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6|JULHO|2001
escolhas|discos
JORGE PALMA
Jorge Palma
Ed.
e distri. EMI-VC
9|10
O rugido do leão, o choro do palhaço
Vamos
lá agarrar nele e pô-lo de pé. Não, não o sexo, mas Jorge Palma. Compostura é o
que se exige ao cidadão… Ao músico, a esse, louvemos-lhe os excessos e
entreguemos-lhe a palma, quando os resultados têm a magnificência deste “Jorge
Palma”, que põe fim a um longo período de abstinência discográfica,
interrompida esporadicamente por aparições ao vivo nas quais o peso da boémia
tanto podia descambar no descalabro como fazer brotar a luz mais viva de uma
alma que arde no fogo do álcool, do céu e do inferno. Ao “slogan” “É proibido
fumar” impresso a letras gordas na capa responde o músico com o desprezo de
quem acende mais um cigarro e decide os caminhos da sua vida.
São 12 canções. Algumas delas no
limiar da perfeição. Depois da abertura, com “Dormia tão sossegada”, feito a
pensar nas rádios, Z. Z. Top à portuguesa, sem barba, “Tempo dos assassinos”
corta a direito e fundo como uma faca. Os “blues”, o sangue, o grito,
alucinação de lucidez. “Vivemos no tempo dos assassinos/Tempo de todos os
hinos/Ouvimos dobrar os sinos/Quem mais jura é quem mais mente/Vou arquitectar
destinos/sou praticamente demente”. Segue-se uma de social, “Sete (está-se tudo
a passar)”. Abrasileirado na forma. Dorido por dentro. A partir de aqui “Jorge
Palma” mergulha no oceano da noite, no lirismo mais pungente, nas melodias e
emoções de um mundo interior sem fronteiras, terno e selvagem. “Quem és tu de
novo?” é um clássico. Choro amortalhado na solidão. A orquestração clássica, o
piano desolado, a vocalização à deriva no destino de um tempo que passa e não
volta, canção de amor, enfim, entram num registo equivalente a “Over”, de Peter
Hammill. Existe, aliás, um paralelismo notável entre Jorge Palma e este músico
inglês, fundador dos Van Der Graaf Generator, que vem de longe. Como se ambos
seguissem caminho idêntico, em direção a um desconhecido comum. “Olhos de
Catarina”, outra canção notável, acentua a semelhança. Nos arranjos de piano,
nas deambulações da voz, na própria temática e arrumação poética e na
construção das melodias. Perturbante. Uma das sequências de “Duas amigas”
praticamente decalca Hammill e o final de violinos (pelos Corvos) toca de perto
“The Quiet Zone/The Pleasure Dome”, dos VDGG. E, no entanto, esta como todas as
outras canções de “Jorge Palma”, são pertença exclusiva do seu autor. Se o
termo “irmão espiritual” faz algum sentido então este aplica-se melhor do que a
ninguém a Jorge Palma e a Peter Hammill. “Espécie de vampiro” é outro dos picos
de “Jorge Palma”. “Eu sou muito mais que velho/E intimido qualquer espelho/Sou
o amigo mais funesto da poesia”. Fritz Lang, no gume da faca que de novo se
afia. E guitarras elétricas incandescentes (de Flak e Zé Pedro) que aos poucos
se diluem numa poça de sangue. Esta sequência de quatro temas bastaria para
justificar o regresso de Palma aos estúdios.
Os Beatles, de “Norwegian wood” a
“Mother nature’s son”, vivem obliquamente em “Beijos e papas de leite”, veia
pop que em “Disse fémea” – com texto de Arnold Wesker, traduzido por Maria
Velho da Costa – é ferida pelos relâmpagos do saxofone “free” de Paulo Curado,
em mais uma balada palmahammilliana. “Sonhadores inaptos” cria o ambiente de
cabaré, prolongado no autobiográfico “Do pobre b.b.”, de Bertolt Brecht que,
quase sem nos darmos conta, se conclui em “Trapézio”, no horizonte errante de
um circo, “entre o rugir de um leão e o choro de um palhaço”. O rugido e o
choro. O leão e o palhaço. Jorge Palma viaja entre ambos e é nesta dialética
entre nobreza e ridículo que a sua personalidade musical se estrutura. Como um
sempre-em-pé.
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