Y
15|JUNHO|2001
música|brian
eno
No
novo álbum, Drawn from Life, com o dj J. Peter Schwalm, Eno mete a “ambiente music” no congelador
do chill-out. O naturalismo e a “música discreta” cederam ao frio e à
desumanização. Ou será ainda um novo e inesperado ângulo de visão a revelar-se
na esquina de um jardim zen? Ao vivo, no Coliseu do Porto.
gotas de um mundo gelado
“Drawn from
Life”, o novo álbum que Brian Eno vem apresentar ao Porto, no sábado, naquela
que sera a sua estreia absoluta, ao vivo, em Portugal – no Coliseu, às 22h0 –,
insere-se na corrente da “música ambiental”, género que ajudou a criar.
Mas a música congelada neste CD de
parceria com J. Peter Schwalm não é a mesma que Brian Peter George St. John le
Baptiste de la Salle Eno assina em álbuns como “Discreet Music” (1975), “Music
for Airports” (1978), “On Land” (1982), “Apollo Atmospheres & Soundtracks”
(1983), “Thursday Afternoon” (1985), “The Shutov Assembly” (1992) e “Neroli”
(1993). É “chill-out”. Ambient tecno. Algo que Eno tocara pela primeira vez com
a sua varinha transfiguradora, em “The Drop”, álbum de 1997, em particular na
sequência ártica do tema “Iced world”.
Ainda que o anterior “Nerve Net”
(1992) explorasse já algumas das coordenadas dos subúrbios da “dance music”,
foi “The Drop” que escancarou a porta para uma paisagem desoladoramente vazia.
Um vazio nos antípodas do silêncio – berço da “ambient” que Eno cultivou nas
obras mencionadas. O mesmo silêncio que se insinuou através da colunas
avariadas de um sistema estéreo, a minimizar o tédio numa cama de hospital onde
esteve internado, e que lhe ensinou as premissas básicas da “discreet music”.
Uma música no limiar da capacidade auditiva que deveria harmonizar o ouvido
humano com o ruído exterior. Uma música, enfim, que ensinava a ouvir música.
No excelente livrete que acompanha a
antologia (seis CDs) de Brian Eno publicada em 1993, compara-se a música
ambiental do compositor ingles a um jardim zen, cuja “tranquilidade parece
desencadear um estado de apaziguamento da mente e que, ao mesmo tempo,
sintoniza os recetores do corpo para um meio ambiente vibrante de
acontecimentos em miniatura: uma borboleta que pousa no musgo, gotículas de
água tombando ininterruptamente, zumbidos e insetos, reflexos da ondulação
aquática nas canas de bamboo...”. Caos, ordem e coincidência. Segundo um
equilíbrio de contrários em permanente mutação que é a realidade tal qual a
percecionamos.
John Cage, claro, já o teorizara nas
suas concetualizações sobre o silêncio e a musicalidade do ruído. Eno, discípulo
espiritual de Cage, aplicou-as a seu modo, tirando partido da aleatoriedade
como instrument de composição musical. As suas “estratégias oblíquas”, sistema
de cartas, como um Tarot, desenhadas em conjunto com o artista plástico Peter Schmidt, estiveram na base da
criação dos álbuns “Taking Tiger Mountain (By Strategy)” (1974), “Another Green
World” (1975) e “Before and After Science” (1976). Eno fundou ainda a coleção
“Obscure”, de inspiração cageiana, onde podem ser encontradas obras de Tom
Phillips, Jan Steele, Gavin Bryars, Christopher Hobbs e do próprio Cage.
Chill-out vs. natureza. O
“chill-out” reflete outra realidade. O seu silêncio não é o silêncio prenhe da
noite, dos sons dos animais, da terra, dos lagos e das estrelas que fazem de
“On Land” uma sinfonia da Natureza cantada na primeira pessoa, mas o silêncio
da ausência. “On Land” é a música do mundo ao qual puseram na frente os
microfones. A capa de “Cluster & Eno” (1976), outro clássico da “ambiente
music”, gravado com a dupla alemã Cluster, mostra um microfone instalado em
pleno campo, apontado ao vento e ao céu no crepúsculo.
