho
MANUEL LUNA
LA CIAPA RUSA
 
Sábado, 7 de Julho
EMILIO CAO
PERLINPINPIN FOLC

OEIRAS – Auditório do Complexo Social das FA’s
 
Quinta, 5 de Julho
LA CIAPA RUSA
EMILIO CAO
 
Sexta, 6 de Julho
MANUEL LUNA
ANDREW CRONSHAW
 
Sábado, 7 de Julho
CARLOS PAREDES
PERLINPINPIN FOLC
 

UHF - Este Filme/Amélia Recruta

 
Pop
 
CONTRA OS CANHÕES
 
UHF
ESTE FILME/AMÉLIA RECRUTA
Maxi, Ed. Edisom

 
            











        Este disco prova-o. Os UHF assumem-se definitivamente como o principal grupo português de rock. Do verdadeiro, direto, descomplexado, mandando às urtigas quem neles insiste em ver D. Sebastião ou então, frustradas as tontas expetativas, uma corja de vendidos. Não são nem uma coisa nem outra. Nem se preocupam muito com isso. O novo disco é o melhor da banda, dos últimos tempos. A vários níveis. A começar pela capa, uma fotografia simulando um anúncio de filme, retratando a preto e branco uma cena de guerra. “Este Filme” e a legenda aposta – “Intenso e verdadeiro, humor... A história de um soldado”. Por baixo a respetiva ficha técnica. O cartaz, sobrepondo-se à impressão de uma entrevista a António Manuel Ribeiro. Na contracapa, um plano ampliado da mesma fotografia, nas cores da bandeira nacional.
            Quatro temas. Do lado A o já citado “Este Filme” e “Portugal dos Pequeninos”. O primeiro um tema lento e balanceado em que AMR mostra até que ponto tem evoluído como vocalista. Seguro, cantando como se tudo dependesse das palavras. Cantando-se a si próprio, como quase sempre, e ao país que a seguir retrata como o “dos pequeninos”. Este último o mais facilmente encostado ao som habitual da banda. O outro lado é excelente. “Amélia Recruta” é a canção mais forte do disco. Um “hit” inevitável, disparando rock ‘n’ roll sobre a instituição militar, com uma convicção eufórica e uma melodia irresistível. O “Rock de Cá” é uma crítica irónica e não muito feroz ao meio musical lusitano. Que, bem feitas as contas, não existe como tal.
            É também ao nível dos arranjos que a banda de Almada faz questão de afirmar a diferença. O modo como o saxofone de Renato Junior é projetado para a boca de palco, liberto em contorções furiosas, as intervenções guitarrísticas de Rui Rodrigues e Renato Gomes, este como convidado especial em “O Rock de Cá”, os teclados, imitando marimbas neste último tema, são alguns exemplos sintomáticos de que a banda de Almada não está disposta a dormir sobre os louros alcançados. Liberta de fantasmas, o povo é finalmente o único destinatário das canções e palavras do seu líder carismático, o mesmo que reconhece frontalmente serem os UHF o seu projeto a solo. Palavras e melodias para serem cantadas e assobiadas na rua pela grande massa anónima, a mesma que os levou ao lugar ímpar que ocupam, por direito próprio, no panorama musical luso. Quanto às polémicas e acusações que regularmente se levantam à sua volta, “os lobos uivam, a caravana passa”. Quer queiramos quer não, há que continuar a contar com os UHF e desde já como estes novos “argumentos e bandas sonoras” assinados por António Manuel Ribeiro e interpretados pelo “cast” UHF.
 
QUARTA-FEIRA, 4 JULHO 1990 VIDEODISCOS

09/06/2025

Orquestra da Luz [Electric Light Orchestra]

 

Pop

A DISCOTECA

 

ORQUESTRA DA LUZ

 

Jeff Lynne foi um dos inventores do conceito “pop sinfónico”, isto é, melodias engraçadas, vestidas, com pompa e circunstância, de violinos, violoncelos e, se possível, de uma orquestra sinfónica inteira. Os Electric Light Orchestra deram-lhe a fama e o proveito. Agora lançou um disco a solo, “Armchair Theatre”, gravado em casa e sem grandes truques.

