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20|ABRIL|2001
escolhas|ao
vivo
chamam ao diabo old nick
Quando
Nick Cave tem uma canção do seu novo álbum, “No More Shall We Part”, chamada
“Oh my Lord”, não devemos metê-la, apesar do título, no mesmo compartimento de
“My sweet Lord”, de George Harrison. Ao contrário do ex-Beatle, cuja carteira
está bem fornecida de deuses e gurus, a do ex-Birthday Party continua a
carregar uma caderneta de apostas com o diabo.
A “conversão” de Nick – como é que
alguém com apelido “Cave” e um grupo designado “As Sementes Más” pode
converter-se ao que quer que seja?... – é do mesmo tipo da de Diamanda Galas
ou, em diferente medida, da de Blixa Bargeld, dos Einsturzende Neubauten, seu
companheiro musical de longa data.
A “gospel” e os espirituais de Nick
Cave ou de Diamanda Galas são pragas rezadas em surdina a um anjo de asas
negras. O mesmo que preside ao disco contendo textos declamados deste
australiano esquelético com ar de rufia, “And the Ass Saw the Angel”. O
escritor Isidore Ducasse, Conde de Lautréamont, escreveu “Os Cantos de
Maldoror”, uma das obras da literatura que mais perto tocou no coração das
trevas. Logo a seguir o mesmo autor assinou um tratado sobre a virtude. O mal
foi redimido ou descobriu na beatitude da palavra a forma mais perfeita de
camuflagem?
Não se duvide da genuína
religiosidade destas estratégias. Nem das intenções de culto demonstradas com
sinceridade pelos seus intervenientes. “Religião” significa “religação”, convém
não esquecer. Resta saber a quê ou a quem. O satanismo é uma religião. Não
temos dúvidas que Nick Cave seja um crente.
O caminho que leva a esta
“iluminação” pela luz negra é um caminho de flores de uma natureza morta como
as da capa de “No More Shall We Part”. Conduz a um altar em forma de espelho.
Da imagem que esse espelho devolve é difícil sair sem o quebrar. Nick Cave tem
percorrido esse caminho. “The Good Son” (1990), “Henry’s Dream” (1992), “Let
Love in” (1994), “Murder Ballads” (1996) ou “The Boatman’s Call” (1997) são
estações prévias desta ascese para baixo onde o cinismo, a decadência, a febre
dos trópicos, o deserto, o assassínio como uma das belas artes, uma garrafa de
veneno e um crucifixo voltado do avesso servem de paramento a Cave, o
evangelizador. A esta transposição da raiva para o sussurro corresponde a
descoberta de formas de inoculação mais subtis do mal. É um sinal de
crescimento, sem dúvida também de cansaço, mas os efeitos desta apropriação do
silêncio pelas hostes do inferno não são menos nefastos.
Lou Reed gravou a sua “Metal Machine
Music”. Hoje carrega aos ombros os cadáveres que Nova Iorque espalha pelas
ruas. Bowie lavou-se da cocaína e celebrou a sua missa negra em louvor a Berlim
em “Low”, pondo fim a um baile de máscaras. John Cale, que como Reed demorou
anos a descolar da pele os vermes dos Velvet Underground, cravou fundo o
escalpelo em “Music for a New Society”. Peter Hammill fez girar em aceleração
máxima os seus demónios interiores em “In Camera”, antes de os sacudir e
deslocar a visão para os filmes do mundo. Os Einstruzende, depois de anos a
estoirarem edifícios com o napalm da música industrial, acendem fósforos no
escuro e garantem que o silêncio é sexy. Todos acederam ao olho do furacão, a
esse lugar vazio que é o motor do caos.
Resta Leonard Cohen, que desde o início
soube que o mal age melhor quando se infiltra devagar, e que a melhor maneira
de o domar/exorcizar é aprisiona-lo pela poesia numa história. Depois, cada um
fará com ele o que quiser. A sombra de Cohen alarga-se cada vez mais sobre Nick
Cave. Em “No More Shall We Part” o crooning do australiano evoca as profundezas
interiores do veterano canadiano. Em “Fifteen feet of pure white snow” podemos
mesmo imaginar a neve que em silêncio tomba sobre o mosteiro-zen que é a poesia
do autor de “Avalanche”. Mas Cohen é Buda. E Cave um zombie num labirinto sem
saída. “The Ladders of life that we scale merrily/Move mysteriously around/So
that when you think you’re climbing up, man/In fact you’re climbing down”,
canta em “Oh my lord”. O espelho continua intacto. Decididamente, nem Nick Cave
é George Harrison nem é pelas suas sementes terem um sabor mais doce que
deixaram de ser venenosas. Os ingleses chamam ao diabo “Old Nick”.
NICK CAVE
LISBOA| Coliseu
dos Recreios
24, 3ª, às 21h30
Tel. 213240585. Bilhetes a 4500$oo
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