27/11/2008

Sheryl Crow - Sheryl Crow

Pop Rock

30 de Outubro de 1996
poprock

Sheryl Crow
Sheryl Crow
A & M, DISTRI. POLYGRAM

As meninas boas vão para o céu, as outras vão para todo o lado. Há ainda as meninas que se vê que são boas pelos vídeos. As meninas estão a invadir o mercado com os olhos postos nos “charts”. Sheryl Crow, Shawn Colvin, Aimee Mann, Merrill Brainbridge, Susanna Hoffs, Tracy Bonham. A música é comercial em qualquer dos casos. Mas o que distingue a recente produção “mainstream” do feminino das inocuidades do passado é que é tudo muito bem feito, com bom-gosto e servido em produções sofisticadas, que têm a preocupação de conseguir “um som”. Sheryl Crow tem fortes argumentos para alcançar um lugar ao sol. Não estamos a falar do seu muito bom aspecto geral, mas da voz, que em alguns temas – como “A change” ou “If it makes you happy” – é muito parecida com a de Aimee Mann mas dá vontade na mesma de trazer para casa. Sheryl Crow tem, além disso, o cuidado de parecer preocupada com o mundo e de tocar uma quantidade de instrumentos. Considera mesmo o órgão o instrumento da sua preferência desde os 15 anos de idade, dizendo ser o “mais ‘sexy’ de sempre”. Refere-se, é claro, ao órgão Hammond B-3. Pois, “Sheryl Crow”, segundo álbum desta cantora, depois de “Tuesday Night Music Club”, tem carne e alguma vida, e o tema de abertura “Maybe angels” tem pinta de “hit”, chamando mais vezes a pedir que a ouçam. As meninas boas causam sempre boa impressão. (6)

"Cantar é trabalhar do peito" [Isabel Silvestre]

POP ROCK

23 de Outubro de 1996

Isabel Silvestre recria hino nacional na sua estreia a solo

“Cantar é trabalhar do peito”

Isabel Silvestre é “A Portuguesa”, título do seu primeiro álbum sem a companhia das vozes de Manhouce. Aí o hino da República transforma-se em tradição mais antiga e monárquica em que “as armas são outras”. Aí as canções de Rui Veloso, Variações, José Mário Branco e José Afonso, entre outros, ganham a elevação e a pureza de uma serra junto ao céu.

“É um projecto já muito antigo, desde que gravámos o primeiro disco”, começa por dizer a Isabel Silvestre a propósito de “A Portuguesa”. “Simplesmente, na altura achei que não devia fazer isso, na medida em que o grupo estava a começar.” Havia que encontrar espaço fora do Grupo de Cantares de Manhouce, sem descurar certos cuidados. “A responsabilidade é uma coisa complicada. Sinto-me responsável pelo grupo da mesma maneira, só que, ao mesmo tempo, também mais liberta, tendo a certeza de que o grupo é capaz de não parar. Já anda com os seus próprios pés, mesmo sem mim.”
O processo que levou à gravação foi gradual, de maturação lenta. “O Mário Martins foi o primeiro que me abordou, ainda a meio do primeiro disco do grupo. Depois, por uma razão ou por outra, as coisas foram-se arrastando até que por fim acabámos por escolher as canções, eu, o João Gil, o dr. João Teixeira, o David Ferreira. Foi de todos esses encontros que o disco nasceu.” As diferenças entre cantar com o grupo de música tradicional e cantar a solo canções de outros, explica-as Isabel Silvestre como operações da sensibilidade. “Na popular, transmito a maneira de ser e de estar do povo. Neste disco, através do que canto traduzo aquilo que ela é capaz de me sensibilizar e dizer.” Exemplifica: “As músicas do Zeca Afonso identificam-se um pouco comigo, com a minha maneira de ser. Mas gosto de todos os outros, do Rui Veloso, que tem uma outra maneira de estar e de dizer. O tema que eu canto dele tem a ver, não só comigo própria, como com o meio em que vivo. O António Variações, acho-o uma maravilha, tinha letras e músicas lindíssimas. Era uma mensagem constante de carinho e de ternura, na cantiga onde ele fala com a mãe [“Deolinda de Jesus”]. Penso que encontramos lá a nossa própria mãe. Já tinha cantado outra canção dele, ‘Estou além’.”
Em estúdio, “foi voz por um lado e instrumentos por outro”. “Na brincadeira, quando se fez a ‘Pronúncia do Norte’, dizia ao Rui [Reininho] que estou habituada a cantar e a música a vir atrás de mim. Na música tradicional tem sido assim. O acompanhamento é muito simples, eu canto e os instrumentos acompanham-me. Tem sido assim desde menina. Ao passo que aqui é um pouco diferente. Gravou-se primeiro os instrumentos e depois a voz, à excepção de ‘A Portuguesa’, que foi ao vivo.”
Isabel Silvestre conta como surgiu a ideia de cantar o hino nacional. “Nas nossas andanças tem havido espectáculos que são páginas da nossa vida. Uma delas foi em Espanha, no dia 10 de Junho. Pediram-nos para cantar, a abrir, ‘A Portuguesa’, coisa que o grupo nunca tinha feito. No meu tempo de aluna, ainda pequenita, antes de começarmos o primeiro dia de aulas, a primeira coisa que se fazia era cantar o hino. Em Espanha, ficámos um bocado aflitas. Mas cantámos e tudo correu bem. Até aquela parte, ‘às armas, às armas’. Aí as armas foram outras, o sentimento bateu à porta de cada uma e, em vez de uma força exterior, essa força interiorizou-se, foi um bocado complicado…”
Cantar a tradição é, para Isabel Silvestre, tarefa sagrada, como cuidar de um filho ou pegar numa relíquia. “Alguém dizia que cantar é trabalhar do peito. Depois da letra, depois da música, há que dar sentimento a essas duas vertentes. Já andamos nisto há 20 anos. Já por uma vez ou outra quisemos, ou quiseram as pessoas que estavam encarregadas da parte musical e instrumental, dar uma volta às cantigas, no ‘Vozes da Terra’ e não só. Eu opus-me terminantemente, porque, se estamos na música tradicional, temos que dá-la com a sua autenticidade e verdade. Se estamos a cantar as cantigas de Manhouce, temos que ir às raízes e não sair delas, senão não estamos a fazer nada, estamos a desfazer. Para isso era melhor deixar estar tudo quietinho, não levantar o pó, ter cuidado de não riscar.”

Rodrigo Leão & Vox Ensemble

POP ROCK

16 de Outubro de 1996

RODRIGO LEÃO & VOX ENSEMBLETheatrum (8)
Columbia, distri. Sony Music

O maior “pecado” da pop continua a ser o de querer deixar de o ser. Rodrigo Leão insiste na menção a referenciais pop, em relação ao seu trabalho, mas a evidência mostra que a sua alma deriva hoje por outras frequências do espectro musical. “Theatrum”, segundo álbum com os Vox Ensemble, depois de “Ave Mundi Luminar” e do EP “Mysterium”, é o típico objecto que é fácil denegrir, sob as acusações de “pretensiosismo” e de acomodação a uma leitura simplificada da música clássica.
Seria fácil classificar “Theatrum” como a mera procura do bonito e do politicamente correcto, com base em referências que vão de Michael Nyman a Mozart e Górecki. Ao invés, estamos perante algo mais do que simples teatro. Ao contrário de “Ave Mundi Luminar”, onde é por demais óbvia a sedução que a lógica das estruturas formais exerceu sobre Rodrigo Leão, em “Theatrum” percebe-se um arrebatamento e uma interiorização das formas “eruditas” que colocam a sua música acima, ou para além, da descodificação imediata das formas.
A teatralização aqui é da ordem do drama, ou da tragédia, no sentido clássico grego, e de pulsações cuidadosamente revertidas para uma linguagem que se assume como liturgia. Com o Voz Ensemble e a ajuda do coro Ricercare juntou Rodrigo Leão uma tapeçaria de tristeza onde as formas clássicas se fundem com a artilharia gótico-industrial de uns In The Nursery (“Locus secretus”) e a computação tecnológica, aspecto no qual o seu trabalho se revela particularmente notável, seja na sequenciação dos “samples” percussivos ou ambientais, seja na simulação de mil e um arcaísmos, de que são exemplos os excelentes “Dies irae”, “O corredor” e “Contra mundum”.
“Theatrum” despede-se e celebra o luto de uma música, a pop, em agonia. Ou de algo mais, na lamentação final, cantada em russo – “O novo mundo” – tal como no início, “In memoriam”, a bailar no som de sinos que sabemos serem os da loucura…

Harold Budd - Luxa

Pop Rock

16 de Outubro de 1996

Harold Budd
Luxa
ALL SAINTS, DISTRI. MVM

Contrariando a tendência recente que indicava uma importância crescente dada às palavras, “Luxa” orienta de novo as coordenadas musicais de Budd para a música ambiental. “Luxa” divide-se em quatro secções. A primeira, “Butterflies with tits”, inclui seis temas de cariz impressionista em que o piano é a voz narrativa principal de quadros luminosos alusivos a alguns dos artistas preferidos de Budd, deste século, com títulos estranhos como “A sidelong glance from my round Nefertiti”. “Inexact shadows”, quatro esboços com apenas alguns segundos cada, fazem a ponte para a terceira secção, “Smoke trees”, em que o pianista ilustra a vertente mais sombria e reflexiva da sua música, numa linha próxima de “The Shutov Assembly”, de Brian Eno. A última secção, “Laughing Innuendos”, engloba duas dedicatórias, “Marion Brown (sweet Earth flying)”, piano solo, numa recriação do universo sonoro deste compositor, que Budd, aliás, já interpretara, em “The Pavillion of Dreams”, e “Steven Brown”, um híbrido de sintetizadores construído sobre a música dos Tuxedomoon. Com “Luxa”, Harold Budd demonstra uma vez mais que “ambiental” e “sedativo” não são necessariamente sinónimos. (8)

Kula Shaker - K

Pop Rock

16 de Outubro de 1996
poprock

PSICAdelas de olho

KULA SHAKER

K (7)
Columbia, distri. Sony Music

Os rapazes da “brit pop” andam a trabalhar com afinco, aproveitando para dar ouvidos à música do passado. A verdade é que lambuzar no boião da cultura nunca fez mal a ninguém e agora que o rótulo “pós-modernismo” se aplica a seja o que for que tenha desistido de arriscar a “primeira vez”, há que tirar partido das virtudes da síntese e da polivalência.
Os Kula Shaker são a coqueluche do momento, em Inglaterra, onde o primeiro lugar do Top já lhes pertence. Sem querer desfazer no gosto de consumidor britânico vulgar, tão vulgar como o dos seus parceiros do continente, a verdade é que os Kula possuem argumentos de sobra para justificar este e posteriores triunfos. A primeira impressão que se tem ao escutar “K” assume a forma da secular questão: “Onde é que eu já ouvi isto?” Percebe-se, também, imediatamente, que os Kula Shaker se agarraram a uma época, fazendo tudo o que podiam para espremer até à medula o seu sumo. A época remonta a 1967, quando o psicadelismo deixava pouco espaço a outros sons e comportamentos. Mas o engraçado é que o grupo começa por se socorrer de um filtro temporal intermédio, agarrando-se a um degrau ou a um corrimão de segurança, no seu movimento de regressão, dando de caras, nos três primeiros temas, com os “psicadélicos” da geração de 80, Stone Roses, Julian Cope e Legendary Pink Dots.
Alcançado esse primeiro estágio, introduzem a nota do exotismo orientalista. É então que surgem as “sitars” indianas, George Harrison, Ravi Shankar (o mediático, de Woodstock, entenda-se…), o Guru Maharishi, toda a galeria de santos e quinquilharia “hippie” que serviam de bagagem para a “trip” de LSD. O truque resulta, dando passagem à fase da cópia com menor ou maior descaramento. Por esta altura, a audição de “K” já se transformou num jogo de adivinhas cujo gozo consiste em apanhar as fontes de onde as frases foram sacadas. Os Pink Floyd contribuem com uma importante fatia de pano para as mangas. Em “Magic theatre”, a guitarra cósmico-indolente fugiu de “Meddle”, em Tattva”, de “Wish You Were Here”. “Grateful when you’re dead/Jerry was there” (reparem bem no título) é uma homenagem aos Grateful Dead que soa aos Beatles da fase inicial misturados com um “riff” de “I’m a man”, dos Chicago, enquanto “303” descolou do túmulo as distorções da “Fender Stratocaster” de Jimi Hendrix. Quanto ao vocalista, toma-se amiúde por um sósia de Edward Kaspel, como acontece em “Temple os everlasting light” e no tema final, “Hollow man”. Torna-se difícil resistir a esmiuçar até ao fim as moléculas musicais de “K”. Há quem tenha encontrado os Monkees, os MC5 de “Kick out the Jams”, o álbum branco dos Beatles, os Cactus, Crosby, Stills & Nash…
Quando nos dermos por satisfeitos com este jogo de rato e do gato, resta-nos admirar a unidade demonstrada por esta monstruosa colagem e reconhecer as artes de encantamento dos Kula Shaker. É que cada canção, soe da maneira que soar, tão saturada de referências como uma enciclopédia, nem por isso deixa de evidenciar uma enorme capacidade de sedução. Os Kula Shaker, mais do que ladrões, são prestidigitadores.