O “chill out” de “Drawn from Life”,
pelo contrário, é a panaceia para uma ferida virtual. Imagem sonora
digitalizada, anestesia. Um ecrã insistentemente em branco contra o qual se
evaporam as derradeiras gotas de suor de uma “rave” sem memória.
Os genes desta música tão
branqueadora como um comprimido de Prozac, mas cruel ao ponto de deixar o
espírito abandonado numa noite sem sonhos, podem ser encontrados ainda antes de
“The Drop”, em “Evening Star” (1975), gravado de parceria com Robert Fripp,
guitarrista dos King Crimson. O tema que preenche todo o segundo lado deste
disco banhado na claridade de um corredor da morgue, “An Index of Metals”,
anunciava já a paisagem desolada do novo milénio, ao som dos sinos de loucura
que sempre se fazem ouvir quando algum fim se aproxima. “Evening Star”, a
estrela da tarde, é Vénus, zénite planetário de Lúcifer, o rei carmesim, King
Crimson, Robert Fripp… Na foto da contracapa de “Evening Star”, Eno quase é
esmagado pela figura altiva de Fripp, o guitarrista discípulo das doutrinas
mágicas de Gurdjieff e J. G. Bennett. Fripp, que no seu álbum de estreia a
solo, “Exposure” (1979), dissemina entre o clamor torturado das suas “frippertronics”
a leitura de textos sobre o apocalipse.
Duas décadas volvidas, o próprio Eno
se encarregaria de fazer a “exposição” fotográfica da mesma obra ao negro, no
registo ambiental que lhe é peculiar. Em “The Drop”, precisamente…
“Drawn from Life” suaviza o retrato,
mas a realidade que lhe está subjacente permanece tão terrífica quanto antes.
Ou mais, porque agora o pin com um “smile” que tem colado na aba do casaco faz
a morte parecer a miúda atraente com quem se tem um flirt no conforto de um
sofá forrado de veludo.
Enoglobal
Alguns
dos álbuns com a assinatura de Brian Eno, enquanto compositor, produtor ou
músico participante. Não foram considerados os álbuns dos Roxy Music nem a sua
discografia a solo.
ANOS 70
Trabalho
febril. Incursões no som de Canterbury (Matching Mole, Quiet Sun, Lady June,
Phil Manzanera) e no Progressivo (Genesis, Camel) e colaborações com os seus
amigos John Cale e Robert Wyatt são o lado mais visível de uma atividade que se
estendeu ao minimalismo de Michael Nyman, ao ambientalismo de câmara de Gavin
Bryars e à world imaginária dos Penguin Cafe. Sobreviveu a choques sucessivos
com Robert Fripp e saiu ileso do túmulo de Nico, arranjando ainda tempo para
navegar no space rock de Robert Calvert, da troupe Hawkwind. O futuro inventou-o
na trilogia de Berlim de Bowie, que não seriam nada sem o design prévio dos
Cluster, e em “My Life in the Bush of Ghosts”, mas também a recriar a
“de-evolution” dos Devo e a dar polimento ao funk da Idade dos Jetsons dos
Talking Heads. Foi a Nova Iorque partir os dentes ao rock no disco-manifesto da
vaga “no wave”.
MATCHING
MOLE: Little Red Record
ROBERT
FRIPP & BRIAN ENO: (No Pussyfooting); Evening Star
ROBERT
CALVERT: Captain Lockheed and the Starfighters; Lucky Leif and the Longships
JOHN
CALE: Fear; Slow Dazzle; Helen of Troy
LADY
JUNE: Linguistic Leprosy
NICO:
The End
GENESIS:
The Lamb Lies Down on Brodway
PHIL
MANZANERA: Diamond Head
QUIET
SUN: Mainstream
ROBERT
WYATT: Ruth is Stranger than Richard
GAVIN
BRYARS: The Sinking of the Titanic
MICHAEL
NYMAN: Decay Music
PENGUIN
CAFE ORCHESTRA: Music from the Penguin Cafe
HAROLD
BUDD: The Pavillion of Dreams
DAVID
BOWIE: Low; Heroes; Lodger
ULTRAVOX:
Ultravox!