 


Os Electric Light Orchestra, ou ELO, sigla pela qual são conhecidos, formaram-se em 1971, das cinzas dos Move, que nos dias derradeiros incluíam Lynne e Roy Wood, outro “sinfónico” assumido. A ideia que presidiu à formação da nova banda era dar à pop um rosto clássico, sem perder de vista a acessibilidade e sensibilidade típicas daquela. Não se tratava de juntar um grupo pop a uma orquestra (como já o haviam feito os Procol Harum, os Deep Purple e os Moody Blues), mas sim fazer um grupo à maneira de uma orquestra. A ambição era criar uma espécie de Sgt. Pepper’s Lonely Hearts Club Band de trazer por casa. A tarefa era possível graças aos talentos de multi-instrumentistas da dupla Lynne/Wood, desmultiplicados em mil e um instrumentos, no processo de gravação de estúdio, no qual ambos se revelaram peritos. Além de que os dois não eram de todo incapazes quanto ao jeito para compor melodias atraentes e acessíveis.

 

Roll over Beethoven

 

            O resultado obtido traduziu-se num híbrido musical que juntava os Beatles (“Strawberry Fields Forever” e “I Am The Walrus” foram a pedra de toque do projeto ELO) e os Queen no mesmo saco. Para alguns era insuportável e pretensioso. Mas a maioria consumidora foi sensível à ideia e aos discos que foram aparecendo. Em Setembro de 1978, os ELO tocavam, no Forum de Montréal, para uma assistência de perto de um milhão de pessoas. Os álbuns, a partir do êxito maciço de “A New World Record” (1976) e, sobretudo, “Out Of The Blue” (1977), eram sistematicamente platina. Os hits sucediam-se: “10538 Overture”, “Roll over Beethoven” (um clássico de Chuck Berry), “Livin’ Thing”, “Telephone Line” ou “Mr. Blue Sky” chegaram sem dificuldades ao Top Ten de ambos os lados do Atlântico. Por alturas de “Out of the Blue”, a banda apresentava, nos espetáculos ao vivo, uma réplica gigantesca de uma nave espacial, como era figurada na capa do disco, criando um “show” de luz e efeitos visuais na linha dos “Encontros Imediatos do 3º Grau”.

            O sucesso de Lynne deve-se, em parte, à já referida capacidade de compor canções que “ficam no ouvido”, aliada ao mérito do trabalho como produtor e engenheiro de som. Lynne, como Midas, transforma tudo o que toca em ouro (e platina). Não espanta, pois, que nomes de peso, como Roy Orbinson (um dos seus ídolos), Brian Wilson, Randy Newman, Tom Petty ou, mais recentemente, George Harrison, tenham recorrido aos seus serviços.

 

Em Casa É que É Bom

 

            Chegado ao topo e à situação de “bem instalado na vida”, juntou-se à banda de reformados de The Traveling Wilburys, ao lado dos gerontes Bob Dylan, Tom Petty e George Harrison. Por fim, farto de todas as companhias, resolveu investir nele próprio a solo. Fê-lo este ano com o álbum “Armchair Theatre”. A intenção e mensagem são óbvias: “Sou o melhor!”, grita-nos ele a cada espira, garantindo-nos que valeu a pena esperar. Se valeu ou não, cabe ao auditor decidir. O álbum continua a estética e orientação ELO, embora recorrendo a outros meios. Lynne fartou-se dos brinquedos mágicos do estúdio e afirma que o melhor que há é “gravar em casa”. Sem dígitos que lhe valham. Foi numa casa antiga, do séc. XV. “A sala de controlo era a casa de jantar. O piano foi gravado no salão. As vozes num corredor. As guitarras na cozinha e a bateria numa área da casa onde, em tempos, todas as botas eram guardadas”. Então, e na casa de banho, nada? O disco, caseiro como é, agradará decerto às domésticas (sem desprimor para estas) e àqueles mais dados ao recato e ao gosto conformista. Ao longo de quase todo o disco, a voz de Lynne parece-se muito com a de George Harrison (e George aparece mesmo, mas não há confusão). Em “Nobody Home”, quer parecer-se com a de Lou Reed. E em “Don’t Say Goodbye” com a de Presley. Fica-se pelo querer. Há três clássicos, mais ou menos assassinados para parecerem mais bonitinhos: “Don’t Let Go”, de Jesse Stone, “September Song”, de Maxwell Anderson e Kurt Weill e “Stormy Weather” de Ted Koehler e Harold Arlen. Trata-se, sem dúvida, de um bom esforço, que decerto será bem recompensado. Para os saudosistas, há ainda o bónus adicional de um duplo-coletânea, “The Very Best of the Electric Light Orchestra”, reunindo todos os êxitos da banda. Para Jeff Lynne este é o ano de nenhuns perigos.

