Y
11|MAIO|2001
steve
fisk|música
desfeita ao drum ‘n’ bass
Quantos
níveis existem de desfazer? Exatamente novecentos e noventa e nove para Steve
Fisk. Colagens e delírios tão estranhos como a criatura informe a descansar
sobre um crânio como o da capa de 999 Levels
of Undo. Um pontapé no rabo do
drum ‘n’ bass.
STEVE FISK
É UM GÉNIO DO SAMPLING que nos anos 80 gravou o mítico “448 Deathless Days”, do
qual o novo álbum, “999 Levels of Undo”, é o digno sucessor. Colaborador
assíduo dos Negativland, assinou pelo meio colaborações na produção com os
Nirvana, Soundgarden e Screaming Trees, ao mesmo tempo que devolveu ao som de
Seattle a inovação perdida, com os Pigeonhead.
A sua música alia uma utilização do
sampler – enquanto armazenador de memórias perdidas da música negra dos anos 70
e 80 – a conceções rítmicas que tanto devem à colagem contestatária dos
Negativland como ao impulso cardíaco do drum ‘n’ bass, que obriga a escorregar
para fora das pistas de dança. Para este veterano que coloriu com as
travessuras do experimentalismo a estafada cena das bandas grunge de Seattle e
conserva o gosto pelos velhos sintetizadores analógicos dos anos 70, a eletrónica
é um carro de combate e uma tenda de circo. Ou uma orquestra de acontecimentos
em que as surpresas se sucedem ao ritmo de uma imaginação sem limites.
“Desfazendo” o novelo dos estilos e o conforto da rotina, Steve Fisk fez um dos
discos mais estimulantes do ano.
O novo álbum, como o anterior “448
Deathless Days”, ostenta uma sonoridade que tanto parece ser criada a partir de
máquinas analógicas, como logo a seguir toma formas inteiramente digitais…
Comecei a interessar-me pela
eletrónica aos 15 anos e um ano depois comprei o meu primeiro sintetizador, um
A.R.P. Odyssey, hoje uma peça de museu. Se soava bem na altura, continua a soar
bem agora. As pessoas redescobriram o prazer de ouvir estes aparelhos, como o
mellotron, que também continuo a usar e que adorava ouvir nos anos 70, pelos
King Crimson. O computador, uso-o para fazer os ‘edits’, todos os sons que
gravo são passados através dele. Sem ele, as colagens que faço nos meus discos
soariam todas baralhadas. Já utilizava um em “448 Deathless Days”, de 1987,
embora a maior parte de colagem desse álbum fosse manual.
Esse estilo de colagens faz lembrar
nalguns casos os Negativland, com quem de resto já colaborou, em “Escape from
Noise”.
Gosto bastante dos Negativland, com
quem trabalhei nesse álbum mas não só. Costumamos trocar samples por correio e
temos uma quantidade de material que fizemos juntos, registado em cassete e
pronto para ser editado, incluindo uma canção que soa vagamente a “White
rabbit”, dos Jefferson Airplane (risos). Estão sempre a pedir-me para lhes
mandar sons que tenho gravados em casa. E faço parte de uma banda de
improvisação, com Mark Hosler, um dos músicos do grupo.
Qual a importância desempenhada pela
música negra de dança num trabalho de composição que cita e desfaz, com toda a
desfaçatez, as malhas do drum ‘n’bass?
Sempre apreciei artistas como
Prince, Stevie Wonder, Sly & The Family Stone, Parliament, Funkadelic, as
bandas de Minneapolis. Embora eu procure o mesmo tipo de organicidade, a minha
música está longe de ser dirigida para as pistas de dança, como faz DJ Shadow,
por exemplo, que também admiro particularmente. É verdade que, até certo ponto,
acabei em ‘999 Levels of Undo’ por ir parar ao drum ‘n’ bass, mas não foi uma
atitude voluntária. Procuro evitar ao máximo as correntes musicais em voga, não
se dê o caso de inconscientemente apanhar alguma ideia ou “groove” alheio…
Em termos de sampling, “999 Levels
of Undo” é um álbum tão revolucionário como “Supermodified” de Amon Tobin.
Conhece esse disco?
Esse é um grande elogio,
comparar-me, em importância, ao Amon Tobin. É um músico fantástico. Ouvi-o
recentemente num spot publicitário televisivo de uma marca de automóveis…
É possível estabelecer comparações
entre os seus discos a solo e o trabalho que desenvolveu entre um e outro, com
Shawn Smith, nos Pigeonhead?
Há caraterísticas comuns entre ‘448
Deathless Days’ e ‘999 Levels of Undo’, apresentando ambos uma quantidade de
‘drumbeats’ em cascata, falsos começos… Mas a música que componho a solo é
muito diferente da que faço com os Pigeonhead que é bastante mais acelerada,
estilo 130 batidas por minuto… Sozinho componho coisas menos frenéticas, num
registo quase orquestral, na medida em que crio sequências de acontecimentos e
feitos especiais ligados entre si. Mas houve alturas em que cheguei a sentir-me
embaraçado, por pensar que as pessoas pudessem associar os sons a um certo
jazz-rock errático, quando o humor é afinal parte integrante da minha música.
Gostaria que as pessoas se rissem ao ouvir certos temas…
Rir, quando se confrontam logo à
partida com uma imagem tão perturbante como a da capa?
A escultura original, da autoria de
Katherine Wolf, é um bocado mórbida. Pedi a um amigo meu para fazer uma pintura
de um crânio a partir dela e foi daí que resultaram todas as gravuras que
aparecem na capa. A ideia é mostrar dois polos opostos e indissociáveis, a vida
e a morte. Creio que as imagens refletem as minhas próprias formas e processos
musicais.
E o título, que à semelhança do
disco anterior, recorre a um número, qual foi a ideia?
Partiu de uma piada em torno de um
procedimento habitual em estúdio através do qual é sempre possível desfazer o
último ‘take’ de uma gravação e voltar ao precedente… Wendy Carlos, por
exemplo, criou no seu computador um sistema que permite bloquear esse processo,
não suportava a simples possibilidade de que fosse apagada música que já
estivesse feita, de alterar qualquer decisão sua na escolha das versões
definitivas. Claro que também me passou pela cabeça que 999 é 666 invertido…
Para terminar, uma lista dos seus
discos favoritos…
“Computer World”, dos Kraftwerk; o
primeiro volume de “Woodstock”, que me mostrou como soam as pessoas reais, num
contexto real, em contraste com a forma como soam em estúdio. O som é péssimo e
algumas das performances são de fugir, mas aprendi imenso com ele… o álbum ao
vivo de Todd Rundgen com os Utopia – que, provavelmente, foi responsável por me
ter posto a cabeça a funcionar de mil e uma maneiras “horríveis” – e o primeiro
volume de uma coletânea de música eletrónica da Columbia.
Sem comentários:
Enviar um comentário