10/06/2025

Guitarras elétricas e neuróticas [Sonic Youth]

 

Pop

 

A DISCOTECA

 

GUITARRAS ELÉTRICAS E NEURÓTICAS

 

Ruído, guitarras elétricas, melodias pop, paranóia urbana. A fórmula não é nova, mas ninguém como os Sonic Youth conseguiu aplicá-la com tanta eficácia. O segredo está em saber utilizá-la ao serviço de uma ideia. O novo álbum, “Goo”, dá a ideia que para a banda de Lee Ranaldo e Thurston Moore o pesadelo e a loucura não têm fim.

 


            Os Sonic Youth fazem efetivamente muito barulho. Em decibéis e no esgravatar dos cérebros e das consciências norte-americanas. São originários, como não podia deixar de ser, da cidade de Nova Iorque, “fétiche” privilegiado de todas as imagens e perversões. Encarnações de infinitas fantasias. Sonhos por vezes tornados pesadelos. A banda de Lee Ranaldo, Thurston Moore, Kim Gordon e Steve Shelley faz questão em dissecar minuciosamente as taras e os medos de uma América confrontada consigo própria, no meio de uma crise de abundância e de valores. Os temas que tratam nunca são cómodos e muito menos inocentes. Ferem, fazem mossa, inquietam, trazendo para a luz do dia o lado negro e tenebroso do “American way of life”. A religião, a violência, o sexo e a loucura são alguns dos seus temas preferidos, abordados exaustivamente ao longo da sua discografia sempre de uma forma coerente e esteticamente inovadora.

 

Ruído e Melodia

 

            Desde o álbum de estreia, “Sonic Youth”, que o som ficou definido – uma torrente ininterrupta de eletricidade, produzida pelas guitarras de Thurston Moore e Lee Ranaldo, criando o pano de fundo obsessivo sobre o qual se vão contando as histórias e delineando as melodias. São notórias algumas influências: Stooges (a voz de Iggy Pop aparece escondida entre as espiras de “Bad Moon Rising”...), MC5, Velvet Underground, Hawkwind (alusão óbvia no título “Silver rocket” de “Daydream Nation” e escute-se com atenção as progressões e linhas de baixo de “Kool thing” e “My friend Goo”, do novo álbum...) e Glenn Branca são as mais evidentes. Branca, com quem Moore chegou a tocar as suas sinfonias para orquestra de guitarras. Dos Velvets aprenderam que o ruído e a distorção nada valem se não existir o esqueleto que sustenta o caos – a melodia. Simples, direta, eficaz, construída a partir de uma sucessão imparável de “riffs” sobrepostos, num caudal sonoro monstruoso e hipnótico. Em termos exclusivamente sonoros os Sonic Youth, desde o início até “Goo”, têm progredido sobretudo em termos de apuramento de uma sonoridade cedo bem demarcada. Sem que se tenha perdido a “acidez” que caracteriza toda a sua música, há, contudo, e a partir de “Daydream Nation”, a preocupação de domesticar minimamente a fera sonora, abrindo espaço para estratégias mais subtis. Como aquelas já evidenciadas no projeto paralelo Ciccone Youth em “The Whitey Album”. Da ilustração sonora do pesadelo mergulhemos então no seu centro fantasmagórico. No sonho psicótico, colorido de sangue e humor negro.

 

Sonhos Invertidos

 

            “I dreamed a dream” era o título de uma das canções do álbum estreia, que prenunciava esse outro sonho imenso que é o duplo “Daydream Nation”, repositório exaustivo de alucinações coletivas e infinitos medos. Desde a imagética das capas à constante referência aos símbolos (de que são exemplo sintomático aqueles inscritos nos rótulos de “Daydream”, à semelhança do que fizeram os Led Zeppelin) e a conotações obscuras com o “voodoo” e outras práticas rituais, todo o universo dos Sonic Youth é um tratado de fazer inveja a mestre Freud. “Daydream Nation” é o inverso do sonho americano. Os Sonic Youth praticam o psicadelismo voltado do avesso.