 

VIDEODISCOS QUARTA-FEIRA, 4 JULHO 1990

Palavras e sons ["Camaleão na Sombra da Noite"]

 
Livros
MÚSICA
 
PALAVRAS E SONS
 
                Título: Camaleão na Sombra da Noite
               
                Introdução e Tradução de Alexandre Vargas
                Editora: Assírio & Alvim, 1990
                117 pp.
                1200$00
             

            O título refere-se ao segundo disco a solo do antigo líder de uma das bandas mais importantes da década de Setenta – os Van Der Graaf Generator. O livro em questão apresenta uma recolha de poemas/letras de canções de músico e poeta inglês, compilados e traduzidos, em edição bilíngue, por Alexandre Vargas. Uma introdução à obra do autor, uma entrevista efetuada no nosso país aquando da visita daquele em 29 de Setembro de 85, no hotel Tivoli, uma biblio-discografia e fotografias de arquivo, completam o livrinho. Alexandre Vargas devia ter vergonha. As suas “traduções” dos textos Hammillianos ofendem o autor do imortal “A Plague of Lighthouse Keepers”. Ofendem as línguas inglesa e portuguesa por igual. Envergonham o leitor, pelo atropelo constante, não dizemos já às mais elementares regras da gramática, como aquelas bem mais elementares respeitantes ao simples bom-senso. Mesmo desculpando erros do estilo “I shine, but shining, dying”, para Vargas, “brilho, mas a brilhar a morrer”, como é possível traduzir “delight” por “luz” ou “silver” por “silva”? Está certo que, como nos diz Borges, “o inglês é uma língua em que frequentemente há duas palavras para designar a mesma coisa”. Mas tanto?  Nalguns casos o Vargas assume a sua ignorância, referindo-se por exemplo a um disco com “dupla sleeve”. Mas logo a seguir é a própria língua inglesa que é posta em cheque, pecando por paupérrima. “Ice”, gelo? Nunca! “Olhos de gelo” é que está correto. Com Alexandre Vargas a tradução livre ganha dimensões inusitadas. Logo na nota do tradutor somos avisados: “Se por um lado qualquer tradução de um texto perde alguma coisa em relação à língua em que este foi originalmente escrito, por outro alguma coisa poderá também ganhar”. Ganha e de que maneira. Não se estranhe pois que “ Doubt casts its shadow/ on every perfect plan that is made” signifique “a dúvida poisa a sua sombra/ em cada plano perfeito louco que fazemos está a morte”. Com Vargas podemos ter a certeza que “nada se perde, tudo se transforma”. Restam finalmente o prazer e o consolo proporcionados pela leitura direta dos originais. Testemunho pungente das obsessões, solidão e alucinações cósmicas de Hammill, poeta perdido nos labirintos da condição humana. De “The Least We Can Do Is Wave To Each Other” a “And Close As This”, um percurso solidário de palavras e de sons.
 