Évasion - Cantos Do Mundo

POP ROCK

16 de Outubro de 1996
world

Évasion
Cantos do Mundo
ED. EL TATU

As meninas cantam. E bem. São todas filhas de emigrantes, duas delas de pais portugueses. Por esse motivo, as Évasion acrescentaram, nesta reedição aumentada do álbum “Vous et Nous…”, três temas cantados em português, “O ladrão”, um original dos Madredeus (aqui com a companhia de Tim, dos Xutos e Pontapés), o tradicional “Anda cá, Manuel” e “Grândola, vila morena”, de José Afonso. O método das Évasion é simples: ouvem a maior quantidade possível de polifonias vocais de todo o mundo, escolhem as que gostam mais e procuram reproduzi-las o mais fielmente possível. São, por este motivo, uma espécie de catálogo, uma viagem barata pelos folclores do planeta, empreendida com razoável discernimento, apesar da ausência de um enquadramento que permita entender estes “Cantos do Mundo” como a integração da “world music” numa visão personalizada (como acontece com as Zap Mama), e não como uma colecção aleatória de temas avulsos. Importa, no entanto, realçar a pouca idade dos elementos do grupo, espantando, por isso, a maturidade das interpretações e a intuição revelada na diversidade de registos exigidos pelas várias tradições. As Évasion possuem a ginástica vocal e o bom gosto, condições que lhes permitirão, a curto prazo, atingir um patamar ainda mais elevado. Para já fica o gozo do passeio pelas polifonias do Louisiana, África do Sul, Japão, Bulgária, Córsega, Catalunha, Hungria, Argélia, Nápoles, Haiti, Geórgia e Oceânia, além dos três temas cantados em português. A capa é um horror, sendo de toda a conveniência ignorá-la, sob pena de se cercear pela raiz qualquer possibilidade de evasão. (7)

Um mar que lhe deu [Roger Eno]

Pop Rock

9 de Outubro de 1996

Irmãos Eno em acção. Roger lança álbum de canções sobre o mar. Brian escreve um diário.

UM MAR QUE LHE DEU

“Swimming”, o novo álbum de Roger Eno, tira o retrato a paisagens sonoras de praias solitárias e ventosas. Histórias de enforcamentos e cantos de embalar, pedaços de esquecimento trazidos pela brisa até à costa. Um álbum de atmosferas marítimas que não se envergonha de citar o irmão mais velho do seu autor, Brian Eno. E de aproveitar as lições da poesia e do cinema.

Embora igualmente seduzido pelo conceito de “atmosfera”, Roger Eno demarca-se cada vez mais do abstraccionismo do seu irmão, Brian Eno, ganhando uma autoconfiança que, inclusive, o levou a incluir no novo álbum um tema directamente influenciado por este. Mas as semelhanças param aqui. Se Brian é um cirurgião do imaginário e do tempo, Roger Eno viaja através dos elementos e de locais reais como um fotógrafo em busca de uma essência perdida. Tem por hábito tocar piano de frente para um quadro.
PÚBLICO – Em “Swimming” integrou, pela primeira vez, temas tradicionais. Que tipo de relação tem com este género de música?
ROGER ENO – Sempre me interessei pela música tradicional, sobretudo por ser tão personalizada e natural. Além disso, aprecio a maneira como, ao longo dos anos, a mesma canção se metamorfoseia em múltiplas variações, num processo contínuo de subtis transformações. Grande parte da música tradicional é muito poderosa do ponto de vista melódico, o que constitui, ao mesmo tempo, a sua força e uma limitação, se quisermos trabalhá-la ao nível dos arranjos. Frequentemente é tão autónoma que qualquer enfeite ou adição sobre a base melódica se torna supérflua. Todavia, este género de material pode ser trabalhado do ponto de vista da harmonia e da atmosfera e foi o que procurei fazer em “Swimming”.
P. – O primeiro tema, “The Paddington frisk”, não aparece creditado como tradicional, embora soe como tal…
R. – “The Paddington frisk” é uma brincadeira bastante mórbida. A frase “dançar o Paddington frisk” é um eufemismo de “enforcamento”, e “frisk” (“pulo”, “cambalhota”) o esticão do corpo dos condenados quando ficavam pendurados na forca. Compus, com alguma perversidade, uma melodia extremamente alegre para um sentimento de pavor.
P. – “The boatman” foi composto sobre um tema antigo, que nunca chegou a gravar, “The seaside”. Qual foi o contexto original em que o escreveu?
R. – “The seaside” era uma peça simples de piano que costumava tocar em concerto, servindo de base a uma improvisação, uma excursão de dez minutos com destino sempre incerto. Um dos meus métodos de trabalho é escolher o nome de uma peça antes mesmo de a escrever, ou de improvisar, funcionando o título como uma espécie de guia para um estado de espírito ou uma atmosfera particulares que, por sua vez, conduzem a evolução da música.
P. – A canção seguinte, “Slow river”, lembra bastante temas do seu irmão, em álbuns como “Taking Tiger Mountain (By Strategy)” ou “Before and after Science”…
R. – Quando escrevi essa canção apercebi-me, de facto, da sua semelhança com os trabalhos mais antigos de Brian, e de que as pessoas se iriam igualmente aperceber disso. Mas, por uma questão de honestidade, achei que devia incluí-la, sendo aliás uma das minhas preferidas do álbum. De resto, cheguei a pensar dedicá-la a Brian.
P. – Em “Swimming”, fez tudo sozinho, da produção, ao canto, passando pela produção e execução instrumental. É um álbum demasiado pessoal para incluir outras pessoas?
R. – Digamos que não necessitei do “input” de outrem. Pretendi desviar-me da instrumentação mais tradicional, optando por instrumentos que, regra geral, tenho negligenciado – guitarra, banjo, acordeão, etc. -, de maneira a dar um sabor completamente diferente ao álbum. Foi um prazer andar a esgravatar nos armários à procura de sons.
P. – Durante o processo de criação sentiu-se mais como um pianista, um arquitecto de texturas ambientais, um fotógrafo de sons ou um “simples” escritor de canções?
R. – Gosto de uma dessas definições, “fotógrafo de sons”, é bastante apropriada para o que tentei encontrar. De facto, um dos títulos provisórios para o álbum era “Postcards” [“postais”], funcionando cada tema como um instantâneo de um determinado momento. Era isto que tinha em mente quando pus a hipótese de dedicar cada um dos temas a um amigo particular, como se lhe estivesse a enviar um postal. Tentei retratar lugares e estados de espírito… Sim, “fotógrafo de sons” parece-me bastante bem.
P. – de que maneira o lugar onde vive, Woodbridge, no Suffolk, o afectou na composição do álbum?
R. – Um dos aspectos notáveis de se viver num lugar que se conhece bem é a descoberta constante de coisas que antes passavam despercebidas, detalhes, o modo como a luz altera o aspecto de uma rua, adornos num tecto nos quais nunca se tinha reparado… Procuro sobrepor diferentes camadas que estimulem constantemente a curiosidade, de maneira a que cada tema pareça sempre diferente a cada nova audição.
P. – A praia de Dunwich também teve alguma importância no processo. É, aliás, a mesma praia que já inspirara o seu irmão a escrever “Dunwich beach, Autumn 1960”, um canção do álbum “On Land”. É um lugar com uma mística especial?
R. – Dunwich é uma povoação perdida na costa leste de Inglaterra, com uma atmosfera de desolação, constantemente assolada pelos elementos. Afecta-nos de uma maneira especial. Sussurra-nos sobre o efémero, de glórias passadas, de coisas vagamente recordadas… Notam-se constantemente mudanças. Marcas de terra que foram apagadas… Como se, estranhamente, nos encontrássemos num lugar diferente…
P. – “Swimming” evoca igualmente Paris e o Sena, no Outono, fazendo lembrar o interlúdio musical de “Diva”, do realizador francês Jean-Jacques Beineix. Os filmes constituem, para si, uma fonte de inspiração?
R. – Esse filme, “Diva”, serviu de inspiração a “Grey promenade”, uma peça do meu primeiro álbum “Voices”…
P. – E a pintura?
R. – É, sem dúvida, uma grande fonte de inspiração, bem como a poesia. Um dos métodos que uso para improvisar é colocar um quadro no suporte das partituras do piano, tentando retratar a sua atmosfera pictórica em termos musicais. É um processo que pode ajudar a romper padrões vulgares de interpretação. A partir destas improvisações, aproveito alguns bocados e construo com eles novas peças.
P. – Em que língua cantou “Amukidi” e “Hewendaway”?
R. – Estava a cantar para as minhas filhas adormecerem, sem querer construí uma “lullaby” [canção de embalar], tanto a melodia como palavras em sentido. Gravei-a e tornou-se “Hewendaway”. A seguir, o meu produtor quis ouvir como é que ficava ao contrário. Trocou a onda sonora no computador e foi assim que nasceu “Amukidi”. A ideia funcionou e, a partir dela, fiz um arranjo ligeiramente diferente.
P. – Quais são as suas referências literárias?
R. – Dos escritores, Italo Calvino e Grahame Swift são os meus favoritos, também Flann O’ Brien. Regra geral, leio antologias de poesia e aprecio demasiados poetas para os mencionar todos aqui, desde obras anglo-saxónicas de autores anónimos a muitos ainda vivos.
P. – Além do que já mencionou, de que é que necessita para criar uma atmosfera musical específica, no caso de “Swimming”, relacionada com a água e com o mar?
R. – No caso de “Swimming”, viajei ao longo da costa, durante uns quatro meses, para me embeber dos ambientes dos diversos locais. O processo funcionou, penso, pelo menos nalguns temas. Uma vez que apanhava a ideia do percurso que tencionava seguir, continuava na mesma direcção, recolhendo outras ideias pelo caminho. Como um limpador de praias…
P. – “Where the road leads to nowhere” tem uma história. Pode fazer um resumo para os leitores?
R. – Mesmo a norte de Dunwich, fica Covehithe, outra cidade “perdida”. Construíram lá uma estrada que deveria ligar-se a outra localidade mas que, de repente, termina abruptamente numa falésia, apontando para o céu, sobre a praia. É uma imagem que desencadeia uma reacção poética forte e que tinha de ser aproveitada.
P. – “The parting glass” é o lugar, na alma humana, onde o vinho se confunde com a água?
R. – É um dos meus temas favoritos, com palavras e melodia directos e emotivos mas, para falar verdade, não misturo água no meu vinho…

26/11/2008

Roger Eno - Swimming

Pop Rock

25 de Setembro de 1996
Poprock

Sonata de Outuno

ROGER ENO
Swimming (7)
All Saints, distri. MVM

O percurso musical do irmão mais novo de Brian Eno tem sofrido uma evolução curiosa de seguir. Primeiro foi a transposição do sublime niilismo “maçon” de Erik Satie para um contexto ambiental, em “Voices”, para nós, ainda o seu melhor álbum. Seguiu-se a música de câmara e o fascínio pelos brinquedos acústicos, em “Between tides”, para na colaboração com a antiga vocalista dos Dream Academy, Kate St. John, se fragilizar no bucolismo, muito “british”, de “The Familiar”. Regressou ao classicismo, mas agira condimentado pelo melaço pseudominimalista de instrutores como Michael Nyman e Wim Mertens, em “In a Room” e “Lost in Translation” e aí parecia querer ficar a dormitar até que neste seu novo trabalhou despertou de novo com o formato de “canção”, só que desta vez sendo ele próprio a encarregar-se das vocalizações. “Descobriu” igualmente as delícias da música tradicional de raiz céltica. A polca/valsa de abertura é uma leitura superficial da “folk”, na atitude e no modo idêntica à de Mike Oldflield nos primórdios de carreira (no seu novo álbum, “Voyager”, regressou em força ao celtismo, embora o resultado seja para esquecer), em temas como “The sailor’s hornpipe”. O golpe de rins vem a seguir, em duas canções que se diriam decalcadas do fundo de catálogo do irmão, “The whole wide world” e “the slow river”, onde mesmo os títulos parecem pertencer a álbuns como “Another Green World” e “Before and after Science”. “In water”, por sua vez, corresponde à fase “Apollo Atmospheres & Soundtracks” do irmão e “Amukidi” é um jogo coral de ressonâncias africanas “A capella”. No título-tema ressalta a costela satieana, num “nocturno” ondulatório embalado por um acordeão e um piano de flores, ideal para acompanhar devaneios nas margens do Sena. “Over the hills” lembra as baladas dos King Crimson, ainda com Peter Sinfield, o tradicional “The boatman” mistura a pianada romântica “à la” Wim Mertens, um vibrafone de água e canto gaélico e “Hewendawa” é Enya no masculino. O mistério, marítimo ou não, fica a pairar em “Aryis”, para nós o melhor tema do disco e aquele que poderia lançar Roger Eno nas fileiras da ECM. O Outuno começa aqui.

Sheila Chandra - ABoneCroneDrone

Pop Rock

18 de Setembro de 1996
world

SHEILA CHANDRA
ABoneCroneDrone (8)
Real World, distri. EMI - VC

Era previsível a forma que tomou este terceiro tomo de uma trilogia que se iniciou com “Weaving my Ancestor’s Voices”, prosseguiu no anterior “The Zen Kiss” e finalmente desembocou no oceano, literalmente sem margens, da “drone” pura e simples. Um passo lógico mas que não deixa de ser radical da parte desta cantora de ascendência indiana, para quem a experiência do canto se liga intimamente à da audição e do contacto místico com níveis superiores do ser, como é o da música, enquanto realidade ideal, no sentido que Platão lhe conferiu – entidade pré-existente à qual, por ascese, o homem pode aceder (contemplar) ou, no caso do músico, “roubar” de modo a transformá-la em frequências sonoras audíveis. Um sentido assumido até às últimas consequências por Sheila Chandra, que aqui se refere à sua música como “performance”, na medida em que se afirma como relação que exige a participação activa do auditor – sendo este último, em última análise, quem confere à matéria sonora os seus atributos semânticos e a sua organização final. Premissas que colocam “ABoneCroneDrone” e os seus seis segmentos-temas, todos com este título, na mesma linha ideológica e estética dos minimalistas e, em particular, de LaMonte Young e do seu conceito de música eterna, os quais, por sua vez, derivam das noções de “drone” e de ciclicidade da música indiana, afinal a matriz formal, filosófica e religiosa do movimento minimalista. Em “ABoneCroneDrone”, Sheila navega no interior do som, fazendo nascer, de maneira mágica, as melodias, do centro da harmonia, lugar de origem de todos os ordenamentos e sequenciações melódicas. Lugar, pois, de navegação mas também de pesca, onde uma simples sílaba se estende até ao infinito e a noção de polifonia se dilui na imensidão oceânica das microtonalidades e do jogo de combinações dos harmónicos, por sua vez multiplicados em micro-sinfonias subliminares. É difícil acreditar que esta Sheila Chandra seja a mesma que, nos anos 80, levou “Ever so lonely”, com os Monsoon, aos tops de vendas. Em “ABoneCroneDrone”, a cantora alinha-se na vanguarda do experimentalismo vocal, embora – e bastaria esta diferença para a distinguir de algumas das suas companheiras representantes de correntes e técnicas de canto ocidentais – sem cortar os elos de ligação aos princípios da música indiana tradicional. No fundo, “tecendo”, de maneira inovadora, as tais “vozes dos seus antepassados”.

Patti Smith - The Patti Smith Masters

Pop Rock

11 de Setembro de 1996

Iluminações

PATTI SMITH
The Patti Smith Masters (8)
6xCD, Arista, distri. BMG


O rock não tem futuro. É provável que não. Mas orgulha-se de um passado e não deixa de sonhar o presente. Patti Smith contribuiu para a construção desse tempo de glória, juntando a poesia e a energia numa obra cuja totalidade foi agora reeditada no formato de antologia. Seis compactos remasterizados, os cinco de originais que gravou entre 1975 e 1979, mais uma selecção dos seus maiores êxitos, incluindo um par de canções do novo “Gone again”

William S. Burroughs, Robert Mapplethorpe, Vermeer, a literatura japonesa do séc. XVI, Madre Teresa de Calcutá, Sam Shepard, Kurosawa, Godard, Woody Allen e, sobretudo, Jean-Arthur Rimbaud são alguns dos múltiplos nomes e interesses que estão ligados a esta artista cuja carreira se iniciou na aurora dos anos 70, a declamar poesia na East Village, com a ajuda da guitarra de Lenny Kaye, e a escrever artigos para a “Creem Magazine”. Armada com este arsenal de cultura, influências e amizades, Patti Smith poderia ter optado pelo diletantismo e pela máscara da artista afogada na sua visão. Ao invés disso, esta mulher de ar escanzelado e ar andrógino preferiu a via do rock e do confronto directo, privilegiando o contacto de emoções à dissecação dos conceitos. A reedição completa da sua discografia é, além disso, um bom pretexto para se perceber algum do sentido do “punk” e da maneira como as gerações mais recentes se apropriaram do seu fogo, até das suas entoações vocais (Siouxsie Sioux, P. J. Harvey ou Courtney Love devem-lhe bastante, neste aspecto), nos caso dos “punks” não aproveitando, infelizmente, da sua inteligência. Agora que o “no future” volta a ser palavra de ordem, convém lembrar que o niilismo nunca foi bom conselheiro e que o rock sempre avançou empurrado por ideais. E Patti Smith era, e continua a ser, uma idealista.
A caixa “The Patti Smith Masters” é parca em adereços. Nada de futilidades. Apenas a sobriedade e o tom incisivo que sempre caracterizaram, desde o invólucro ao conteúdo, todos os seus discos. Superfície negra, com caracteres finos impressos em prateado. No interior, os cinco álbuns de originais – “Horses”, de 1975, “Radio Ethiopia”, de 1976, “Easter”, de 1978, “Wave”, de 1979 e “Dream of Life”, de 1988 -, mais um volume de “Selected songs” retiradas destes cinco discos mais duas canções do recente “Gone again”. À remasterização, capas originais, com as fotos de Mapplethorpe, de quem a cantora foi amiga, e informação adicional, juntaram-se um ou dois temas extra a completar cada disco. “Selected songs” apresenta na capa uma foto da mesma sessão de fotografias de “Gone again” e versões iguais às dos álbuns de originais, não se compreendendo, portanto, muito bem o alcance da sua inclusão nesta antologia. A capa, desdobrável, como as restantes cinco, apresenta uma biografia sucinta. A grande qualidade de “Gone again”, para além da “ressurreição” do “punk”, por si sós, eram suficientes para justificar a presente reedição e o interesse renovado pela sua autora, ao ponto de o jornal “Melody Maker”, na sua edição de 6 de Agosto, lhe dedicar três páginas e a “Record Collector” do mesmo mês 15 (!).
“Horses” é o impacte, um ano antes da explosão “punk”. A produção está creditada a John Cale, mas todo o som, na sua violência e crueza, é da responsabilidade de Patti. “Ignorámos todas as sugestões de Cale”, diz ela a este propósito. É o álbum de “Gloria”, um original de Van Morrison, da homenagem a Hendrix, em “Elegie”, dos grandes crescendos poéticos, como “Birdland” e “Land”. O tema extra mostra a sua leitura pessoal de “My generation”, dos The Who. Charles Murray. Do “New Musical Express”, descreveu, na altura, “Horses” como “uma espécie de ensaio definitivo sobre a noite americana enquanto estado de espírito”. “Horses” faz a convergência perfeita do simbolismo de Rimbaud com a violência depurada dos Velvets, justapondo sons e palavras com a precisão de uma faca e a dureza do metal. Faca que Patti Smith usa metaforicamente na definição do seu trabalho seguinte, “Radio Ethiopia”, “a faca que abriu a carne”, naquele que é o álbum mais experimental de toda a sua discografia. Os sintetizadores aparecem pela primeira vez e as experiências sonoras adquirem maior envergadura no título-tema, dez minutos gravados ao vivo que não receiam a utilização do ruído, da distorção e da colagem. Uma “suite” dividida em três partes que prenunciava as técnicas de samplagem, na qual Patti Smith procurou traduzir as explorações com estruturas livres de Albert Ayler. Álbum de alucinações de ópio, o mais marcado por Rimbaud, a quem, de resto, é dedicado.
Curiosamente, no ano de glória do “punk”, 1977, o nome de Patti Smith desaparece de cena. Uma queda do palco, numa actuação na Florida, atirou-a para a cama durante nove meses, impossibilitando-a de participar na orgia. Por outro lado, a anarquia então vigente não era ainda capaz de assimilar a sofisticação, tanto musical como poética, que a cantora não dispensava.
“Easter”, de 1978, é o álbum da ressurreição e inclui o “hit” “Because the night”, co-composto pelo então desconhecido Bruce Springsteen. A produção, assinada por Jimmy Lovine, investe num som mais aberto e declaradamente inserido na estética “new wave”. As palavras continuavam, porém, tão acutilantes como antes, aqui inscritas a raiva na sequência declamada cujo título, “Babelogue”, antecipava a publicação do quinto livro de poesia da cantora, de genérico “Babel”. “Wave” sai em 1979, com produção de Todd Rundgren, ainda mais próximo da pop e do “mainstream”, mas onde não faltam excelentes canções como o caudal de “Dancing barefoot”, comprovativo de que o rock pode swingar, o “hit” “Frederick” e a versão de “So you want to be (a rock’n’roll star)”, dos Byrds.
No ano seguinte, 1980, Patti Smith casa com Fred “Sonic” Smith, ex –MC5, o que a leva a preferir a vida doméstica em detrimento do “show business”. Ela mesmo faz questão de explicar que abandonou a indústria musical mas não a música propriamente dita. O amor leva a melhor durante nove anos, período finalmente interrompido pela edição de “Dream of life”, em 1989, um álbum honesto mas sem o vigor de outrora. A água substituíra o fogo, enquanto a cantora se justificava com a descoberta de novas dimensões do ser e da influência do sol, num mal disfarçado misticismo. “Sonic” Smith viria a morrer cinco anos mais tarde, em 1994. As feridas seriam saradas de forma sublime em “Gone again”, uma história por nós já aqui contada. Do regresso à boa forma e à sua paixão de sempre: o rock, iluminado pelo discernimento e pela poesia.

Lascívia animal [The Divine Comedy]

Pop Rock

19 de Junho de 1996

The Divine Comedy actuam em Portugal e lançam novo álbum

Lascívia animal

“Inspiration” e “Promenade” e o mais recente “Casanova” são, até à data, três momentos de um percurso de que não se conhece, por enquanto, a chave certa. O mistério dos Divine Comedy é o lugar de eleição de Neil Hannon, um irlandês de 25 anos que faz da afectação modo de vida e da maquilhagem musical uma lei.


“Casanova” é teatro, sexo, amores canibais e um caleidoscópio de referências que vão de Burt Bacharah a Marc Almond, de Scott Walker a Peter Hammill. A pop na voz de um excêntrico. Ou de um comediante. Entre outras coisas, Neil Hannon explicou ao PÚBLICO a estratégia de choque para se ir para a cama com alguém.

PÚBLICO – “Casanova” representa uma mudança radical em relação ao anterior “Promenade”, até a sua maneira de cantar mudou. A que se deve esta inflexão?
NEIL HANNON – Quanto à voz, aprendi a cantar de uma forma decente (risos). Basicamente, altero tudo em cada novo álbum. Depois, deram-me desta vez uma grande quantidade de dinheiro para o fazer, o que me permitiu fazer canções superarranjadas (“Over arranged”m no sentido de excesso). O ambiente também é inteiramente diferente, mas o princípio por detrás das canções é o mesmo…
P. – E esse princípio é…
R. – Oh… Não sei! São canções que são eu. Encaradas de cada vez de um ângulo diferente.
P. – Pode dizer-se que trabalhou desta vez como um actor?
R. – Num certo sentido, sim. Mas por outro lado há neste álbum uma honestidade maior. Pretendi descrever o que me estava a acontecer de facto, mais do que em “Promenade”, onde sobretudo fantasiava. “Casanova” é mais corajoso.
P. – Porque escolheu a personagem de Casanova para base temática?
R. – Ironia total. Obviamente, não andei atrás de duas mil mulheres, mas dei o meu melhor.
P. – O amor é um jogo perigoso, que pode conduzir ao inferno, como diz em “Through a long and sleepless night”?
R. – No início, nunca parece perigoso, não é? Começar algo que não se termina pode ser um dos caminhos…
P. – A expressão “louco de amor” diz-lhe alguma coisa?
R. – O amor não teve que ver tanto como isso. Foi mais lascívia animal.
P. – Uma forma de paixão?
R. – Sim, a falta de uma coisa e o excesso de outra.
P. – Há neste álbum uma série de influências ou de permutas com universos musicais de outros autores. Scott Walker, por exemplo.
R. – Não se pode dizer que partilhe da sua visão, mas certamente que partilho do cepticismo da sua obra dos últimos anos da década de 60. A sua vertente mais actual, expressa em “Tilt”, é demasiado sombria para mim.
P. – Quer dizer que não é uma personalidade tão estranha quanto ele?
R. – Não me consigo imaginar a fazer um álbum como esse. Gosto em demasia da melodia. Tenho no subconsciente uma sensibilidade pop. Como se me tivesse alimentado de pop e vivido com ela toda a vida. Não se pode fugir a isso. Mesmo que quisesse ser vanguardista, provavelmente não o conseguiria. A única coisa que ambiciono é escrever canções engraçadas.
P. – E Peter Hammill. Há faixas onde canta e até grita como ele…
R. – Tem havido muitas pessoas a dizer-me o mesmo, mas a verdade é que não conheço a sua música. É muito embaraçoso.
P. – Que discos ouvia na sua adolescência?
R. – Comecei por ouvir alguns horrores dos anos 80, como Nik Kershaw. Evoluí para os U2, como toda a gente nessa altura, e diplomei-me com os REM, mais tarde com os My Bloody Valentine, fechando o ciclo com o retorno aos anos 60 e a Scott Walker.
P. – David Bowie?
R. – Nunca o ouvi com muita atenção, embora o admire.
P. – Citei-o porque a introdução de “Songs of love” lembra fortemente o Bowie de “The Man who Sold the World”.
R. – Acha? Basicamente, tenho ouvido sempre uma quantidade de música, por acidente, na televisão, por exemplo. Há muita música neste mundo e não se pode fugir a ela. Procuro não ouvir muita coisa em casa, voluntariamente, isso não ajuda a ser original, acidentalmente podemos começar a usá-la.
P. – Hoje que toda a gente fala do “easy listening”, assume ter sido influenciado por este género musical em “Casanova”?
R. – Sem dúvida que há elementos de “easy listening”, mas não estava consciente do movimento até ao momento em que terminei o álbum. Na verdade, aquilo que as pessoas classificam como “easy listening” é em geral música pop orquestral dos anos 60, música por que me tenho interessado nos últimos cinco ou seis anos. Muita dessa música é tudo menos fácil (“easy”), muito menos o meu álbum, que é mais do género “hard listening”…
P. – É impossível não pensar em Marc Almond, dos Soft Cell, quando o ouvimos a si na abertura do disco, em “Something for the weekend”, no mesmo ambiente de festa decadente…
R. – Sem dúvida, é muito Marc, embora sempre achasse que ele canta de uma forma demasiado rude, aguçada, para o meu gosto. À parte isso, admiro-o muito. Para dizer a verdade, não o ouvi muitas vezes, apenas me ouço a mim próprio (risos).
P. – “Charge” é um universo à parte, onde a sua voz se passeia por vários registos, desde o teatro de Kurt Weill à personificação de um “crooner”.
R. – Mudo constantemente. Sou como um monstro, um monstro cheio de lascívia. Esse tema, em particular, é bastante violento, uma espécie de má estratégia militar que pode ser interpretada de várias maneiras. É um tema difícil de analisar. Quando escrevi o que pode ser considerado o primeiro lado do álbum, a preocupação era desenvolver várias imagens baseadas no facto de se fazer qualquer coisa para ir para a cama com alguém. “Charge” é como que o zénite desse estado de espírito, uma tentativa desesperada. No resto do álbum, foi como se partisse tudo em bocadinhos para descobrir o que é que se esconde e existe realmente por detrás de tudo isto. É completamente só instinto sexual.
P. – Que processo seguiu para compor este autêntico caleidoscópio que é “Casanova”?
R. – Cinco por cento de inspiração mais 95 porcento de trabalho duro. Há na minha música muito mais de instintivo do que me é em geral atribuído. Uma espécie de fluência que ao longo do processo de gravação acrescenta pormenores que não existiam no momento da composição.
P. – Como é que transpõe esse processo para o palco?
R. – Com uma banda tradicional, com piano, órgão Hammond, bateria baixo, duas guitarras e eu a cantar, o mesmo formato que utilizarei na minha actuação em Portugal.
P. – “Casanova” é um trabalho de paixão ou um trabalho de ironia?
R. – De certo que não é um trabalho de amor! Mais de desespero. Tive bastantes problemas em descobrir o que fazer depois de “Promenade”. Este álbum nasceu de uma frustração.
P. – O trabalho de um matemático ou o trabalho de um padre?
R. – Certamente que quero passar uma mensagem para as pessoas, mas ao mesmo tempo acho que não tenho o direito de o fazer, sou apenas um simples irlandês (risos).
P. – Uma questão de moral, portanto?
R. – Tenho demasiadas morais no coração, acho eu.
P. – O trabalho de um amante de livros (o “booklover” de “Promenade”) ou o trabalho de um amante de espectáculo?
R. – Apenas o trabalho de um amante.
P. – Nesse tema de “Promenade”, faz uma lista de escritores. No novo disco, na introdução de “Theme from Casanova” descreve a ficha técnica. Qual a explicação para este gosto pela enumeração?
R. – Começou por ser apenas uma piada. A seguir a uma canção como “Through a long and sleepless night”, procurei no tema seguinte uma espécie de alívio dessa tensão acumulada, como uma reacção química. Não resultou tão bem como quis porque no final de “Theme from Casanova” voltam a acontecer coisas estranhas, como uma trovoada. É uma das minhas músicas preferidas.
P. – Ainda a propósito desse tema, fala de esquizofrenia…
R. – Porque vai do ridículo ao sublime, em quatro minutos. É uma súmula de tudo o que quis dizer no álbum, sem ter de cantar uma única palavra.
P. – Três cores para definir “Casanova”?
R. – Púrpura, escarlate e uma espécie de azul-turquesa pálido e doentio…
P. – Vamos acabar com o velho jogo das associações. Dou-lhe um nome e você faz um comentário rápido. Está de acordo?
R. – Não sou muito bom nesse jogo, mas vamos a isso.
P. – Ray Davies.
R. – Terry encontra-se com Julie.
P. – Bryan Ferry.
R. – O senhor sexo.
P. – Phil Spector
R. – “Wall of sound”
P. – Burt Bucharah
R. – Um encanto encantador.
P. – Julie Andrews
R. – Não consigo deixar de pensar na aparência dela agora, uma visão que não é nada agradável.
P. – Deus
R. – Inverosímil.
P. – Neil Hannon
R. – Ainda mais inverosímil.

Ryuichi Sakamoto - 1996

Pop Rock

12 de Junho de 1996

Ryuichi Sakamoto
1996
MILAN, DISTRI. BMG

1996 não está para brincadeiras. Falta pouco para o final do milénio e os compositores andam ansiosos para mostrar aquilo que valem. “Aquilo que valem” quer dizer o abandono da música popular e a criação de obras, perdão “opus” eruditos, que exigem piano de cauda, cordas e a encomenda de uma peça para o Kronos Quartet. O antigo teclista dos Yellow Magic Orchestra achou que esta era a altura ideal para se libertar do fardo de antigas companhias como Iggy Pop, David Sylvian ou Youssou N’Dour, já para não falar nos pecados “proto-“techno” dos Yellow Magic Orchestra. Ao contrário do seu antigo companheiro, Haruomi Hosomo, que evoluiu da electrónica “hard” dos YMO para uma leitura subtil da “pop” pancultural, em “Omni Sight Seeing”, e da “house” ambiental, em “Quiet Meditations from the Quiet Lodge”, Sakamoto enveredou pela via espartana. Em “1996”, o japonês toca piano, só toca piano, fazendo-se acompanhar pelo violoncelo da Jaques Morenlenbaum e o violino de Everton Nelson, na recriação de alguns temas antigos que abrangem vários trechos de bandas sonoras, como “The Last Emperor”, “Merry Christmas Mr. Lawrence” e “The Sheltering Sky”. Mas tanto estes como os originais soam anémicos e académicos, longe dos melhores tempos de mr. Sakamoto. O álbum, na sua edição europeia com 15 temas (a japonesa tem 16 e a norte-americana, 12) sairá por cá, a 24 deste mês. (4)

The Raincoats - Looking In The Shadows

Pop Rock

12 de Junho de 1996
poprock

The Raincoats
Looking in the Shadows
GEFFEN, DISTRI. BMG

Ana da Silva e as outras, estrangeiras, decidiram que as Raincoats tinham uma razão de ser nos anos 90. Um desejo legítimo. Tudo tem razão de ser nos anos 90. O espírito da banda mudou pouco desde que em 1984 abandonaram a cena musical, com “Moving”, após dois trabalhos bem recebidos pela crítica, “The Raincoats”, de 1979, e “Odyshape”, de 1981, uma época em que desafinar queria dizer originalidade e atitude “underground”. “Looking in the Shadows”, em comparação, sobretudo, com os dois primeiros discos, é um portento de sofisticação. Tem todos os cantos preenchidos com guitarras saturadas, desleixadas, metalizadas, envernizadas, e electrónica o mais analógica possível. A postura é que é a mesma. Ana e Gina Birch são “new wavers” e sobre isso não há nada a fazer. São-no de uma maneira estranha, em equilíbrio sobre ângulos perigosos. De um lado, o minimalismo velvetiano e a pose carnes secas de Patti Smith, do outro, a pop ávida de açúcar, orgulhosa de melodias. Agora, como antes, as Raincoats não seguem em comboio expresso nenhum. O seu fascínio é o do anacronismo. “My heart beats”, cantam em “Forgotten words”. Não é o mais importante? (6)

Tom Verlaine - The Miller's Tale

Pop Rock

12 de Junho de 1996
reedições poprock

Tom Verlaine
The Miller’s Tale
2XCD VIRGIN, DISTRI. EMI – VC

Tudo o que você sempre quis ouvir de Tom Verlaine mas não sabia como nem onde, ou seja, andava à toa. A presente antologia reúne num primeiro compacto gravações inéditas ao vivo realizadas pelo músico nova-iorquino a 3 de Junho de 1982 no The Venue, em Londres, enquanto o segundo passa em revista a carreira do ex-Television em sessões de estúdio compreendidas entre os tempos com a banda e o mais recente trabalho a solo. Como é habitual neste tipo de edições, o pacote inclui temas e versões inéditos, neste caso uma sessão de 1986 com Dave Bascombe, para um álbum inicialmente previsto para sair na Polygram mas até à data nunca editado, “singles” e “maxis” em vinilo e um CD promocional da edição francesa da EMI. Óptimo pretexto para saborear de novo as descargas de energia da “new wave” norte-americana e aqui, em particular, da guitarra com sonoridade de cutelo de um dos seus líderes. Tanto nos Television, grupo que chegou a rivalizar em importância, com os Talking Heads e os Feelies, como na sua obra solitária, onde um formalismo mais cerebral substituiu um fulgor mas também a menor elaboração do colectivo. Pessoalmente, preferimos o álbum de estúdio, onde o desenho tem outro rigor e a imagem da televisão se fixa com maior nitidez. (7)

25/11/2008

Material - Hallucination Engine + Vários - Lost In The Translation

Pop Rock

12 de Junho de 1996
reedições poprock

MaterialHallucination Engine (7)
Vários
Lost in the Translation (5)
AXIOM, DISTRI. POLYGRAM

Bill Laswell chegou tarde, primeiro à “world music” e mais recentemente à electrónica “cósmica”. A sua curiosidade, sempre insatisfeita, encontrou nestas duas áreas, de vastíssimas fronteiras, terreno fértil para o baixista experimentar a sua ideia de síntese universal. A consequência mais óbvia desta entrada em cena tardia é o sabor a “melting pot” saturado de citações e remissões, mas sem qualquer frescura ou leveza. “Hallucination Engine” prende-se ao lado mais jazzístico e às correntes “etno”, obviamente afogadas no baixo pesadão e comilão que faz o seu estilo.
As estrelas, convidadas em grande número – de Wayne Shorter a Jonas Helleborg, de Zakir Hussain a Trilok Gurtu, de Bootsy Collins a William Burroughs -, se facilitam a permuta de linguagens, não garantem por si só a estabilidade do projecto. Mas a sucessão de clima e a temperatura elevada sustentam esta incursão pelo panteísmo global que parece ser o objectivo último de um dos criadores da “etno-seca”.
Em “Lost in the Translation” (por sinal o mesmo título de um álbum de Roger Eno), a teoria é semelhante só que inserida num contexto “ambient” e no âmbito das “Sound sculptures” em que Laswell é exímio. Se as investigações de Laswell na Fax de Pete Namlook levam às últimas consequências o lógica do absurdo e do vazio, aqui ficam-se por um meio-termo onde o classicismo, muito Klaus Schulziano, cai de podre, a “ragga” indiana faz de antibiótico e as emanações “cósmicas” cheiram a bafio.
São oito longos temas com quinze minutos médios de duração, em diversas combinações de músicos (Laswell mais Tetsu Inoue, Laswell mais Helleborg, Laswell mais The Orb, Laswell mais Shankar, Laswell mais George Clinton, Laswell mais…) que uma cabeça atestada de ácido achará eventualmente curtos, mas que outra, “straight”, pura e simplesmente não aguentará. As informações da capa – uma espécie de manual de abertura das portas da percepção – são pródigas em termos como “misticismo”, “mensageiro simbólico do espírito” e “cura espiritual”. Os temas dão por nomes como “Peace” (que vale pelo belíssimo solo de sax de Pharoah Sanders), “Aum”, “Cosmic trigger” e “Holy mountain”. O último, “Ruins”, é uma citação, quase decalque, de “Pappy Nogood and the phantom band”, de Terry Riley.
Laswell e os amigos dizem em duas horas o que Laswell já dissera de forma sucinta na dupla face “dance”/”meditation” de “Day of radiance”. Ainda dizem mal do Progressivo…

Steeleye Span - Time

Pop Rock

29 de Maio de 1996
world

Steeleye Span
Time
PARK, DISTRI. MEGAMÚSICA

Vá lá, dêm um voto de confiança aos velhotes. Em “Time”, os Steeleye Span, pioneiros do “folk rock”, tentam a todo o custo recuperar o tempo perdido em recentes tropeções por uma “modernidade” que não casa bem com a sua figura de gerontes. A esta ginástica de reconversão da anterior reconversão, que permite ao grupo de Maddy Prior e Peter Knoght manter-se acima da linha de água, passados tantos anos de bons e alguns (poucos) maus serviços, deve acrescentar-se o regresso da filha pródiga Gay Woods, 26 anos depois de ter abandonado o grupo após a gravação do álbum de estreia “Hark! The Village Wait”. As duas põem a conversa em dia em duetos que fazem todo o encanto deste álbum, a excelência e a prática nunca interrompida da grande senhora Prior com a rudeza, mas também um singular tom naturalista e “naif”, de Woods, que finalmente pôs cobro a um quarto de século de vida doméstica, trocando-a pelas canseiras da vida “on the road”. Em 1996, os Steeleye Span já não revolucionam nada, como revolucionaram a “folk” inglesa ao lado dos Fairport Convention e dos Pentangle, à entrada dos anos 70, mas podem orgulhar-se de terem conseguido recuperar a frescura e a dignidade que tinham perdido pelo caminho. Temas como “The old maid in the garrett”, “Underneath her apron”, “The cutty wren” e “Corbies” estão ao nível dos clássicos do grupo, acreditem. Talvez o tempo esteja de novo favorável para eles. (7)

Curved Air - Live At The BBC

Pop Rock

22 de Maio de 1996
reedições poprock

Curved Air
Live at the BBC
BAND OF JOY, DISTRI. MVM

Nos anos dourados do progressivo, entre 1970 e 1974, os Curved Air, nome inspirado no álbum “A Rainbow in Curved Air”, de Terry Riley, chegaram a ocupar um lugar de destaque, com uma sólida reputação conseguida à custa da edição sucessiva de “Air Conditioning”, “Second Album” e, sobretudo, “Phantasmagoria”, um dos álbuns chaves de 1972. A originalidade do grupo resultava da química entre as proezas pirotécnicas do violinista Daryl Way (mais tarde fundados dos Wolf), o experimentalismo dos teclados de Francis Monkman (foi dos primeiros a utilizar um computador, num dos temas de “Phantasmagoria”, perdendo-se mais tarde nos Sky) e, sobretudo, da sedução e presença carismática da vocalista Sonja Kristina, hoje relançada numa carreira a solo de vocação “folk”. As gravações BBC agora editadas respeitam a sessões realizadas entre 1970 e 71, às quais foram acopladas três interpretações retiradas de um concerto realizado em 1976 no Paris Theatre, em Londres. Além da qualidade de som, bastante fraca, lamenta-se a não inclusão de qualquer dos temas fortes da banda, mesmo os mais comerciais, como “Back street luv” ou “Marie Antoinette”, havendo a registar, apenas, uma convincente sessão de virtuosismo de Daryl Way, no instrumental “Vivaldi” e uma curiosa e pouco vulgar prestação vocal de Sonja Kristina, em “Blind man”. Ausente a sofisticação formal que caracteriza as gravações de estúdio, fica o desejo de uma chegada em breve ao circuito das importações da reedição de “Phantasmagoria”, este sim, um disco indispensável. (5)

The Orb - John Peel Sessins

Pop Rock

15 de Maio de 1996
poprock

The Orb
John Peel Sessions
BBC STRANGE FRUIT, DISTRI. MVM

Só faltava mais esta! O éter está viciado e a electricidade já não é o que era. Numa das obrigatórias sessões para o papa radiofónico John Peel, os Orb orientaram as agulhas da música electrónica para o “protopunk”! Nem mais. Basta sintonizar no tema “No fun”, um clássico dos Stooges, refundido (samplado) num contexto “ambient rage” pelo próprio Alex Patterson, para perceber que o tal organismo vivo que dá pelo nome de The Orb não pára de estender os seus tentáculos a tactear novas vítimas. As sessões em causa, descontando a surpresa – ou não – provocada por esta incursão nos finais dos anos 70, oferecem uma totalidade de pouco mais de meia hora, dividida em quatro faixas, preenchidas por abstracções aleatórias, “samples” para colar na caderneta e o habitual jogo de “adivinha onde é que fui sacar esta cena”. O “krautrock”, ora bem, está presente em força, ou não estivessem os Orb ao corrente das tendências em voga, embora não seja crível que os mais jovens reconheçam, no tema de abertura, “Oobe”, as mesmas guitarras acústicas sequenciadas que Klaus Schulze usou em “Black Dance”, ou uma frase melódica copiada à pressa de “Computer World”, dos Kraftwerk. Com os The Orb tem-se a certeza de que o movimento não pára, resta saber se vai dar a algum lado. (6)

Na catedral do tambor [O Ó Que Som Tem]

Pop Rock

1 de Maio de 1996

Na catedral do tambor

O “Ó” que som tem, quando bate em “Ó Tambor”? Tem o som que tinha há 13 anos no álbum homónimo de estreia, mas mais aberto. O acento reforçou-se. Num maior poder de hipnose, na subtileza dos batimentos, no peso dos convidados. Um “O” de espanto.


Rui Júnior, rosto e alma do projecto, Fernando Molina e José Salgueiro, três dos percussionistas de O Ó Que Som Tem, sentem o ritmo no fundo, mas também à flor da pele. A pele de um tambor. Um instrumento “espiritual” capaz de pôr um homem em transe.

De “O Ó Que Som Tem” para “Ó Tambor” houve alguma mudança na orientação do grupo?
Rui Júnior – Houve, naturalmente. Treze anos de diferença, todos nós amadurecemos. Inclusive, havia temas que não conseguíamos tocar e que hoje tocamos com facilidade.
P. – Referia-me à estética…
R.J. – Digamos que “Ó Tambor” é uma continuação do primeiro disco, no sentido de juntar instrumentos de percussão portugueses com outras culturas. A novidade está na existência de sons sintetizados, ao contrário do primeiro, que era todo acústico. Actualmente, os sons sintetizados fazem parte do universo da música. Embora não goste da maior parte deles, reconheço que os há muito bonitos.
P. – O grupo só pode existir com este núcleo de músicos?
R.J. – Este género de reportório requer muitos meses, até anos, de ensaios. Nada melhor do que pegar nas pessoas que já sabem uma série de temas de cor, em vez de passar novamente três, quatro anos a aperfeiçoá-los com músicos novos. Apesar de neste disco contarmos com percussionistas novos, o João Lobo, o Mário Santos e o João Balão. O curioso é que alguns destes temas já estão a ser tocados por outros percussionistas e bateristas, como “Mody Dick”, que está a ser usado pelo grupo de José Salgueiro.
José Salgueiro - … Um grupo actualmente com mais cinco bateristas, que surgiu a partir de um “workshop” com o Max Roach. Quanto a “Moby Dick”, tem sido transmitido oralmente aos meus alunos mais novos, que por sua vez o tocam. [N.R. Na origem, “Moby Dick” é uma homenagem aos Led Zeppelin e ao tema com este nome.]
P. – Um dos aspectos mais interessantes de “Ó Tambor” é a estrutura da maior parte dos temas, que partindo de uma entrada simples se vão tornando progressivamente mais complexos, segundo uma estratégia de subtil adição.
J.S. – O Rui sempre encarou a percussão como sendo melodia também. Como numa melodia simples, com a percussão as coisas também vão acontecendo aos poucos. Hoje em dia, quando se ouve percussão, ouve-se uma quantidade de instrumentos a tocarem ao mesmo tempo. Não dá para perceber que ritmo é que faz cada um. É uma massa sonora, que até pode ter um balanço incrível. No nosso disco acontece o contrário, os sons vão-se somando e mudando a percepção das pessoas.
P. – Onde foram buscar o estranho poema que José Mário branco declama no título-tema?
R.J. – É um trecho dos textos védicos, uma espécie de corão dos indianos. Há aí pequenos textos que falam de percussão, nomeadamente quando o xamã aparece com o seu tambor, que toca para comunicar com os espíritos e ter as visões para orientar as pessoas. O texto que escolhi é uma invocação à força dos tambores. Há uma lenda africana que diz que o mundo nasceu de um tambor.
P. – “68” é um título um pouco enganador, remetendo de imediato para o mítico Maio desse ano…
R.J. – É o tema com as Fincapé. Uma coisa extraordinária que acontece cá em Portugal, relativa a certas visões da música popular. Sempre disse que muitas pessoas olham para longe sem verem o que está perto. Esse grupo, genuinamente africano, representa a África aqui em Lisboa. Mais concretamente na Buraca, onde os seus elementos residem. Elas é que escolheram o tema, dedicado a Amílcar Cabral.
P. – Em “Moby Dick”, são utilizadas técnicas vocais indianas. De onde lhe veio esse interesse pela Índia? Relaciona-se com alguma necessidade espiritual? As tablas são mais espirituais que um bombo?
R.J. – Mas também sinto as nossas percussões de forma espiritual, como se percebe logo no tema de abertura, “Musti”, no modo como emprego as caixas. Por outro lado, sei que em Taiwan [!] acham bastante piada a este disco. A relação entre determinados instrumentos e a espiritualidade sentimo-la tanto em relação a sons que nos são mais distantes e estranhos como em relação aos nossos.
J.S. – Embora a espiritualidade esteja, de facto, mais ligada à Ásia, à Índia, ao Japão. Eles usam a percussão e a espiritualidade como partes de um todo. Na Europa não temos tanto essa relação.
P. – Outra influência que permanece do primeiro álbum é o cano gregoriano, em “Recolhimento”.
R.J. – São coisas que nos acompanham desde a infância. Sempre gostei de boas vozes, bem cantadas. Os cantos gregorianos comovem-me.
P. – Agora estão na moda, desde os monges de Silos aos Enigma…
R.J. – Já no nosso primeiro disco misturávamos o canto gregoriano com adufes. Dez anos depois surgem os pseudo-gregorianos…
Fernando Molina – Os monges de Silos deram um balúrdio de dinheiro à editora. E são tipos contemplativos, nada virados para os bens materiais… Deram-lhes em troca uma cozinha nova!
P. – Que significam os temas “5ª feira” e “6ª feira”?
R.J. – “5ª feira” é um tema meu, cujo nome parte do compasso, um 5/8 (cinco por oito). “6ª feira” foi composto pelo Fernando Molina.
F.M. – … Numa sexta-feira, 13! Com um “Fostexzinho” [gravador], em casa, pus-me a fazer experiências. Calhou nessa noite. Cheguei fora de horas a casa, vindo de tocar num bar. Estava particularmente inspirado e fiquei até às seis e meia da manhã à volta daquilo.
P. – O disco termina num registo quase paradoxal, não tanto pela primeira parte, com o “sample” das crianças a entoarem a lengalenga, mas pela orquestração final, samplada, julgo que em tom de ironia, pomposa e quase despropositada…
F.M. – Um “the end” à maneira de um filme americano!...
R.J. – A ideia é essa. Vejo este disco como uma viagem. Que, por exemplo passa por África, no tema das Fincapé. Aí fui espectador e aprendiz. Todo o disco segue a sequência de uma viagem. Viagem-filme. Só tenho pena de as imagens não saírem dos olhos directamente para a fita. É a banda sonora de um filme que tenho na cabeça. Acaba como acaba o filme. No fim, vê-se o genérico.
P. – A Amélia Muge está como peixe na água no meio das percussões.
R.J. – A Amélia consegue trazer melodia aonde eu não consigo. Ela sente as percussões muito bem, que ali é para cantar de determinada maneira e não de outra.
P. – Um dos temas mais belos do disco é, precisamente, “6ª feira”, no modo como o violoncelo se ergue a cantar de entre as percussões.
F.M. – É uma composição minha em que dou o mote numa “gato drum”. Compus aquilo num “Octapad” [percussão sintética], por motivos óbvios, à noite. Depois, em estúdio, o Rui não gostou muito do som. Agarrámos no “gato drum” e realmente soava bastante mais quentinho. É um tema obsessivo. Um percussionista adora como ninguém explorar isso. Um gajo chega a Marrocos e vê aqueles tipos durante meia hora a tocarem uma malha.
P. – “Ó Tambor” explora, precisamente, esse lado ritual das percussões…
R.J. – O transe. Um bendir ou um adufe, para mim, é andar à volta de uma mesa, de olhos fechados, a tocar [imita o som]. É um mundo.
F.M. – Num dos ensaios fizemos uma experiência muito gira. Uma coisa é ter os temas estruturados e debitá-los mecanicamente. Outra, é como Rui faz, um exercício em que fechamos todos os olhos, agarramos num padrão mais conseguido, e ficamos ali cinco, dez, quinze minutos, a girar em torno dele, obsessivamente.
Aí é que um gajo começa a sentir a intenção que a técnica não consegue transmitir. Um estado em que se vêem dinâmicas lindíssimas. Já tem acontecido, às tantas, desatarmo-nos a rir com os efeitos que se conseguem. Emocionamo-nos mesmo. Cria-se uma empatia tal entre nós… quase religiosa. De repente, sentimos num determinado tempo que aquilo tem que parar. Fica um silêncio… Um gajo até sustém a respiração…
P. – Ninguém sente necessidade de desbundar, de explodir?
J.S. – Sem dúvida que às vezes apetece! Aí o Rui sempre foi um disciplinador. A desbunda, por muito que apeteça, não nos leva a lado nenhum. Ou leva-nos a alguns sítios, mas nunca com certezas. O melhor, nessas alturas, é andarmos para trás, quando as pessoas se deixam de escutar umas às outras. Olhamos todos para o Rui e lá está ele, com uma cara de mono [risos]. “O.k., vamos lá parar e começar outra vez!”
P. – Nesta nova etapa da sua existência, O Ó Que Som Tem, pode ser encarado como o pólo complementar dos Gaiteiros de Lisboa? Eles a falarem alto, vocês mais em surdina?
J.S. – Complementam-se, em termos de enriquecimento da nossa música tradicional, que tem que evoluir e ser trabalhada. Durante muitos anos muita água correu, mas o barco nunca chegou. Agora o barco chegou e estamos todos a embarcar num que nos pode levar a qualquer sítio.
P. – A música tradicional não passa de um ponto de partida, quase um pretexto, para o vosso projecto, não concordam?
R.J. – As referências existem, simplesmente, nada nos prende aí, nem a nenhum sítio. Nenhum de nós é pesquisador ou estudioso, ou etnólogo, à excepção talvez do Rui Vaz, que tem conhecimentos a esse nível. Já por ocasião do primeiro disco tentaram conotar-nos, com alguma boa vontade, com trabalhos de recolha. Sempre rejeitámos isso.
J.S. – Há uma procura de uma estilização em relação às bases rítmicas portuguesas. Queremos fazer evoluir isso. Sentimos o “tum tum tum- tacatacataca- tum- tum tum tum”. É a chula, que nós temos cá dentro. Só que podemos evoluir, assim como os espanhóis fizeram com o flamenco. É essa a nossa procura, sem nunca perder de vista a estrela.
F.M. – Já no primeiro álbum o Rui provou que se estava a marimbar para as ideias pré-concebidas, que o disco fosse isto ou aquilo, em termos de aproveitamento promocional.
R.J. – Está lá um tema chamado “Marimbando”… [risos]