            O amor (tema constante nas suas canções) é apenas sexo e este doença que se propaga como um vírus (“Touch me, I’m sick”, “single” dos S.Y./Mudhoney) para utilizarmos a metáfora do cineasta David Cronenberg, um dos polos de interesse extramusicais, partilhado pelos membros da banda. Entre o sangue e a morte, elementos inseparáveis do sexo, o “amor” é sinónimo de violência, o seu inverso – “evol”, “love” ao contrário, quase Evil, o Diabo, amigo de longa data dos Sonic Youth. “Confusion is Sex”. Charles Manson é o anti-herói satânico que personifica esta atitude. A mulher aparece nua nas capas, apenas como um corpo, objeto de assunção do poder. “Support the power of woman, use the power of man, use the word: fuck. The word is love” – como se diz em “Bad Moon Rising”. As figuras de Walt Disney da capa da “Sister”, Cinderella (“Cinderella’s big score” do novo “Goo”) e mesmo Louise Ciccone, imagens a um tempo cândidas e perversas, em que se revê grande parte da juventude americana, são monstros camuflados que escondem o lado oculto por detrás das aparências. A realidade de uma sociedade à beira da dissolução é a paranóia absoluta. “I’m insane” (de “Bad Moon Rising”), “Schizophrenia” (de “Goo”) gritam os Sonic Youth, e ao som dos gritos os putos começam a dançar. Esquizofrenia e ilusão, o real esvaziado de sentido por uma excessiva acumulação de informação, transforma-se em alucinação vertiginosa. Mensagens sem emissor nem recetor, circulando no vazio. Informação fantástica e estereográfica, transmitida via satélite “no dia em que o corpo morre”. A santidade elétrica. Ruído branco. “Stereo sanctity”, faixa de “Sister”, aludindo a “Radio free Albemuth”, versão prévia de “Valis”, obra grande de outro dos heróis dos S.Y., o escritor Philip K. Dick, esquizofrénico genial e assumido. Mundos dentro de mundos, “All comin’ from human imagination, daydreamin’ days in a daydream nation”.

 

O Som da Entropia

 

            A religião é o terceiro ponto chave da temática dos Sonic Youth. “I got a catholic block” (de “Sister”). Thurston Moore teve uma educação católica e não sabe o que lhe há-de fazer. Entre a santidade e o mal (“The good and the bad”, de “Sonic Youth”, “Cotton crown”, de “Sister”) e a crucificação (“White cross” de “Sister”), melhor é crucificar sim, mas Sean Penn (“The crucifixion of Sean Penn”, de “Evol”) e permanecer na tal santidade elétrica, branca e vazia, de “White cross” – “Stay away another sonic life”. Ou “Sonic Death”? E, mais além, o infinito, simbolizado graficamente em “Daydream Nation” e materialmente concretizado na repetição, simulacro demoníaco da eternidade, dos sons aprisionados no final de “Evol” e em cada espira, nos “instantes de ruído” de “From Here to Infinity” de Lee Ranaldo.

            Para já disponível na discoteca Contraverso, “Goo” (nome de uma rapariga da cena “punk” de L.A. em 1979 e personagem de um filme de Raymond Pettibon), ironicamente feminista, é “apenas” o capítulo mais recente dessa eterna viagem pelos confins do pesadelo americano, repetindo “ad infinitum”, de diferentes e novas maneiras, a face sempre mutável e ilusória da loucura. Os Sonic Youth continuam apostados em revelar a essência escura do psicadelismo (mesmo quando se disfarçam de “rappers” como em “Kool thing”, inspirado em LL Cool J e que conta com a participação de Chuck D. da Def Jam), disfarçados com as cores e estrelas que vestem os corpos fotografados e os sons. Astros aparentes, encobrindo buracos negros que tudo invertem e aspiram. Guitarras elétricas e nervosas. A galáxia da pop como o lugar mais perigoso do Universo. Implosão sónica. O som da entropia.

 

QUARTA-FEIRA, 11 JULHO 1990 VIDEODISCOS

Sem comentários: