07/10/2014

40 anos de praia [The Beach Boys]



Y 27|ABRIL|2001
música|beach boys

40 anos de praia

Terá sido o sol que esturricou os miolos aos Beach Boys? O ciúme provocado pela audição de “Sgt. Pepper’s”, dos Beatles? Ou será que, como diz a sabedoria popular, Brian Wilson, como todos os génios, teria forçosamente que ser louco? Quando passam 40 anos sobre a fundação do grupo, reedita-se a totalidade da discografia da banda dos irmãos Wilson.

            Sobre a personalidade de Brian Wilson – tão desequilibrada como musicalmente capaz de criar algumas das melhores canções pop que o mundo alguma vez conheceu –, já foram escritas páginas e páginas de texto nas quais a realidade se confunde com a lenda. Brian Wilson é o menino gordo, surdo de um dos ouvidos, o tímido que se encerrava no quarto e nas drogas para compor e fazia de conta que o estúdio era o quarto, para aí criar obras-primas como “Summer Days (and Summer nights)”, “Wild Honey”, “Friends” e, claro, o universalmente aclamado “Pet Sounds”.
            Mas os Beach Boys não seram só Brian Wilson e a sua loucura privada, nem o melhor da sua obra pode ser confinado aos anos 60. Quando passam 40 anos sobre a fundação do grupo (em Hawthorne, 1961) a reedição, em remasterizações de 24 bits, pela EMI, da totalidade da discografia daa banda dos irmãos Wilson, permite traçar uma panorâmica mais larga que faz, finalmente, justiça ao “output” dos anos 70.
            O presente pacote inclui seis CDs. “Sunflower” (1970) acoplado a “Surf’s Up” (1971), “Carl and the Passions – So Tough” (1972) mas “Holland” (1973) e “15 Big Ones” (1976) com “The Beach Boys Love You” (1977), são os mais importantes. Além destes saíram igualmente “The Beach Boys in Concert” (1973) e obras menores como “M.I.U. Album” (1979), e “Keepin’ the Summer Alive” (1980) junto com “The Beach Boys” (1985).
            Diz a história e o coração dos que amam a pop que era impossível reproduzir os raios de luz gloriosos lançados, primeiro por uma música banhada pela alegria, o sol e o mar das praias californianas, sustentada por harmonias vocais que se diriam ser cantadas por anjos rendidos aos prazeres do surf, depois pela alquimia espiritual que o tal louco iluminado chamado Brian Wilson traduziu em estúdio para uma obra que muitos colocam no topo da lista dos melhores de sempre da pop: “Pet Sounds”.
            Mas o progressivo auto-enclausuramento de Brian Wilson nos seus medos se, por um lado, privou os Beach Boys da centelha do seu génio, permitiu, por outro, à música respirar de forma mais livre e mostrar o grupo como um coletivo.

            Água de Deus. Sem nunca ter conseguido ultrapassar o episódio “Smile”, álbum maldito que o brilhantismo de “Sgt. Pepper’s Lonely Hearts Club Band” dos Beatles, impediu de ver a luz do dia (o seu substituto, “Smiley Smile” é, para todos os efeitos, notável, sem dúvida mais repleto de ideias que “Pet Sounds”, avassalador sobretudo ao nível da riqueza da produção e dos arranjos), Brian Wilson afastara-se aos poucos da ribalta. Desde 1964 deixara de acompanhar os restantes Beach Boys nos espetáculos ao vivo, refugiando-se no estúdio e no consumo crescente de barbitúricos. Ele que na altura das gravações de “Pet Sounds” fizera ruir a lenda do artesão inspirado por Deus, ao afirmar, a propósito da estratégia utilizada numa das canções: “Tinha acabado de fumar um haxe fantástico de Marrocos e calhou tropeçar num acordeão. Decidi logo utilizá-lo!”.
            O final dos anos 60, marcado, além de “Smiley Smile” (1967), pelos fantásticos “Wild Honey” (1967) e “Friends” (1968), parecia ter reservado para os Beach Boys pouco mais do que uma lápide dourada e uma inscrição no “hall of fame” da pop. Enquanto Brian se afogava nas drogas, o irmão Dennis envolvera-se com Charles Manson, condenado a prisão perpétua na sequência do assassinato ritual de nove pessoas (entre as quais Sharon Tate, então mulher do realizador Roman Polanski) levado a cabo por seguidores da sua seita entre 8 e 10 de Agosto de 1969. Por ironia do destino, dessa estranha ligação entre um músico de uma banda conotada com o sol e um psicopata adepto da magia negra, resultaria uma canção dos Beach Boys, “Never learn not to love”, que chegou aos tops. Menos radical, Mike Love, tornara-se entretanto devoto das doutrinas do yogi Maharishi Mahesh.
            Mas 1969 reservava afinal uma surpresa contendo os gérmenes daquela que seria a primeira “ressurreição” oficial do grupo. No final desse ano, a 18 de Novembro, no dia a seguir ao começo das conversações entre os EUA e a então U.S.S.R. sobre a redução de armamento, em Helsínquia, e poucas horas antes dos astronautas da Apolo 12 pisarem o solo lunar, os Beach Boys assinavam com a Warner Brothers para a distribuição mundial do seu selo, Brother records, pondo fim a uma ligação litigiosa com a Capitol que durara sete anos.
            O projeto inicial previa a edição de um álbum com o título “Add Some Music to Your Day - An Album Offering from The Beach Boys”. Analisado à lupa pelo staff dos novos patrões da Warner, acabaria por ser recusado, sob a alegação de ser “demasiado fraco”. Foi, porém, um A&R executivo da Warner, Lenny Waronker, quem acabou por dar luz verde a uma novo registo gravado dos Beach Boys, depois de, numa das visitas ao estúdio, ter ficado impressionado com uma das novas canções de Brian Wilson, “Cool, cool water”, descrita, modestamente, pelo seu autor, com tendo sido “inspirada por Deus”.

            O apelo do grande espírito. O novo disco saiu finalmente com o título “Sunflower” e a mesma capa idealizada para “Add Some Music”. Apesar da música corresponder às expetativas (a Rolling Stone chegou a compará-lo, em importância, a “Pet Sounds”) e dar a conhecer a influência crescente, como compositor, de Dennis Wilson, as vendas resultaram num fiasco. Atrofiados, os Beach Boys concentraram-se nos espetáculos ao vivo, indo a todas. Dos pequenos clubes aos estádios, a correria não parou, chegando uma ocasião a juntar em São Francisco, no mesmo show, os Beach Boys e os Grateful Dead.
            “Surf’s up” surge em 1971 rodeado de controvérsia, ao recuperar para o título uma canção de “Smile”. O álbum é marcado por preocupações ecológicas e uma espiritualidade profunda, “um amor espiritual”, nas palavras de Brian Wilson, de resto já ilustrado no logotipo da editora Brother – uma figura de um chefe índio de braços abertos para o céu, inspirada numa escultura de Cyrus Edward Dallin intitulada “O Apelo do Grande Espírito”. Dallin tecera aliás, sobre esta sua obra, um comentário que se aplica, como uma profecia, aos Beach Boys: “Quando as ajudas e os planos materiais falham, acedemos ao espiritual”. Mais uma vez, Brian Wilson teve a palavra certa para descrever uma música que continuava a ser banhada pela Graça ao citar “Forever”, uma canção de “Sunflower”, como uma “oração rock ‘n’ rol”. Mas as prédicas e o contacto com a transcendência estavam prestes a ser, uma vez mais, interrompidos. Fisicamente, Brian Wilson não parava de engordar, fruto de longos períodos de inatividade, deitado na cama, provavelmente num delírio criativo de canções que jamais deixariam a cela do seu cérebro doente. A melhor homenagem que poderia ser prestada a este álbum chegou 20 anos mais tarde, da parte de outro gordo, tímido e genial americano, David Thomas, num álbum de dor e arrebatamento a que chamou também “Surf’s Up”.

            Navega, marinheiro! Depois da edição de “Carl & The Passions – So Tough”, dominado desta feita pelo terceiro do irmãos Wilson, Carl, os Beach Boys partiram com armas e bagagens, mulheres e filhos, para a Holanda. Mas Brian Wilson não seguiu viagem. O seu estado psicológico era já patológico, tendo-se entregue aos tratamentos do psiquiatra seu amigo, Eugene Landy. Mas Brian Wilson contribuíra ainda com duas canções para “Holland”, uma delas, an abertura do alinhamento, o clássico “Sail on, sailor”, escrito com Tandyn Amer, Ray Kennedy e Van Dyke Parks. Blondie Chaplin e Ricky Fataar, dois músicos sul-africanos, tinham entrado entretanto para a formação permanente dos Beach Boys.
            Em 1973 morria Murry Wilson, pai dos três irmãos, mas tanto Brian como Dennis não estiveram presentes no funeral, e os Beach Boys subiriam de novo ao top com o duplo ao vivo “The Beach Boys in Concert” e a coletânea “Endless Summer”. Para o grupo era a confirmação de que, apesar dos seus esforços na busca de novas melodias, o público apenas queria ouvir os velhos hinos adolescentes sobre surf, descapotáveis e miúdas em biquini. Em 1974 os Beach Boys eram considerados a “melhor banda do ano” pela Rolling Stone e a frequência e êxito dos concertos pareciam ser suficientes para justificar a existência de uma banda marcada por revezes da fortuna.
            Num golpe de oportunismo comercial, o álbum seguinte, “15 Big Ones” (1976), foi anunciado como o do regresso de Brian Wilson aos Beach Boys. Se foi, o próprio, na altura um zombie obeso, não chegou a dar por isso. Mas se Brian Wilson se revelou então tão incapaz como antes de voltar a subir a um palco ao lado do grupo, o mesmo não aconteceu quando conseguiu arrancar-se da sua letargia para encarar de frente o estúdio, e aí reciclar velhos “standards” como “Rock & roll music”, de Chuck Berry, e “hits” antigos dos Beach Boys num sonho tão “naïve” como nostálgico, de uma simplicidade e rusticidade a anos-luz do puzzle Phil Spectoriano de “Pet Sounds”.
            Finalmente, em 1977, em plena explosão punk, os Beach Boys editariam a sua derradeira obra relevante, “The Beach Boys Love You”, já com Brian Wilson regressado do reino dos mortos-vivos. Canções sobre o sistema solar, aviões, crianças e os bons velhos tempos. E o tema eterno do coração de um homem que fica preso ao coração de uma mulher. É um dos álbuns preferidos de Peter Buck, dos R.E.M., que assina as notas de capa da presente reedição, e a antecipação de uma carreira a solo, de Brian Wilson, que rolou até aos dias de hoje em velocidade cruzeiro.
            Dennis Wilson morreu em 1983, afogado no mar. Carl Wilson morreu há três anos, vítima de cancro. Mas os Beach Boys estavam já mortos quando em 1985 fizeram para “LA (Light Album)” uma versão de “Here comes the night”, dez minutos de disco sound que arrasaram os fãs e estrangularam o sonho num show de “Saturday Night Live”. Os rapazes da praia fizeram-se homens. Dois dos Wilson morreram, o outro enlouqueceu. E como alguém disse: “Beach Boys sem nenhum dos Wilson é como fazer surf num mar sem ondas”.