CLUSTER
& ENO: Cluster & Eno; After the Heat
PHIL
MANZANERA: Listen now
CAMEL:
Rain Dances
TOM
PHILLIPS: Irma
DEVO:
Are we not Men? We are Devo!
TALKING
HEADS: More Songs about Buildings and Food
VÁRIOS:
No New York
ROBERT
FRIPP: Exposure
TALKING
HEADS: Fear of Music
DAVID
BYRNE & BRIAN ENO: My Life in the Bush of Ghosts
ANOS 80
Os
anos 80 foram mais calmos. Tempo para espalhar pelo mundo o ambientalismo de
Harold Budd, Michael Brook, Daniel Lanois, Laraaji e do seu irmão Roger,
“satieano” convicto. Permitiu aos U2 renascerem das cinzas e coloriu os
cocktails de Carmel e o betão dos He Said, uma derivação dos Wire. Com Jon
Hassell desbravou o continente das músicas do quarto mundo. E os Talking Heads
nunca tinham fervido tanto como em “Remain in Light”.
TALKING
HEADS: Remain in Light
HAROLD
BUDD & BRIAN ENO: The Plateaux of Mirror
LARAAJI:
Day of Radiance
JON
HASSELL: Possible Musics; Dream Theory in Malaya; Power Spot; The Surgeon and
the Nightsky Restores Dead Things by the Power of Sound; Flash of the Spirit
DAVID
BYRNE: The Catherine Wheel
HAROLD
BUDD: The Pearl; The White Arcades
U2:
The Unforgettable Fire
MICHAEL
BROOK: Hybrid
ROGER
ENO: Voices
CARMEL:
The Falling; Set me free
HE
SAID: Hail
U2:
The Joshua Tree; Rattle & Hum
DANIEL
LANOIS: Acadie
JOHN
CALE: Words for the Dying
ANOS 90
A
década da dispersão e de todos os convites. Tornou-se moda. Uma espécie de
Midas tão apto a participar na world global de Geoffrey Oryema e Baaba Maal
como na pop apenas pop de Jane Siberry ou dos James. Coisas mais sérias que têm
impressas a sua impressão digital são os álbuns de Laurie Anderson e de Arto
Lindsay. Foi buscar um disco de “ambiente kraut” perdido nos anos 70 com os
Harmonia ao mesmo tempo que passeou por uma das mais belas sinfonias ambientais
de Joachim Roedelius, dos Cluster. Irritou-se com a etnoseca de Jah Wobble, foi
apropriado pelo pós-rock dos Ui e, uma vez mais, o seu nome figura na ficha
técnica de uma obra-prima: “Shleep”, de Robert Wyatt. Não consta que tivesse
ficado chocado quando “Velvet Goldmine” desenterrou o seu passado glam, de
plumas e falsetto.
GEOFFREY
ORYEMA: Exile; Beat the Border
BRIAN
ENO & JOHN CALE: Wrong Way up
U2:
Achtung Baby; Zooropa
MICHAEL
BROOK: Cobalt Blue
JANE
SIBERRY: When I was a Boy
JAMES:
Laid
HANS-JOACHIM
ROEDELIUS: Theater Works
LAURIE
ANDERSON: Bright Red; The Ugly One with the Jewels
ARTO
LINDSAY: O Corpo Sutil
BRIAN
ENO & JAH WOBBLE: Spinner
HARMONIA:
Tracks & Traces
ROBERT
WYATT: Shleep; Eps
BAABA
MAAL: Nomad Soul
UILAB:
Fires
BSO:
Velvet Goldmine
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