12/10/2014

Desfeita ao drum 'n' bass [Steve Fisk]



Y 11|MAIO|2001
steve fisk|música

desfeita ao drum ‘n’ bass

Quantos níveis existem de desfazer? Exatamente novecentos e noventa e nove para Steve Fisk. Colagens e delírios tão estranhos como a criatura informe a descansar sobre um crânio como o da capa de 999 Levels of Undo. Um pontapé no rabo do drum ‘n’ bass.

STEVE FISK É UM GÉNIO DO SAMPLING que nos anos 80 gravou o mítico “448 Deathless Days”, do qual o novo álbum, “999 Levels of Undo”, é o digno sucessor. Colaborador assíduo dos Negativland, assinou pelo meio colaborações na produção com os Nirvana, Soundgarden e Screaming Trees, ao mesmo tempo que devolveu ao som de Seattle a inovação perdida, com os Pigeonhead.
            A sua música alia uma utilização do sampler – enquanto armazenador de memórias perdidas da música negra dos anos 70 e 80 – a conceções rítmicas que tanto devem à colagem contestatária dos Negativland como ao impulso cardíaco do drum ‘n’ bass, que obriga a escorregar para fora das pistas de dança. Para este veterano que coloriu com as travessuras do experimentalismo a estafada cena das bandas grunge de Seattle e conserva o gosto pelos velhos sintetizadores analógicos dos anos 70, a eletrónica é um carro de combate e uma tenda de circo. Ou uma orquestra de acontecimentos em que as surpresas se sucedem ao ritmo de uma imaginação sem limites. “Desfazendo” o novelo dos estilos e o conforto da rotina, Steve Fisk fez um dos discos mais estimulantes do ano.
            O novo álbum, como o anterior “448 Deathless Days”, ostenta uma sonoridade que tanto parece ser criada a partir de máquinas analógicas, como logo a seguir toma formas inteiramente digitais…
            Comecei a interessar-me pela eletrónica aos 15 anos e um ano depois comprei o meu primeiro sintetizador, um A.R.P. Odyssey, hoje uma peça de museu. Se soava bem na altura, continua a soar bem agora. As pessoas redescobriram o prazer de ouvir estes aparelhos, como o mellotron, que também continuo a usar e que adorava ouvir nos anos 70, pelos King Crimson. O computador, uso-o para fazer os ‘edits’, todos os sons que gravo são passados através dele. Sem ele, as colagens que faço nos meus discos soariam todas baralhadas. Já utilizava um em “448 Deathless Days”, de 1987, embora a maior parte de colagem desse álbum fosse manual.
            Esse estilo de colagens faz lembrar nalguns casos os Negativland, com quem de resto já colaborou, em “Escape from Noise”.
            Gosto bastante dos Negativland, com quem trabalhei nesse álbum mas não só. Costumamos trocar samples por correio e temos uma quantidade de material que fizemos juntos, registado em cassete e pronto para ser editado, incluindo uma canção que soa vagamente a “White rabbit”, dos Jefferson Airplane (risos). Estão sempre a pedir-me para lhes mandar sons que tenho gravados em casa. E faço parte de uma banda de improvisação, com Mark Hosler, um dos músicos do grupo.
            Qual a importância desempenhada pela música negra de dança num trabalho de composição que cita e desfaz, com toda a desfaçatez, as malhas do drum ‘n’bass?
            Sempre apreciei artistas como Prince, Stevie Wonder, Sly & The Family Stone, Parliament, Funkadelic, as bandas de Minneapolis. Embora eu procure o mesmo tipo de organicidade, a minha música está longe de ser dirigida para as pistas de dança, como faz DJ Shadow, por exemplo, que também admiro particularmente. É verdade que, até certo ponto, acabei em ‘999 Levels of Undo’ por ir parar ao drum ‘n’ bass, mas não foi uma atitude voluntária. Procuro evitar ao máximo as correntes musicais em voga, não se dê o caso de inconscientemente apanhar alguma ideia ou “groove” alheio…
            Em termos de sampling, “999 Levels of Undo” é um álbum tão revolucionário como “Supermodified” de Amon Tobin. Conhece esse disco?
            Esse é um grande elogio, comparar-me, em importância, ao Amon Tobin. É um músico fantástico. Ouvi-o recentemente num spot publicitário televisivo de uma marca de automóveis…
            É possível estabelecer comparações entre os seus discos a solo e o trabalho que desenvolveu entre um e outro, com Shawn Smith, nos Pigeonhead?
            Há caraterísticas comuns entre ‘448 Deathless Days’ e ‘999 Levels of Undo’, apresentando ambos uma quantidade de ‘drumbeats’ em cascata, falsos começos… Mas a música que componho a solo é muito diferente da que faço com os Pigeonhead que é bastante mais acelerada, estilo 130 batidas por minuto… Sozinho componho coisas menos frenéticas, num registo quase orquestral, na medida em que crio sequências de acontecimentos e feitos especiais ligados entre si. Mas houve alturas em que cheguei a sentir-me embaraçado, por pensar que as pessoas pudessem associar os sons a um certo jazz-rock errático, quando o humor é afinal parte integrante da minha música. Gostaria que as pessoas se rissem ao ouvir certos temas…
            Rir, quando se confrontam logo à partida com uma imagem tão perturbante como a da capa?
            A escultura original, da autoria de Katherine Wolf, é um bocado mórbida. Pedi a um amigo meu para fazer uma pintura de um crânio a partir dela e foi daí que resultaram todas as gravuras que aparecem na capa. A ideia é mostrar dois polos opostos e indissociáveis, a vida e a morte. Creio que as imagens refletem as minhas próprias formas e processos musicais.
            E o título, que à semelhança do disco anterior, recorre a um número, qual foi a ideia?
            Partiu de uma piada em torno de um procedimento habitual em estúdio através do qual é sempre possível desfazer o último ‘take’ de uma gravação e voltar ao precedente… Wendy Carlos, por exemplo, criou no seu computador um sistema que permite bloquear esse processo, não suportava a simples possibilidade de que fosse apagada música que já estivesse feita, de alterar qualquer decisão sua na escolha das versões definitivas. Claro que também me passou pela cabeça que 999 é 666 invertido…
            Para terminar, uma lista dos seus discos favoritos…
            “Computer World”, dos Kraftwerk; o primeiro volume de “Woodstock”, que me mostrou como soam as pessoas reais, num contexto real, em contraste com a forma como soam em estúdio. O som é péssimo e algumas das performances são de fugir, mas aprendi imenso com ele… o álbum ao vivo de Todd Rundgen com os Utopia – que, provavelmente, foi responsável por me ter posto a cabeça a funcionar de mil e uma maneiras “horríveis” – e o primeiro volume de uma coletânea de música eletrónica da Columbia.

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