 
LEITURAS TERÇA-FEIRA, 3 JULHO 1990

Poucos mas bons [discos importados]

 

Notícias

 

POUCOS MAS BONS

 

            Os melhores discos quase ninguém os conhece. Como assim? Vamos explicar. Um exemplo: os “O Yuki Conjugate” são uma obscura e excelente banda, praticante de uma música misteriosa e fascinante, não facilmente catalogável. Devia ser conhecida no planeta inteiro, mas de facto apenas 268 dos seus habitantes ouviram falar dela, entre os quais cinco são portugueses. Uma ou outra discoteca nacional, daquelas que arriscam e importam, manda vir cinco exemplares. Quatro desses portugueses adquirem o disco, dez segundos após este ter sido colocado no expositor da loja ou mesmo antes. O disco restante é levado por engano por alguém que pensava tratar-se de Yoko Ono. O quinto português conhecedor fica a chuchar no dedo porque vive em Viseu, não soube que o disco estava disponível, ou não foi suficientemente rápido. De entre os contemplados, um escreve para algum lado e faz uma crítica elogiosa. Trinta pessoas leem o artigo e pretendem adquirir o disco. A discoteca em questão vai importando quantidades progressivamente maiores de exemplares à medida que a procura aumenta. Satisfeitos todos os pedidos, passa-se à aposta seguinte. Seis meses depois, uma editora ligada a uma multinacional ouviu dizer que o disco era um sucesso de vendas no mercado independente e resolve importar 10.000 exemplares do dito. Não se vende nenhum. A editora, abraços com um produto que desconhece e que não sabe como promover, diz que o disco é mau e não vende. Segue-se o habitual estendal de lamentações de mais uma história triste do nosso pobre panorama editorial.

            Vamos lá ver se conseguimos alterar o estado de coisas. Para já, escrevendo e informando regularmente, neste canto aconchegado, sobre bons e desconhecidos nomes e discos que regularmente por cá aterram, nas tais discotecas especializadas.

            Por exemplo, “Title In Limbo” – um estranho objeto vinílico gravado a meias pelos anónimos e bizarros Residents e os Renaldo And The Loaf, ainda mais bizarros e divertidos. “Title” é uma ópera épico-cómica eletrónica em que o cantor principal é Bugs Bunny. Foetus, depois do duplo “Sink”, tem já um novo maxi com três temas: “Butterfly Potion” é o principal. “Smiles, Vibration & Harmony” é uma homenagem de variadas bandas (entre as quais os Sonic Youth) ao ex-Beach Boy Brian Wilson, 30 anos depois, de novo na berra. Finalmente, para os fanáticos do folk, o álbum estreia dos Ad Vielle Que Pourra, dois canadianos, dois belgas e um bretão apostados em tornar a música tradicional de expressão francesa num formidável espetáculo de virtuosismo e inspiração. As discotecas  Contraverso e VGM fazem as despesas.

 

QUARTA-FEIRA, 27 JUNHO 1990 VIDEODISCOS

Cabaret da morte [Cabaret Voltaire]

 

Pop

A DISCOTECA

 

CABARET DA MORTE

 

Os Cabaret Voltaire, outrora preocupados com a utilização subversiva e ameaçadora da eletrónica como “mind surgery”, manipulação da mente, criação de fantasmas sintéticos, gravaram agora “Groovy Laidback  and Nasty”, álbum rendido a um comercialismo de plástico e à dança como exercício sonambúlico e imbecil. É pena.

 


Para todos aqueles que têm seguido com atenção e alguma devoção as estratégias ambíguas da dupla Stephen Mallinder/Richard H. Kirk, responsável por não poucos momentos realmente arrepiantes de eletricidade em forma de música ao serviço das artes do demónio, é doloroso assistir à decadência de uma banda que da originalidade e radicalismo iniciais reteve apenas os espasmos e automatismos agora esvaziados de sentido. Sejamos então um pouco saudosistas, voltando atrás e recapitulando os dias de perigo e glória de um grupo de terroristas sónicos que certa vez se lembrou das granadas “dada”, lançadas de um café a que chamaram “Cabaret Voltaire”.