As novas vidas de Brian

            Os Beach Boys não podiam ter encetado de melhor maneira a entrada na fase “seventies” da sua carreira, com um regresso aos estúdios que não trai, antes prolonga o refinamento de escrita dos anteriores “Wild Honey” e “Friends”. Brian Wilson contribui com cinco temas para um álbum marcado por uma aura de espiritualidade e mistério que culmina na divagação subaquática de “Cool, cool water”, entre a lenga-lenga e polifonias dormentes flutuando em bolhas de sintetizador numa noite de trovoada. “Deirdre” e “Tears in the morning”, ambas de Bruce Johnston, e “Forever”, do irmão Dennis, que Brian considera uma das “coisas mais maravilhosas em termos de harmonia” que alguma vez ouvira, são outras das pérolas de uma despedida de juventude que soa tão ensolarada como triste.
            Editado exatamente um ano depois de “Sunflower”, em 1971, “Surf’s up” é o álbum clássico dos Beach Boys. Embora o clima de espiritualidade se mantenha, a adrenalina sobe de nível em canções de teor mais rock e politicamente interventivo como “Take a load off your feet”, de Alan Jardine, e “Student demonstration time”, um standard de Leiber e Stoler recuperado com uma letra nova por Mike Love, que não deixa de fazer lembrar alguns registos idênticos de John Lennon. De resto, entre resquícios de uma bubble-gum teatral que os Sparks transformariam mais tarde em ópera kitsch e um tom declaradamente beatleiano, “Surf’s up” assinala ainda a redescoberta do “progressivo”, em “Feel flows”, de Carl Wilson, pautado por um solo de flauta e feitos psicadélicos. Para o final ficam os três temas mais tocantes, todos com a assinatura de Brian: “A day in the life of a tree”, pura sonatina de luz, “’Till I die”, declaração pungente da vulnerabilidade de um génio, e o título-tema, embalo das ondas para fazer adormecer na praia.
            Com Brian Wilson de fora, revolvido nas suas obsessões e dependências, os restantes Beach Boys ficaram com espaço livre para provarem em definitivo que eram algo mais do que os irmãos mais novos do clã Wilson, assegurando a produção e a maioria das composições do álbum que sucede a “Carl and the Passions: So Tough”. Gravado na Holanda, “Holland” abre contudo com aquela que é considerada uma das canções clássicas tardias de Brian, “Sail on, sailor”, tema sem dúvida poderoso mas que, em nossa opinião, perde em comparação com a maioria da sua produção para o par de álbuns anteriores. Colorações country, incursões no passado longínquo (“California saga”), pop despreconceituosa e um tom geral de desprendimento fazem de “Holland” um álbum de cruzeiro que a presente reedição torna em algo de especial graças à inclusão do extra “Mt. Vernon and fairway (a fairy tale)”, narrativa infantil/surrealizante em seis partes composta por Brian Wilson onde este rememora as noites de infância passadas em casa dos pais a escutar música no escuro num velho aparelho de rádio. O mesmo Brian Wilson estranho, experimental e eletrónico como não se ouvia desde as sessões de “Smile”.
            Mas Brian voltaria a sorrir. E a ter motivos para tal. Acompanhado de uma dedicatória de Carl, Dennis, Mike e Alan, onde estes expressam o seu amor e reconhecimento a Brian pelo seu regresso em pleno à banda, “Love you”, que sucede à recapitulação “15 Big Ones”, é, além da dedicatória sincera, o derradeiro testamento relevante do grupo, embora muitos vejam neste álbum mais um trabalho a solo do que um esforço coletivo. Brian Wilson produziu e compôs a totalidade dos temas e se pode ser penoso verificar a sua decadência vocal em temas como “Mona” (o arcanjo surfista desaparecera para dar lugar ao esquizoide intermitente), a pujança criativa de outros, como “Johnny Carson”, faz de “Love you” uma obra de onde, apesar das feridas mal cicatrizadas, se desprende uma alegria e uma jovialidade que há muito não se detetavam nos Beach Boys – e muito menos no seu líder reencontrado. O vaudeville de “Good time” ou a santa loucura partilhada durante um minuto com Roger McGuinn, dos Byrds, em “Ding dang”, terão arrancado em definitivo Brian da feira das vaidades. Para passar a ser um astro em órbita, distante no sistema solar.




SUNFLOWER
8|10
 

SURF’S UP
9|10
 

HOLLAND
7|10
 

THE BEACH BOYS LOVE YOU
8|10
 

 

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