Nota: Quem quiser saber outros pormenores de O Ó Que Som Tem pode procurar no endereço que o grupo abriu na Internet: http://www.ip.pt/ruijunior.

Raízes - Diabo Do Belho!...

Pop Rock

24 de Abril de 1996
Os melhores de sempre – música portuguesa

Raízes Diabo do Belho!...

Como foi

Firmino Neiva entrou para os Raízes pouco tempo antes da gravação de “Diabo do Belho!...”, o melhor disco do grupo e um clássico da música portuguesa de raiz tradicional. Para traz tinham ficado dez anos vividos na Dinamarca, onde começou a interessar-se pela música tradicional e tocou “com alguns irlandeses”. Por cá os Raízes tinham já gravado um primeiro álbum, concluído um período fértil em espectáculos e efectuado um trabalho de recolhas, “essencialmente no Baixo Minho, nas zonas de Ponta da Barca, Portela, Barroselas e Vila Verde”, que seria aproveitado para “Diabo do Belho!...”. Neste disco, porém, o grupo teve alguns pruridos em usar o termo “recolha”, já que nessa actividade depararam com situações problemáticas. “Chegámos a fazer recolhas de um mesmo tema, com um intervalo de quinze dias, num mesmo local, com as mesmas pessoas, e as coisas serem totalmente diferentes”. A escolha entre diferentes interpretações, quando não tentavam “conciliar as duas”, acabava por ser ditada pelo “gosto particular” dos elementos do grupo e pelo que achavam que “devia ser divulgado”. “Quando se fazem recolhas ou se apanham coisas em estado muito bruto ou então já muito alteradas e deterioradas. Mas também é isso que mantém a música tradicional viva, ir-se transformando todos os dias”.
Firmino Neiva cita a este propósito “muitos cantares minhotos que vêm da prática das pessoas cantarem na igreja, os romeirinhos ou as sachadas. A igreja influenciou a maneira de cantá-los”. “De repente”, conta, “nas recolhas que ouvíamos havia harmonizações que tinham mais a ver com música de igreja do que propriamente com música popular. Aí tentávamos recuperar a maneira tradicional, comos e canta no campo, numa sachada ou numa desfolhada”. Há ainda o caso, recorda, de “umas pessoas velhotas que cantavam uma coisa muito gira mas que não batia muito certo com aquela zona”. Mais tarde descobriu-se que era a “música de uma opereta que tinha passado por Lisboa em mil novecentos e vinte e tal”.
“Diabo do Belho” foi gravado em Fevereiro de 1985. “Em termos de facilidades técnicas não há comparação possível entre este e o primeiro disco. O primeiro foi gravado em sete horas, as pessoas numa sala, toca a tocar, quase uma gravação ao vivo, enquanto neste tivemos já três ou quatro dias de estúdio. Com outro cuidado com o som e a execução técnica”. No bolso ia já uma maqueta previamente preparada e gravada num pequeno estúdio pertencente à banda. “Já levávamos o disco feito para estúdio. Foi só chegar lá e tocá-lo, não houve praticamente produção”. Durante o tempo de gravações tudo correu sobre rodas, excepto para o próprio Firmino Neiva, quem sucedeu, segundo diz, “um desastre”. “O disco foi gravado naquele que é hoje o estúdio Namouche. Estava a meter umas braguesas. Estava de botas e a bater o pé ao ritmo da música. O Moreno Pinto, técnico de som, disse-me ‘Ou tiras as botas ou deixas de bater com o pé!’. Tirei as botas e fiquei em meias. Acabei o ‘take’, vou por ali acima a correr, até à ‘régie’. Aquilo tem três ou quatro degraus encerados. Escorreguei, fiz uma luxação no ombro. As gravações acabaram para mim, nesse momento. Felizmente já só faltava um dia e meio. Até aí tinha sido esplêndido”.
Para além dessa “tragédia” pessoal, não faltaram momentos de boa disposição. Como aquele proporcionado por Rão Kyao que, na altura, se encontrava a gravar, com António Chainho, no mesmo estúdio. “Andavam a tentar descobrir um nome para o disco. Acontece que o estúdio fica mesmo em frente ao Jardim Zoológico, ao lado dos pássaros. Houve até títulos provisórios, como ‘Papagaios’. Até que um dia, já desesperados, olharam para a rua. Estava lá o nome do disco. Mesmo em frente, leram uma placa a dizer ‘Estrada da Luz’”.
“Diabo do Belho”, por seu lado, deve o título a uma canção do mesmo nome para a qual o grupo fez um arranjo de cordas, retirada de um cancioneiro. “Normalmente são as pessoas idosas, com quem trabalhámos nas recolhas, que ainda se lembram das coisas. Por isso, nada melhor do que falar delas num dos temas”. Existe ainda outro elo de ligação, bem mais picaresco. “Posteriormente *a gravação, um amigo nosso, o Nuno Pignatelli, autor do texto que aparece na capa, escreveu uma pequena peça de teatro, onde nós participávamos musicalmente, encenada pela Companhia de Teatro Cena, à volta do tema dos velhos. Havia um narrador que ia falando sobre os velhos enquanto no palco iam passando várias cenas. O espectáculo dos Raízes começava com uma deixa, quando um velho apalpava o cu a uma mulher e esta gritava ‘Ai o diabo do velho!’”
Em termos comerciais, “Diabo do Belho!...” obteve uma resposta significativa. Pelo que sabemos, por linhas travessas, o disco vendeu bem. Passados três ou quatro meses, à volta de cinco mil exemplares”. A partir daí “perderam o controlo da situação”, uma vez que a editora faliu. Em relação á posterior reedição em compacto, pela Movieplay, Firmino Neiva apenas lamenta que esta tenha destruído o “design” original da capa. “A capa também faz parte da obra. Quando alteram a capa estão a alterar a obra”.
Apesar de tantos contratempos, os Raízes continuam na estrada, se bem que a sua carreira tenha entrado nos últimos anos na penumbra. Actuam em romarias, nas universidades, em congressos de professores. Ou então vão para a Galiza ou a vários festivais na Europa. Firmino Neiva espera que a situação dê uma volta de 180 graus. O grupo evoluiu, refinou-se, enquanto espera nova oportunidade. “Sem vaidade, acho que o caminho dos Raízes seria, à nossa maneira, idêntico ao que acabaram por fazer os Gaiteiros de Lisboa”.

Como é

Não fez a revolução. Mas trouxe algo de novo para a música de raiz. “Diabo do Belho” exala uma frescura que não se sente com a mesma intensidade, por exemplo, nos Almanaque ou no primeiro Vai de Roda, sem que tal significasse uma menos ligação com as… raízes. Depois, o grupo conseguiu um feito notável, que foi o de recriar a tradição do Minho sem resvalar para o estereótipo da chula. Exemplar é, neste particular, o trabalho levado a efeito sobre os ritmos, que empresta a “Diabo do Belho” uma variedade e riqueza que apenas encontramos, na primeira geração de grupos de música de raiz tradicional, na Ronda dos Quatro Caminhos. Repare-se em temas como “Ribeira (ribeira qu’és tamanha)”, “A caminho da romaria” ou “Ó Ana ó que linda Ana”, onde a batida, ritual, dispensa os habituais pontapés dos bombos nos rins da subtileza (os do “Malhão do Souto” final suportam-se bem, já que as vocalizações desviam convenientemente a atenção…). A consequência – e bênção para os ouvidos – repousa no acento posto nas polifonias vocais – tratadas em estúdio com toda a sofisticação possível – e na gaita-de-foles que, sempre que chamada a pronunciar-se, o faz com uma desenvoltura e clareza tímbrica de fazer inveja a muita gente. Duas canções entram na selecção das mais belas de sempre gravadas e tratadas por um grupo urbano: ““Diabo do Belho”, exemplo de que o mal não está nas violas e nas braguesas, mas na falta de criatividade com que na generalidade são utilizadas, e a espantosa versão de “Rosa tirana”, com lugar de destaque no “top ten” das “interpretações em estado de graça”. Três instrumentais, a fuga aos lugares-comuns e o único senão de ter apenas 29 minutos de duração (mas talvez resida nesta contenção o segredo das virtudes até aqui apontadas) contribuem para fazer de “Diabo do Belho” um oásis bastante mal tratado na posterior reconversão para compacto.

Jon Anderson - Angels Embrace

Pop Rock

17 de Abril de 1996
poprock

Jon Anderson
Angels Embrace
HIGHER OCTAVE MUSIC, DISTRI. STRAUSS

Era fatal como o destino, o antigo vocalista dos Yes caiu como mosca na sopa numa editora de “new age”. Na verdade, Jon Anderson nunca foi verdadeiramente um “rocker” e, com Vangelis a ajudar na transição, pode agora dar livre curso à sua costela de misticismo ecológico. Uma capa com céu e nuvens em dourado e inscrições do tipo “viagem espiritual através do poder curativo da música” embrulham uma música onde o cantor tenta fazer passar intacta por uma ponte de 22 anos a magia do seu álbum de estreia, “Olias of Sunhillow”. “Angels Embrace” é “Olias” numa perspectiva “new age”, sete temas interligados por passarinhos e sinos nos intervalos, onde a voz se reduz a coros angelicais (em dois deles com a ajuda do filho e da mulher), num álbum predominantemente instrumental, em que as harpas e os sintetizadores se anelam num nevoeiro de onde nunca chega a nascer o desejado. Falta a Jon Anderson, numa área já ocupada por nomes da ala mais melosa da Hearts of Space, como Constance Demby e Raphael, o abstraccionismo e poder de análise de um Brian Eno, cujas concepções de música funcional postas em prática em “Music for Airports” impregnam a evolução ambiental dos 14 minutos de “New fire land”. Pode ser interessante, quiçá uma experiência transcendental, observar com olhar vago e coração suspirante a passagem das nuvens, na expectativa de um instante de iluminação. Eno garante que sim. Será até possível “aceder àquele lugar de visão e claridade onde o ritmo da vida se move em harmonia com uma consciência mais elevada”, de que nos fala a editora. Mas será mesmo necessário idealizar a “nova idade” como o Parque Eduardo VII numa tarde de domingo? (5)

24/11/2008

Eliza Carthy & Nancy Kerr - Shape Of Scrape

Pop Rock

17 de Abril de 1996
world

Eliza Carthy & Nancy Kerr
Shape of Scrape
MRS. CASEY, DISTRI. MC - MUNDO DA CANÇÃO

Depois da companhia dos pais, Martin Carthy e Norma Waterson, Eliza, uma das actuais coqueluches do “fiddle” em Inglaterra, juntou forças com a não menos promissora Nancy Kerr. O resultado deste segundo esforço conjunto saldou-se por um lugar de destaque na lista dos melhores do ano passado para a “Folk Roots”. Para os aficionados do violino, num estilo, o inglês, menos fluido e mais sincopado que o irlandês “estandardizado”, é um “must”, com o bónus de excepcionais prestações vocais, a solo, como no “a capella” de Eliza, em “Lay down in broom”, “Growing (the trees they do grow high)” (transmitido pelo grande Walter Pardon) e “Bonny light horseman”, ou em harmonizações em duo, como “I know my love”, “The keek (or ride) in the creel” e “The wanton wife of Castlegate”, que estão ao nível de referências como The Watersons, Peter Bellamy, Shirley & Dolly Collis ou John Kikpatrick com Sue Harris. Nancy, uma voz mais juvenil, curiosamente possuidora de um tipo de textura velada que recorda Carole Pegg (Mr. Fox), tem o seu momento em “The poor & young single sailor”. Interessante é verificar como um número cada vez maior de aspirantes prefere a opção purista às facilidades e maior apelo mediático das fusões. Neste caso, nem admira. Quem sai aos seus… (8)

Crónica de um vício como outro qualquer

Pop Rock

10 de Abril de 1996

Agora pode satisfazer-se na Internet

CRÓNICA DE UM VÍCIO COMO OUTRO QUALQUER


O vício é comprar, acumular discos. Vinilo ou compacto, consoante o gosto. O produto mais difícil de arranjar sempre foram as raridades estrangeiras.
Nos anos 60, pura e simplesmente era preciso ir a Inglaterra. Na década seguinte, já valia a pena entrar nas lojas nacionais, onde se encontravam muitos dos discos cujas críticas líamos sofregamente na “Rock & Folk”, “Best”, “New Musical Express” e “Melody Maker”. Não havia edições nacionais e o que chegava acompanhava de perto o panorama editorial do resto da Europa. Podia passar-nos pelas mãos e pelos ouvidos praticamente todo o catálogo Vertigo, da Espiral, discos a 180 escudos que hoje valem fortunas, nas respectivas edições originais: Bem, Dr. Z, Catapilla, may Blitz, Warhorse, Beggars Opera… Na Lanalgo, até se conseguia a edição original do mítico “It’ll all Work out in Boomland”, dos T. 2… Mas havia gente sempre insatisfeita, ávida de descobrir nomes ainda mais estranhos, impelida pela sedução das capas de abrir que alimentavam as páginas de publicidade dos jornais e revistas atrás mencionados. Esses arriscavam mandar vir directamente de fora, recorrendo aos serviços de firmas como a Tandy inglesa e a COB, do País de Gales. Era um sofrimento esperar pelo pacote que o carteiro tardava em deixar à nossa porta. E o êxtase quando, por fim, geralmente já desesperados, o pacote mágico chegava às nossas mãos. Quantas descobertas e quantas desilusões. Mas, sobretudo, quanto amor pela música.
Os anos 80 foram de recessão. Foi a década das edições nacionais, das más gravações e das capas para esquecer. Importações directas desapareceram. O que sobrou sumiu-se num ápice, catado pela ansiedade do coleccionador. Como compensação, surgiram as lojas de discos especializados – Bimotor, Contraverso, as pioneiras. Regressou o prazer da descoberta: Hector Zazou, Benjamin Lew, Wim Mertens, o catálogo Made to Measure, ainda nos “Lábios de Vinho”, ou industriais, SPK, Test Dept., e as obscuridades, Nurse With Wound, Negativland, os tesouros da Recommended, Art Bears, Jocelyn Robert, Steve Moore, Wondeur Brass… Sobreviveu-se.
Sem nos darmos conta – num dos intervalos em que se pára de arrumar discos na estante ou na delirante tarefa de reconversão do vinilo para compacto -, encontrámo-nos às portas do final do século com as músicas ao virar da esquina. Tamanha disponibilidade provocou, num curto período de tempo, nos mais viciados na música, a intoxicação. David Thomas, dos Pere Ubu, dizia – e com razão – que, nos anos 90, existe música a mais.
Para cúmulo, surgiu a Internet. Para os que não desistem de querer controlar, conhecer tudo, ouvir tudo, é o fim, a “overdose”. A angústia absoluta. As listas infinitas de todos os títulos que queremos possuir piscam-nos o olho no monitor demoníaco.
Sem querer alimentar o vício, aqui se fornecem os endereços da perdição. Há um sítio denominado CD World que dispara uma lista de 100 mil títulos disponíveis, divididos por 66 estilos musicais, a preços que rondam, em média, os 11 dólares (1650 escudos, mais portes). Tecle-se http://www.CDworld.com/ No velhinho “Yahoo” (http://www. yahoo.com/entertainment/music/genres), só no universo “Progressivo” (onde se inclui praticamente tudo o que escapa ao “mainstream” e com um cheirinho a diferença…), aparece uma lista imensa de casas exportadoras, na maioria norte-americanas, ou simplesmente de particulares com relações de discos afixadas com os respectivos preços, necessariamente mais elevados, uma vez que, na maior parte dos casos, se trata de exemplares para coleccionadores. Aqui vão os endereços de duas, para a loucura: Metro Music (http://www.idsonline.com/business/metro/) e Aeon Music (http://www. mediaonline.com/biozads/aeon/html). A lista geral encontra-se em http://www. cogsci.ed.ac.uk/~philkime/RMP/fag2.html. Em Portugal, até agora, apenas a Symbiose tem disponível o seu catálogo na WWW, como oportunamente noticiou na edição deste suplemento de 21 de Fevereiro.
No caso do CD World, o pagamento faz-se através dos cartões Visa e Mastercard (por fax, não vá algum espião “on line” fazer das suas) ou, com total segurança, através de um novo processo informatizado, explicado em pormenor na secção FAQ (Frequently Asked Questions).
Sentem o suor a escorrer? Não digam que não avisámos…

Clannad - Lore

Pop Rock

10 de Abril de 1996
Poprock

Clannad
Lore
2XCD, RCA, DISTRI. BMG

Não se compara com o que de bom fizeram os Clannad, quando não tinham outras ambições senão serem um grupo bem-comportado da tradição gaélica, com a voz de Máire Brennan à altura do que se lhe pedia quando se pedia encantamentos. Guardamos “Dúlaman” na recordação. E, a partir daí, a mágoa de assistirmos ao processo de degradação de um bom grupo de música folk, tornado um mau grupo de fusão que passou à destruição do imaginário celta. Como Enya, os Clannad preferiram a magia que faz abrirem-se as portas do mercado à magia das florestas druídicas. Eles lá sabem.
“Lore” procura alento num início com pretensões de majestade mas cedo se acomoda ao que tem sido norma nos últimos álbuns: uma mistura enjoativa de mel estragado com fotografias em tons sépia, segundo uma fórmula que já atinge as raias do insuportável. Certo, é indolor, não provoca habituação e dizem que faz bem ao coração. Mas não é para isso que servem as aspirinas? (3)

Grupo Etnográfico de Cantares e Trajes do Manhouce - Cantares da Beira

Pop Rock

10 de Abril de 1996
Os melhores de sempre – música portuguesa

Grupo Etnográfico de Cantares e Trajes do Manhouce
Cantares da Beira


Como foi

O Grupo Etnográfico de Cantares e Trajes do Manhouce formou-se pouco tempo antes da gravação do primeiro disco, “Cantares da Beira”. Na origem da sua formação, está, diz Isabel Silvestre, solista principal, “o gosto de cantar da gente do Manhouce”. “Uma função vital. Trabalhava-se e cantava-se na ceifa, nas malhas, em todos os trabalhos agrícolas o cantar era parte integrante.” Um canto que vai ainda buscar alento e alimento “a outra fonte, religiosa”, a “dois conventos perto, de Arouca e de São Cristovão de Lafões”. “As pessoas assistiam aos actos litúrgicos e transportavam-nos para os seus trabalhos, sobretudo agora na época da Semana Santa. Davam-lhes a volta, aquela volta que o povo costuma dar àquilo de que gosta.”
De 1982 para cá, o grupo sofreu algumas alterações. “Temos ainda muita gente do primeiro grupo, as pessoas essenciais continuam, e há gente nova.” Isabel Silvestre considera “interessante” a existência actual de “um espectáculo diferente do habitual”, com “três grupos, um de cantares, outro de danças, também de Manhouce, e um terceiro, de teatro, de São Pedro do Sul”. Idealizado por Jaime Galheiro, “um homem do teatro”.
Isabel Silvestre canta “desde miúda”. “Uma das coisas que Manhouce consegue é ter música desde o berço. Desde o berço até à cova. Do ‘Laru’, uma canção de ninar, para acalentar e adormecer os meninos, até ao ‘Senhor fora’, quando o padre vai visitar o doente que está muito mal.”
O reportório do grupo é constituído por canções “quase, quase só de Manhouce”. “Manhouce tem várias influências. Dos trabalhos que se iam fazer fora, ao Douro ou ao Alentejo, mas também a influência do mar. Passava por aqui a estrada romana que ligava Porto a Viseu. As pessoas pernoitavam e durante essa noite havia uma troca de saberes. Temos uma série de canções do mar como ‘Andorinha ligeira’, ‘Vai marinheiro, vai, vai’ ou ‘Olha a barca, olha a barca’.”
Todo este reportório não está sujeito a modificações. “As canções permanecem exactamente como nos foram transmitidas, simplesmente, temos a preocupação de arranjar um tom em que as três vozes se consigam harmonizar.”
“Cantares da Beira” surgiu da vontade forte, partilhada por todos os elementos de grupo, de conservar a sua música. “As pessoas da minha geração têm e tiveram a preocupação de gravar. Agora liga-se a televisão e há música. As pessoas desinteressaram-se das outras coisas. E há gravadores, gira-discos, carrega-se num botão e a música está feita. Nós tínhamos pena. Preocupava-nos deixar perder as cantigas.” A oportunidade para gravar surgiu durante uma actuação do grupo em Lisboa, na FIL. “Quando saímos do palco veio uma senhora ter connosco perguntar-me se não queríamos gravar. Tomáramos nós” A senhora era a Margarida, actualmente casada com David Ferreira. Assim aconteceu, fomos por aí abaixo e gravou-se o disco.”
Para Isabel Silvestre, a influência do produtor Mário Martins foi determinante para não se sentir a transição do espaço rural para o interior do estúdio. “Esteve em Manhouce, para escolhermos o reportório.” Relembra uma ocasião especial, “marcante não só para ele”, como para o próprio grupo. “Estávamos na escola primária, o local onde ensaiámos, um dos elementos fazia anos, era Inverno, estava frio. Fomos para casa desse elemento, fizemos uma fogueira, ele foi buscar um presunto. Olhe, a noite deixou de ser noite!”
“Cantares da Beira” foi gravado numa única sessão sem sobressaltos. “Apenas se pediu ao baixo que cantasse mais perto do microfone e fizesse com a voz aquilo que normalmente seria um bombo a fazer.” Dito desta maneira, não se adivinham as contingências que rodearam a presença do grupo nos estúdios de Paço de Arcos. “Chegámos de manhã e o disco estava gravado à tarde. As pessoas trabalhavam, saímos daqui á noite, chegámos a Lisboa às tantas da madrugada e às nove da manhã estávamos a gravar.” Aconteceu assim em todos os discos. Num deles, tinham mesmo marcado uma entrevista com o Presidente da República, então o general Ramalho Eanes. “Às quatro da tarde. Tínhamos estado no Brasil e trazíamos de lá uma mensagem para entregar. Cantámos na Sala dos Retratos e ainda bebemos um Porto.”
Depois de “Cantares da Beira” seguiram-se outras gravações. Com outros meios e uma produção mais forte, que no álbum de cantares religiosos tornou mediático o nome do Grupo Etnográfico de Cantares e Trajes do Manhouce e famosa a sua voz principal, Isabel Silvestre. Nesta transição há quem considere que alguma da genuinidade (e ingenuidade…) original se perdeu, substituída pelo profissionalismo e pelo gosto de agradar. Isabel Silvestre nega que tal tenha acontecido. “A maneira de o grupo cantar as canções está absolutamente a mesma. Não sabemos cantar diferente. Fui uma das pessoas que estiveram sempre contra fazer-se arranjos. Disse mesmo: ‘Olha, se vocês fizerem isso, saio, imediatamente, não estou aqui a fazer nada.’ Temos realmente que pegar naquilo que nos foi legado e dá-lo a conhecer tal e qual. Não temos o direito de andar a desfazer aquilo que foi guardado durante tanto tempo.”
Isabel Silvestre, actual presidente da Junta de Freguesia de Manhouce, reparte o seu tempo entre o grupo e o Gabinete de Expressão Musical e Dramática desta localidade, onde faz recolhas, de Manhouce e da zona de Lafões. “Estou metida dentro de uma camisa de sete varas. Quase não tenho tempo de ter tempo para mim.”
Tem também publicado o livro “Cancioneiro Popular de Manhouce”, estando prevista a saída, em Setembro, de “Memória de Um Povo”, uma obra “mais completa”, onde faz um levantamento de “lenga-lengas, contos, ladainhas, provérbios e gastronomia” de Manhouce. “Tudo aquilo que faz parte desta terra e desta gente.”
Na forja está a edição, em Setembro, na EMI-VC, do seu primeiro álbum a solo, do qual, por agora, não quer adiantar pormenores, e de uma colectânea, “uma coisa ainda no ar”, a sair, talvez, no próximo Verão, dos Cantares de Manhouce.

Como é

Entre a pureza, por vezes rude e impenetrável, do “étnico” e a sofisticação do “trad. arr.”, o Grupo de Cantares de Manhouce transpôs com a maior simplicidade a ponte que une o rigor do estudo ao prazer da escuta descrompometida. “Cantares da Beira”, colecção ainda não maculada pelas garras e mandíbulas do mercado, é uma claridade que dia após dia corre o risco de se apagar. Se o método e escolha de reportório estavam aqui ainda longe de quaisquer preocupações de agradar aos ouvidos acomodados da cidade, como viria a acontecer no posterior “Cânticos Populares Religiosos” – um álbum destinado a enfileirar nas prateleiras de “world music”, ao lado das vozes búlgaras que então se faziam ouvir com força a ocidente -, o que se deve procurar em “Cantares da Beira” é, antes, a intimidade com as raízes, a não adulteração dos gestos e ciclos primordiais, a pureza infantil de dizer na voz activa o que a alma canta quando o corpo trabalha.
O Grupo de Cantares de Manhouce faz o que deveria ser feito em cada localidade deste país de esquecimento. Preservar e dignificar uma tradição. Mantê-la viva e actual e acarinhá-la. Transmiti-la de geração em geração como um elo que garante a identidade e a linguagem. Acontece assim, bem perto de nós, na Galiza. Acontece assim na Irlanda. Acontece assim em todos os lados onde a ideia de “civilização” ultrapassa a mera lógica mercantilista e contabilística. Manhouce tem a sorte de ter o seu grupo, como Carvalhais a sua tuna, ou o Alentejo os seus corais. Mas depois, quando os mais velhos desaparecerem, o que ficará? Quais e quantos os náufragos que sobreviverão ao naufrágio causado pela incultura, pela estupidez e pelo desinteresse oficiais de um Estado com o cadáver engravatado numa forca de Bruxelas? Isabel Silvestre e o Grupo de Cantares de Manhouce cumprem uma tarefa de que outros se aproveitarão para facturar, sempre em nome do povo, sempre em nome da Kultura. Mas o que importa é que o seu canto, o canto de “Don Solidon”, “Ó meu amor quando fores” ou “Lá vem o vento da noite” chegue ao destinatário certo. Ao que, em silêncio, no bulício do século, no gesto ritual que amanha a terra, no devaneio da noite que o fogo aquece contra a pedra, demanda saciar-se na água da fonte.

Bel Canto - Magic Box

Pop Rock

20 de Março de 1996
poprock

Bel Canto
Magic Box
ATLANTIC, DISTRI. WARNER MUSIC

No início e no fim do disco ouve-se uma caixa de música a pingar vidrinhos de som sob a voz de criança mimada da vocalista. É o mais interessante que os noruegueses Bel Canto têm para oferecer neste álbum e nos dias que correm, apressados que estão em apanhar o comboio das “world musics” e dos “samples” contrabandistas de cultura. O segundo tema, “In zenith”, ainda consegue chamar por instantes a atenção para o fiozinho dental, perdão, vocal, que escorre da senhora, algures entre o mundo virtual e os contorcionismos de Kate Bush, mas o papão “etno-seca” deita tudo a perder para o contentor da vulgaridade. A seguir a caixa de música entra numa batida de dança mais convencional, produzida e maquilhada com os ingredientes “en vogue”. Um “must” para quem ainda acredita na magia do B. A. e um bocejo para quem achou alguma graça aos escorreitos “Whiteout Conditions” e “Birds of Passage”, que assinalaram a entrada em cena deste grupo cuja única pretensão parece ser a de ajudar a passar o tempo de uma maneira agradável. (4)

Quinta Do Bill - No Trilho Do Sol

Pop Rock

6 de Março de 1996
portugueses

Quinta do Bill
No Trilho do Sol
POLYDOR, DISTRI. POLYGRAM

Os putos gostam de se divertir na Quinta, nada a fazer quanto a isso. Por onde passa, ao vivo, a banda faz a festa. À música de bar a fingir de irlandesa, do álbum de estreia, segue-se agora a música dos índios, muito em voga nas colecções de new age étnica da temporada. Não há dúvida, porém, de que o grupo evoluiu bastante desse primeiro trabalho para este segundo pacote de canções, em que a tentativa de “fazer épico” deu lugar a uma maior contenção. “Parar o tempo”, “Se te amo” e “Prece (uma canção)” são mutações atraentes dos Sétima Legião, enquanto, instrumentalmente, o grupo inflectiu na direcção dos “folkrockers” irlandeses Horslips e de uma tónica “progressiva” (“Gerónimo”, agigantada por um sexteto de cordas), curiosamente aquela que parece ser o lugar natural da Quinta. A influência índia aparece no tema inicial, em “Índios na reserva” e “Mão na consciência” (com letra à UHF!…); a irlandesa em “O fogo posto”, “Reunir aos meus amigos” e “A única das amantes”; e o passado da Quinta em “Quanto + me olho ao espelho” (um “hit” à espera de o ser?). Palmas para o violinista Nuno Flores, está um senhor. Numa Quinta agora bem cuidada. Eu próprio – cujas reservas em relação à banda nunca escondi -, confesso, me deleitei nalgumas das suas paragens. Uma canção como “Eles ignoram” indica, só por si, que o grupo, afinal, tem potencialidades para ir longe. Rapazes, larguem lá os irlandeses e os índios e usem as pernas que têm para andar. (6)

Vai De Roda - Vai De Roda

Pop Rock

6 de Março de 1996
Os melhores de sempre – música portuguesa

Vai de Roda Vai de Roda

Como foi


Em 1983, Vai de Roda era uma Cooperativa étnico-cultural. “A única, nessa altura, em Portugal”, garante Tentúgal, desde sempre mentor deste projecto. “A ideia era também a edição de textos ou a construção de instrumentos, que construíamos rudimentarmente, sobretudo percussões, além de fazermos recolhas e investigação.” A cooperativa formou-se, “em termos legais, em 80, 81”. Na prática, porquanto o nome ainda se encontra registado, extinguiu-se em 1986. O grupo musical propriamente dito surgiu “em finais de 1978”. Demos o primeiro concerto, de uns 20 ou 25 minutos, para um público adulto e ainda com um reportório restrito, em Fevereiro de 1979.”
Em termos estéticos, o grupo encontrava-se, nesta altura, num estado embrionário. “Um Vai de Roda ainda um bocado rural”, diz Tentúgal, “embora apresentando já algumas propostas diferentes.” Uma proposta que valeu então ao grupo algumas críticas e incompreensões. Nela estavam contidos excertos de uma banda sonora composta anteriormente por Tentúgal “para um filme da antiga telescola. ‘Sortelha, Uma Aldeia da Beira’”. Doze minutos de música que “serviram de pista para o encadeamento do disco”, vindo mesmo, parte deles, a integrar os primeiro e último temas do álbum. “A ideia conceptual de agrupar uns temas” para um disco, “de lhes dar uma sequência lógica” deparou com algumas dificuldades, devidas ao formato em vinilo. “Por causa da obrigatoriedade da mudança de lado.”
A gravação estava prevista para acontecer cinco anos antes. Não aconteceu, “devido a problemas com as editoras”. “Só através de conhecimentos e de algumas cunhas, entre aspas, se conseguiu gravar o disco. E numas condições não digo deploráveis, mas extremamente limitativas.” Seja como for, a obra nasceu. E com mais três dias de estúdio a juntarem-se aos outros três previamente agendados. Mesmo assim, “era de manhã, à tarde e à noite”. “Saíamos à uma da manhã, íamos dormir e às nove já tínhamos que estar novamente no estúdio. Era extremamente cansativo.”
Treze pessoas, fazendo jus ao estatuto de cooperativa que os Vai de Roda então ostentavam, não constituíram na altura dificuldade. “Havia um mapa de gravações, os músicos não vinham todos de cada vez, podiam desopilar um pouco.” Era, contudo, gente a mais, o que levou o grupo “a perder”, mais tarde, “um bocado aquele espírito de cooperativa”. Problemas na gravação, não houve que afectassem de forma significativa a ordem de trabalhos. Tentúgal recorda, mesmo assim, um percalço acontecido com uma mistura, que obrigou o grupo, na última noite, a sair às cinco da manhã. “Problema de fitas ou de corrente eléctrica que foi abaixo” – a memória já apagou dos seus circuitos o incidente.
Ao contrário de “Terreiro das Bruxas” e do próximo “Polas Ondas”, onde algumas das decisões foram tomadas durante as gravações, “Vai de Roda” levava a lição bem estudada de casa, não dando lugar ao imprevisto. “Devido ao pouco tempo que tínhamos, já estava tudo definido.” Excepção feita ao último tema, “Oh que calma vai caindo”, “que permitiu um pouco mais de liberdade”, na sua condição de “quase uma resenha do pensar a música e os ambientes tradicionais, com rezas e a gaita-de-foles”. Houve ainda o caso de uma das cantoras, que um dia não quis cantar, por “não se sentir bem”. O próprio Tentúgal cantava aqui bastante menos do que no álbum posterior, talvez por nessa época estar ainda pouco confiante, neste particular, nas suas capacidades.
“Ainda hoje não confio”, diz, a rir, embora outros o convençam do contrário. “O Quico, por exemplo, antigo teclista dos Salada de Frutas e actual técnico de som do Intercéltico, está farto de me dizer para ter mais confiança, que a minha voz é porreira, que tenho é de começar a cantar mais.” O homem da sanfona, cuja voz confere a temas de “Terreiro das Bruxas” como “Rosinha vem-te comigo” ou “La Vitorina” um fascínio especial, sorri, preferindo conferir à sua música outros protagonismos.
A sanfona preparava, entretanto, terreno para o seu futuro reinado. “Um sonho já de alguns anos” que teve, finalmente, a sua oportunidade. Em “Vai de Roda” ainda prestava alguma vassalagem à “conceptualidade”, aspecto que então mais preocupava Tentúgal, “inclusive no palco”. Uma encenação musical que privilegiava a utilização de “instrumentos não tidos como musicais”, como o piassaba, as vassouras, o demónio da floresta ou as caixas de ovos. “Era o jogo das sonoridades que era importante. A criação de imagens e de ambientes, por vezes, nos concertos, criados no meio do público.”
“Vai de Roda”, sendo como é um marco da música popular portuguesa, terá vendido, nas suas duas e únicas edições em vinilo, cerca de 2500 exemplares. Tentúgal não acredita nesse número, divulgado pela editora. “Acho que vendeu mais.” Impossível, no entanto, verificar essa intuição. “Cheguei a apanhar, numa feira normalíssima, uma cassete pirata do álbum, que ainda guardo comigo.”
Tentúgal ainda hoje sente orgulho nesta estreia em disco dos Vai de Roda, desde sempre o seu projecto mais querido. “Muita gente se esquece deste disco. Só se começou a fazer justiça ao Vai de Roda com o ‘Terreiro das Bruxas’, o que é pena, até porque este primeiro álbum marcou um pouco a história de outros grupos. O próprio ‘Contraluz’, da Brigada, é já uma aproximação á nossa filosofia, de uma certa conceptualidade das coisas e dos temas encadeados uns nos outros. Como o facto de irem buscar os pregões e musicá-los. Uma filosofia que já existia nos Vai de Roda, de ir buscar outras sonoridades que não, apenas, a própria canção em si.”

Como é

Se outra razão não existisse para incluir este primeiro trabalho do grupo do Porto na lista dos melhores de sempre da música portuguesa de raiz tradicional, uma só bastaria para o individualizar e marcar uma posição de diferença perante todos os outros: a recuperação de um instrumento caído em desuso e na decadência, a sanfona. Em “Vai de Roda”, Tentúgal faz entrar pela primeira vez, em disco, a sanfona no instrumentário tradicional português. Uma utilização ainda tímida, apoiada sobretudo nos bordões, mas que trouxe para esta área musical uma sonoridade nova que viria a ser explorada em pleno no segundo álbum do grupo, “Terreiro das Bruxas”. Não se tratou, de forma alguma, de uma opção gratuita, de uma tentativa isolada para tornar mais exótica uma música que sempre procurou conforto na facilidade das braguesas e dos cavaquinhos, mas antes o resultado de um estudo aprofundado das suas origens e potencialidades de transmutação. Tentúgal sempre fugiu ao óbvio e esta fuga levou-o a procurar nas catacumbas da música antiga – idade Média e Renascimento – um veio esquecido ou menosprezado pela maioria dos discípulos e aprendizes da MPP, onde tanto a sensibilidade contemporânea como a sua irmã tradicional se pudessem reconhecer. É precisamente nos temas onde a sanfona faz a sua aparição, seja no de abertura “Minha roda st’á parada”, cujos adereços sonoros antecipavam já a estética de encenação sonora presente em “Terreiro das Bruxas”, seja na versão de “Mineta” (mais interiorizada que o arquétipo inscrito no primeiro álbum da Ronda dos Quatro Caminhos) ou ainda no ambientalismo étnico do instrumental que fecha o disco, “Oh que calma vai caindo”, que a música se aprofunda e ganha maior poder de sugestão. Uma visão da tradição fixada ainda na fidelidade possível às formas originais e cativa do respeito pelo dogma das recolhas, mas onde era já nítida a subjectividade de leitura e a vontade de conceptualização. Afinal o germe de uma obra cujas ambições apontavam já para um equivalente sonoro da fotografia “etnopsicadélica” da capa, mas que apenas se concretizariam em pleno montadas na vassoura de uma bruxa.