 

Indústrias Pesadas

 

            Sheffield, Inglaterra, indústrias pesadas, 1973 – berço onde foram criadas aberrações monstruosas, híbridos violentos e vingativos que, anos mais tarde, viriam a impor novas regras aos desorientados “punks”, confusos entre os alfinetes e um niilismo ideológico e musical, cedo esgotado no vazio de alternativas. A chamada “música industrial” resolvia o dilema. Depois da violência e da destruição gratuita, a violência maior da despersonalização e dos totalitarismos infernais. Máquinas gigantescas e trituradoras a reduzir o humano à condição de escravo, numa nova sociedade metálica, inteligente e implacável. E o reino dos senhores, super-homens (o “Empire State Human” dos Human League), máquinas também, para quem Nietzsche era afinal apenas um pobre louco humano que até chorava, comovido, abraçado aos seus irmãos cavalos. Os Cabaret Voltaire e os Human League personificavam esta atitude, utilizando armas diferentes para alvejar um mesmo alvo – a criação de uma música desmesurada ao serviço de filosofias e propósitos sombrios e politicamente inconfessáveis. Os Cabaret Voltaire permaneceram mais tempo no inferno.

 

Fascinação

 

            “Mix-up” de 1979 abriu as hostilidades, correspondendo à fase experimental de toda a discografia gravada para a Rough Trade. Montagens e desmontagens de ruídos e vozes parasitárias. Fitas magnéticas estragadas, repetindo-se infinitamente, e sequenciadores com o freio nos dentes fazem da audição deste disco uma aventura no reino da escuridão e do horror. Em “Heaven and Hell” uma voz grita em simultâneo as duas palavras; dor e prazer confundidos na vertigem do tempo, acelerado até à imobilidade. Visão terrífica da realidade, transformada em instante fotográfico. Relâmpago de medo.

            Depois de um álbum ao vivo, “Live at the Y.M.C.A., 1979”, a obra-chave “The Voice of America”. Manifesto impressionante da estética do pânico (mais tarde cultivada por grupos como os Coil ou Clock DVA) e da manipulação subliminar do inconsciente. “Kneel to the Boss”, “News from Nowhere” ou “Messages Received” são títulos elucidativos das intenções de Kirk, Mallinder e dezenas de homens-sombra, apostados na substituição dos alicerces e símbolos da sociedade ocidental cristã por outros de sinal contrário.

            Em “Red Mecca” (1981), o monstro despe a máscara. O nome do diabo é finalmente proferido. “Spread the Virus”. Fanfarra apocalíptica e tenebrosa. O ritmo desumano e inexorável da agonia e das trevas finalmente libertas. Música da morte. Para trás ficavam a elegância e beleza dos computadores dos Kraftwerk e a sedução longínqua e numenal da missa negra celebrada por Bowie em “Low”.

            “Three Mantras” é um obscuro exemplar de música eletrónica ritual e “2x45” (1982) investe pela primeira vez num “funky” de tons orientais, apelando à dança como veículo privilegiado de divulgação ideológica. Em 1983, dois discos – “Hai!”, gravado ao vivo no Japão, e “The Crackdown” (primeiro, gravado para a Some Bizarre/Virgin, com honras de edição nacional e já sem Chris Watson, que viria a formar o obscuro Hafler Trio), fracasso artístico rotundo, fruto de uma mal contida e mais mal dirigida ânsia comercial. Nem com “Fascination” (incursão descarada no território dos Human League) ou a capa de Neville Brody, os Cabaret Voltaire lograram alcançar o êxito entretanto atingido pela Human League, já então rainha de discoteca pela mão da sua “pop star” Philip Oakey.

 

Visão Dupla ou Falta de Visão?

 

            “Johnny Yesno” (1982), banda sonora de um vídeo da “Doublevision”, produzido e realizado por Peter Care, e “Micro-Phonies” (1984) são duas tentativas relativamente bem sucedidas de retorno à linha dura, no segundo o sampler servindo de brinquedo nas técnicas de “scratching” e “cut-up” em que Kirk e Mallinder se tinham tornado mestres. Ganhava-se em sofisticação sonora o que se perdia em inspiração. “The Covenant, the Sword and the Arm of the Lord” (1985, título de uma seita americana neo-nazi) consegue vencer onde outros discos soçobraram – aliando o experimentalismo tornado imagem de marca a uma acessibilidade capaz de alguns cometimentos em termos comerciais. “Code” (1987) e sobretudo o recente “Groovy, etc.” (gravados para a Emi-Parlophone) não oferecem quaisquer dúvidas quanto ao esgotamento do filão. Este último uma autêntica farsa, com a voz de Mallinder a tentar a todo o custo parecer-se com a de Green Gartside, dos Scritti Politti, enganiçando-se inglória e ridiculamente sobre um fundo rítmico “house” oportunista. Como boas recordações da época áurea de todas as perversidade restam ainda “Eight Crepuscule Tracks”, gravado para a editora belga Les Disques du Crépuscule, e o maxi duplo “Drinking Gasoline”. O Cabaret original fechou as suas portas.

 

QUARTA-FEIRA, 27 JUNHO 1990 VIDEODISCOS

06/06/2025

Immaculate Fools - Another Man's World

 

Pop

 
IMMACULATE FOOLS
Another Man’s World
LP, CCD, imp. CBS












            A característica mais notável destes loucos imaculados era a extraordinária semelhança entre a voz do seu vocalista, Kevin Weatherill, e a do mestre dos mestres Peter Hammill. Neste novo álbum essa característica diluiu-se, e o que resta não é de molde a suscitar grandes entusiasmos. Antes pelo contrário. Se a música dos Fools já não era, nos primeiros álbuns, nada por aí além, então agora pouco se aproveita. A banda esforça-se, mas os resultados são nulos. Esforça-se sobretudo para se parecer com algo ou alguém que venda, procurando tirar dividendos da(s) parecença(s). Assim, Kevin imita (mal) sucessivamente John Cale, Neil Diamond, Mark Knopfler e por aí fora, tornando “Another Man’s World” (título bem escolhido...) um chorrilho de asneiras musicais, de uma pop pirosa e pretensamente épica, destinada à sopa das FM. O que faz correr Kevin Weartherill? Não há quem corra com ele?

 

QUARTA-FEIRA, 20 JUNHO 1990 VIDEODISCOS

The Durutti Column - Womad Live

 

Pop

 

DURUTTI COLUMN
Womad Live
CD Mini, Factory; imp. VEM


       








     

        Cada objeto musical produzido pela dupla Vini Reilly-Bruce Mitchell devia ser portador do rótulo “frágil”. Com efeito, a música dos Durutti Column possui a elegância e a consistência do cristal. É coisa para gente fina, se bem que às vezes seja mais apetecível um copázio de tinto ou uma caneca de cerveja. É uma questão de ocasião. Este “Womad Live” não foge à regra. Ao mínimo movimento mais brusco, à mais leve deslocação de sensibilidade, a música esvai-se em mil cintilações fugidias, em busca de outros céus. Quatro temas: “Otis”, “English Landscape Tradition”, “Finding The Sea” e “Bordeaux”, gravados ao vivo no festival “Womad”, em 1988, com o auxílio do teclista Andy Connell e da voz de Liu Sola, que nos delicia cantando em chinês em “Otis” e “Sea”, ao contrário dos gorgolejos que se podem ouvir no álbum “Vini Reilly”. A guitarra etérea do rapaz de ar doentio e a bateria – que obsta à total transformação do som em nuvem – de Bruce Mitchell, voltam a construir os subtis e aéreos alicerces de um palácio de espelhos e miragens multicores que nem os aplausos iniciais do público conseguem fazer descer ao mundo material.

 

QUARTA-FEIRA, 20 JUNHO 1990 VIDEODISCOS

Foetus Inc. - Sink

 

Pop

 

FOETUS INC.
Sink
LP e CD Self-Immolation/Some Bizarre, import. Contraverso


            










