Pop
A
DISCOTECA
CABARET DA MORTE
Os Cabaret Voltaire, outrora preocupados com a
utilização subversiva e ameaçadora da eletrónica como “mind surgery”,
manipulação da mente, criação de fantasmas sintéticos, gravaram agora “Groovy
Laidback and Nasty”, álbum rendido a um
comercialismo de plástico e à dança como exercício sonambúlico e imbecil. É
pena.
Para todos aqueles que
têm seguido com atenção e alguma devoção as estratégias ambíguas da dupla
Stephen Mallinder/Richard H. Kirk, responsável por não poucos momentos
realmente arrepiantes de eletricidade em forma de música ao serviço das artes
do demónio, é doloroso assistir à decadência de uma banda que da originalidade
e radicalismo iniciais reteve apenas os espasmos e automatismos agora
esvaziados de sentido. Sejamos então um pouco saudosistas, voltando atrás e
recapitulando os dias de perigo e glória de um grupo de terroristas sónicos que
certa vez se lembrou das granadas “dada”, lançadas de um café a que chamaram
“Cabaret Voltaire”.
Indústrias Pesadas
Sheffield, Inglaterra, indústrias
pesadas, 1973 – berço onde foram criadas aberrações monstruosas, híbridos
violentos e vingativos que, anos mais tarde, viriam a impor novas regras aos
desorientados “punks”, confusos entre os alfinetes e um niilismo ideológico e
musical, cedo esgotado no vazio de alternativas. A chamada “música industrial”
resolvia o dilema. Depois da violência e da destruição gratuita, a violência
maior da despersonalização e dos totalitarismos infernais. Máquinas gigantescas
e trituradoras a reduzir o humano à condição de escravo, numa nova sociedade
metálica, inteligente e implacável. E o reino dos senhores, super-homens (o
“Empire State Human” dos Human League), máquinas também, para quem Nietzsche era
afinal apenas um pobre louco humano que até chorava, comovido, abraçado aos
seus irmãos cavalos. Os Cabaret Voltaire e os Human League personificavam esta
atitude, utilizando armas diferentes para alvejar um mesmo alvo – a criação de
uma música desmesurada ao serviço de filosofias e propósitos sombrios e
politicamente inconfessáveis. Os Cabaret Voltaire permaneceram mais tempo no
inferno.
Fascinação
“Mix-up” de 1979 abriu as
hostilidades, correspondendo à fase experimental de toda a discografia gravada
para a Rough Trade. Montagens e desmontagens de ruídos e vozes parasitárias.
Fitas magnéticas estragadas, repetindo-se infinitamente, e sequenciadores com o
freio nos dentes fazem da audição deste disco uma aventura no reino da
escuridão e do horror. Em “Heaven and Hell” uma voz grita em simultâneo as duas
palavras; dor e prazer confundidos na vertigem do tempo, acelerado até à
imobilidade. Visão terrífica da realidade, transformada em instante
fotográfico. Relâmpago de medo.
Depois de um álbum ao vivo, “Live at
the Y.M.C.A., 1979”, a obra-chave “The Voice of America”. Manifesto
impressionante da estética do pânico (mais tarde cultivada por grupos como os
Coil ou Clock DVA) e da manipulação subliminar do inconsciente. “Kneel to the
Boss”, “News from Nowhere” ou “Messages Received” são títulos elucidativos das
intenções de Kirk, Mallinder e dezenas de homens-sombra, apostados na
substituição dos alicerces e símbolos da sociedade ocidental cristã por outros
de sinal contrário.
Em “Red Mecca” (1981), o monstro
despe a máscara. O nome do diabo é finalmente proferido. “Spread the Virus”.
Fanfarra apocalíptica e tenebrosa. O ritmo desumano e inexorável da agonia e
das trevas finalmente libertas. Música da morte. Para trás ficavam a elegância
e beleza dos computadores dos Kraftwerk e a sedução longínqua e numenal da
missa negra celebrada por Bowie em “Low”.
“Three Mantras” é um obscuro
exemplar de música eletrónica ritual e “2x45” (1982) investe pela primeira vez
num “funky” de tons orientais, apelando à dança como veículo privilegiado de
divulgação ideológica. Em 1983, dois discos – “Hai!”, gravado ao vivo no Japão,
e “The Crackdown” (primeiro, gravado para a Some Bizarre/Virgin, com honras de
edição nacional e já sem Chris Watson, que viria a formar o obscuro Hafler
Trio), fracasso artístico rotundo, fruto de uma mal contida e mais mal dirigida
ânsia comercial. Nem com “Fascination” (incursão descarada no território dos
Human League) ou a capa de Neville Brody, os Cabaret Voltaire lograram alcançar
o êxito entretanto atingido pela Human League, já então rainha de discoteca
pela mão da sua “pop star” Philip Oakey.
Visão Dupla ou Falta de Visão?
“Johnny Yesno” (1982), banda sonora
de um vídeo da “Doublevision”, produzido e realizado por Peter Care, e
“Micro-Phonies” (1984) são duas tentativas relativamente bem sucedidas de
retorno à linha dura, no segundo o sampler servindo de brinquedo nas técnicas
de “scratching” e “cut-up” em que Kirk e Mallinder se tinham tornado mestres.
Ganhava-se em sofisticação sonora o que se perdia em inspiração. “The Covenant,
the Sword and the Arm of the Lord” (1985, título de uma seita americana
neo-nazi) consegue vencer onde outros discos soçobraram – aliando o
experimentalismo tornado imagem de marca a uma acessibilidade capaz de alguns
cometimentos em termos comerciais. “Code” (1987) e sobretudo o recente “Groovy,
etc.” (gravados para a Emi-Parlophone) não oferecem quaisquer dúvidas quanto ao
esgotamento do filão. Este último uma autêntica farsa, com a voz de Mallinder a
tentar a todo o custo parecer-se com a de Green Gartside, dos Scritti Politti,
enganiçando-se inglória e ridiculamente sobre um fundo rítmico “house”
oportunista. Como boas recordações da época áurea de todas as perversidade
restam ainda “Eight Crepuscule Tracks”, gravado para a editora belga Les
Disques du Crépuscule, e o maxi duplo “Drinking Gasoline”. O Cabaret original
fechou as suas portas.
QUARTA-FEIRA,
27 JUNHO 1990 VIDEODISCOS
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