            Foetus Under Glass, You’ve Got Foetus On Your Breath, Phillip And His Foetus Vibrations, Foetus Over Frisco, Scraping Foetus Off The Wheel, Foetus Art Terrorism, The Foetus of Excellence, The Foetus All Nude Revue, Foetus Interruptus e agora Foetus Inc., são outras tantas designações para a genial paródia de Jim Foetus, alias Clint Ruin, alias Jim Thirwell. “Sink” é o sexto álbum da personagem, como os anteriores (“Deaf”, “Ache”, “Hole”, “Nail” e “Thaw”) com apenas quatro letras. O disco em questão é duplo e reúne máxis antigos não incluídos em álbuns anteriores. Foetus (chamemos-lhe assim, por comodidade de escrita) encarna o espírito niilista dos Einsturzende Neubauten, substituindo a distância intelectual e conceptual da banda berlinense por uma vivência pessoal, em carne-viva, do caos e da desagregação. “The Art of Falling Apart”, se quisermos, parafraseando o título dos Soft Cell, processada metodicamente segundo técnicas de demolição/reconstrução da personalidade, referidas, de resto, no termo “Self-Immolation”, escolhido para selo de tão subversivas atividades. Crucificação, chacina, doença, violência, poder, são alguns dos tópicos preferidos e magistralmente tratados na totalidade da obra do mestre do horror, atingindo dimensões épicas à custa de um tratamento sonoro grandioso e de uma utilização única das potencialidades da voz. Foetus transforma a agonia em espetáculo de “music-hall”, dando a ver, sob uma luz intoleravelmente branca e clínica, as chagas abertas de uma humanidade à beira do fim. Depois de Foetus o “show” já não pode prosseguir.

 

QUARTA-FEIRA, 13 JUNHO 1990 VIDEODISCOS

António Manuel Ribeiro e os gigantes do nada

 

Na capa

 

ANTÓNIO MANUEL RIBEIRO E OS GIGANTES DO NADA

 

António Manuel Ribeiro recusa a imagem do herói e mártir incompreendido, sobrevivente de uma história atribulada e sem garantias de final feliz – a do rock português. Não se considera corrompido pelo sistema e promete gravar canções dos UHF acompanhados de orquestra sinfónica.

 


            PÚBLICO – A sua imagem, como músico de rock, é a do mártir incompreendido, uma espécie de Jim Morrison português...
            António Manuel Ribeiro – Tenho muito pouca vontade de ser mártir. Sou de facto sobrevivente, mas não me identifico com qualquer tipo de movimento. A minha posição é extremamente individualista. Muitas vezes meti-me em lutas e, quando olhei para trás, via que era um general sem tropas. Já percebi as teias manhosas em que se enreda grande parte da música portuguesa. Não estou metido em nada. Não tenho nada a ver com isto.
            P. – Ultimamente tem dado a imagem de homem bem instalado na vida. Casou, dá entrevistas à “Nova Gente”... É possível conciliar esta imagem com aquela de rebeldia geralmente associada aos UHF?
            R. – Os UHF foram, são e serão uma banda de rock duro, enquanto acharmos que é assim que deve ser. Não é incompatível com entrevistas na “Nova Gente”. Considero isso apenas o cumprir das marcações normais que a editora faz. Aceito-as como parte do meu trabalho, mais nada e muitas vezes nem tenho controlo sobre as coisas que se passam, mas também não me preocupo. Já houve uma fase em que fui ingénuo. Tinha a vontade de me explicar, mas cada vez que isso acontecia gozavam comigo. Essa fase passou.
            P. – Os UHF consideram-se uma banda da oposição. Por outro lado são das que mais vende. Luta contra o sistema mas aceita as vantagens e o lucro que este lhe proporciona... Os Xutos e Pontapés andam a publicitar a Sumol...
            R. – Nunca faríamos anúncios a um refrigerante. Faríamos sempre a uma marca de “whisky”... Agora a sério, cada um de nós vive daquilo que ganha. Não estamos corrompidos. Continuamos o mesmo tipo de pessoas. Por exemplo, em relação à nossa editora, não somos oposição mas assumimos uma posição crítica.
            P. – O cinismo é necessário?
            R. – Sou muito cínico, sobretudo a negociar. Quando me sento à mesa para negociar qualquer tipo de contrato tenho de levar a água ao meu moinho. Tenho sempre que levar a minha avante.
            P. – O intimismo das letras pode ser uma fuga possível?
            R. – É verdade. Mas vou dizer outra coisa: “Noites Negras de Azul” e “Lugares Incertos”, ambos de 88, eram álbuns que falavam sobretudo do amor, eram intimistas. Agora que casei já não falo do amor. É um bocado a minha filosofia de vida. Gosto de andar ao contrário. Gosto pouco de andar em rebanhos, de pensamento, de atitudes ou de vestuário... Como já disse, sou um individualista.
            P. – Que vai envelhecendo... Será como o Mick Jagger, aos 50 anos ainda a tocar rock?
            R. – Não estou preocupado com isso. Não vou abandonar. Depois de uma gravação fico vazio, em ressaca, como se tivesse parido. Outras vezes fico mesmo farto... Mas gosto disto.
            P. – Os UHF têm permanecido quase sempre na crista da onda. Qual o segredo?
            R. – Digamos que têm andado sempre por lá perto. Penso que temos feito um trabalho coerente. Se alguém não gosta, deite fora, aceitamos isso. Mas às vezes sinto o descalabro à minha volta. Somos gigantes do nada. As pessoas contam mentiras na imprensa. Também já o fiz. Hoje não estou interessado em fazê-lo. Não é nada bom para a música portuguesa. Estamos todos a viver de balões de oxigénio, fora os UHF e mais três ou quatro bandas que recusam essa inflação de mentiras.
            P. – Que tipo de mentiras?
            R. – Não quero entrar em pormenores. Digressões no estrangeiro que são falsas, “cachets” inflacionados e depois negociados com 30 por cento de desconto. Digressões neste país não há. Nunca houve. O que há são contratações que vão sendo aceites.
            P. – Não têm projetos para o estrangeiro?
            R. – Temos, claro. Não quero falar de concertos dos meus colegas no estrangeiro, mas tenho que dizer que foram quase sempre desastrosos. Os UHF são sinceros ao ponto de admitir já ter perdido dinheiro em atuações no estrangeiro. Tocamos em salas cheias... de emigrantes. Em Paris estavam 5 franceses entre 1500 pessoas. Fomos a Paris tocar para o Minho e Alentejo.
            P. – Porque é que isso acontece?
            R. – Porque em Paris existem outras 50 salas idênticas com concertos, à mesma hora. São outros meios. Para quê fazer como colegas meus, que dizem que fizeram espetáculos incríveis aqui e ali, em salas de 200 lugares?...
            P. – Como situa os UHF perante a concorrência?
            R. – Somos mal vistos. A maior parte das vezes, as pessoas, não digo que virem a cara, mas levam um certo tempo para nos enfrentar. Nos bares, na noite, nos concertos. Temos sido sempre colocados num gueto. Não é que queiramos passar por vítimas. Temos uma relação mais íntima e próxima do nosso público que a maior parte dos outros artistas portugueses da mesma área, que inflacionam uma certa pose e depois é tudo mentira.
            P. – E a vossa relação com o público?
            R. – As pessoas criaram uma imagem deturpada de nós. A imagem de rebeldia foi, confesso, vendida por mim. Hoje diz-se que estamos mais calmos. Não estamos. Há dias viemos de um concerto, andámos 400 quilómetros e fomos para a pândega em Lisboa. Chegámos a casa às cinco da manhã, virados do avesso. Os UHF têm um ouvido popular. Conseguem perceber o gosto do público. É isso que queremos: compor canções que todos possam trautear. Há por aí projetos musicais engraçados mas totalmente afastados do público. Não vendem. Não ponho de parte a hipótese do rock português pura e simplesmente acabar. Acaba-se esta porcaria toda. As editoras andam de cabelos no ar sem saber o que fazer. Se calhar não há solução.
            P. – Alguma vez pensou em trabalhar fora da área específica do rock?
            R. – Gostaria de gravar um disco com canções dos UHF pouco conhecidas, trabalhadas com orquestra de modo a dar-lhes um cunho totalmente diferente.
            P. – Que é para si o rock?
            R. – É uma questão física... O apelo à dança. Permite a agressividade, a agressão. Pertenço a uma geração de agressão. Tinha 20 anos em 74. Antes dessa data e mesmo depois, só havia baladeiros. Ganhei aversão a esse tipo de música. Paz, amor e uma viola. “Hippismos” retardados. O Maio de 68 consumido fora de horas. Quando começámos, todos esses sujeitos estavam contra nós. Lembro-me de, uma vez, um digno cantor da nossa praça afirmar publicamente que os UHF não tinham direito cultural de ir à festa do “Avante. O rock, nessa altura, tinha toda a razão de ser.

 

VIDEODISCOS QUARTA-FEIRA, 13 JUNHO 1990