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21|SETEMBRO|2001
reedições|música
arcebispos
de Cantuária
Canterbury
tornou-se numa lenda. Os novos músicos estão a redescobrir o imenso manancial
oferecido por esta música que nos anos 70 se ergueu como a catedral de um
arcebispo louco no meio de um prado da velha Inglaterra.
Canterbury
(Cantuária) é uma cidade inglesa situada no condado de Kent, a sudeste de
Londres. Deu ao mundo dos “Contos de Canterbury”, de Geoffrey Chaucer, e o
Arcebispo. Mas isso foi antes de um pequeno núcleo de músicos se juntar na
segunda metade dos anos 60 para formar o grupo que daria origem a um movimento
e uma estética aos quais se convencionou chamar “cena de Canterbury” ou “som de
Canterbury”.
O grupo chamava-se The Wilde
Flowers, nunca chegou a gravar qualquer álbum (embora, bem procurado, seja possível
encontrar uma edição póstuma preenchida por atuações ao vivo) mas continha os
alicerces do dois pilares que sustentariam a primeira geração do “Canterbury
sound”: Soft Machine e Caravan. Kevin Ayers e Robert Wyatt, respetivamente
vocalista e baterista dos Wilde Flowers, formaram em 1967 os Soft Machine, aos
quais se vieram a juntar o baixista Hugh Hopper, que também integrou os Wilde
Flowers, e Daevid Allen, o australiano excêntrico de cuja mente embotada pelos
ácidos, o chá de haxixe, o espiritismo e as mensagens enviadas via rádio por
entidades alienígenas, haveriam de brotar os Gong. Quanto aos Caravan, já
tinham a sua primeira formação inscrita no “line-up” dos Wilde Flowers: os
irmãos David e Richard Sinclair, Richard Coughlan e Pye Hastings. É deste grupo
que agora nos surge o pacote da sua discografia para a Deram, re-remasterizada
e enriquecida com temas e informações adicionais.
No país das maravilhas. Mas que som era este, afinal, que,
extinta nos anos 70 a base do Progressivo sobre o qual evoluiu até meados da
década, se estendeu pelos anos 80, dos EUA ao Japão, em grupos como Happy the
Man, However ou Kenso, e prosseguiu revitalizado pelos 90, onde foi adotado
pelo pós-rock de Chicago dos The Sea and Cake ou pelos neo-psicadélicos Gorky’s
Zygotic Minci?
A música, o estilo, as imagens com o selo
Canterbury ficaram demarcadas desde o início. Robert Wyatt e Richard Sinclair
impuseram um estilo e uma filosofia vocais e poéticos que renegavam o tom mais
politizado do “flower power”, como eclodira do outro lado do Atlântico, em São
Francisco, personalizado por bandas como os Jefferson Airplane e os Grateful
Dead, em assunção absoluta de uma “britishness” paralela à dos Beatles e dos
Kinks, na pop.
Em vez dos mergulhos violentos na mente e
das consequentes ressacas de Grace Slick e de Jerry Garcia, imersos no “acid
rock” e nas doutrinas pregadas pelo papa do LSD, Timothy Leary, Richard
Sinclair e Robert Wyatt pegaram ao colo no lado mais surrealista e poético do
psicadelismo. A Alice de Lewis Carroll bebeu o seu chá com o chapeleiro maluco
às cinco em ponto, num prado de Kent. David Sinclair, nos Caravan, e Mike
Ratledge, na “Máquina Mole”, estabeleceram o contraste. À suavidade, mas também
às derivações intrincadas, tecidas como uma tapeçaria “nonsense”, que eram as
canções moldadas pelas vozes pop de Richard Sinclair e Robert Wyatt (de que a
canção “The moon in June”, incluída no já divergente “Third”, dos Soft Machine,
será o exemplo mais sublime), contrapuseram o “fuzz” do órgão eletrónico e fraseados
jazzy que dispensavam a herança do rhythm ‘n’ blues, onde foi beber a geração
mais nova do rock progressivo.
Como as flores de um jardim. Mas no fundo desta poção mágica que
também albergava uma nostalgia difusa pela bossa-nova e aragens folk, agitava-se
algo indefinível, uma elegância e um mistério que, apesar das inevitáveis
dissidências que proliferariam através de uma miríade de correntes derivadas do
som original, conferiam unidade ao “som de Canterbury”.
“Volume Two”, dos Soft Machine (1969), e
“If I Could do it all over Again, I’d do it all over You” (1970), também oo
segundo álbum, dos Caravan, são os dois paradigmas da escola de Canterbury. A
chávena de chá de Alice quebrar-se-ia na produção posterior destes dois grupos,
em particular dos Soft Machine, que a partir de “Third” encetariam uma das
aventuras mais fascinantes de um grupo pop pelo jazz. Os Caravan mantiveram-se
mais fiéis à fábula, cedendo apenas ao fim do quinto álbum, “For Girls who Grow
Plump in the Night” (1973).
Mas a aventura de Canterbury dispensava
os seus progenitores. Criara-se uma espécie de família, cujos membros não
cessaram de difundir, sob fórmulas mais ou menos personalizadas, o legado dos
Caravan e dos Soft Machine. O “Canterbury sound” espalhara-se como as flores de
um jardim, polinizando o Progressivo com a sua aura colorida. Apareceram
radicais e moderados, dissidentes e tradicionalistas, cada qual acrescentando
uma letra, uma frase, à história. Os mais ilustres foram os Hatfield and the
North, com Dave Stewart, Pip Pyle e os irmãos Sinclair. Gravaram duas
obras-primas que prolongaram o lado mais lúdico e swingante dos Caravan. O lado
experimental e cerebral encontra-se nos Egg e, posteriormente, nos National
Health, projetos de Dave Stewart. Gilgamesh e Soft Heap orientaram as
“Canterbury tales” segundo as coordenadas do jazz, os primeiros sob a batuta de
Alan Gowen (já falecido, teclista “honorário” dos National Health), os
segundos, sob o comando de Hugh Hopper que, depois do terramoto a solo, “1984”,
se dedicou a tentar fazer descarrilar o comboio do jazz-rock. O que os Soft
Machine haviam perdido a partir de “Third”, conservou-o Robert Wyatt nos
Matching Mole e Kevin Ayers na sua tão disparatada como genial discografia a
solo. Os Gong, muitas vezes conotados, com ou sem razão, com o espírito de
Canterbury, são algo mais. O seu bule de chá era uma nave espacial. E se
estivermos atentos, perceberemos que a sua “radio gnome invisible” continua a
emitir.
Canterbury tornou-se numa lenda. Os novos
músicos, aqueles com dois dedos de testa, estão a redescobrir o imenso
manancial oferecido por esta música que se ergue como a catedral de um
arcebispo louco no meio de um prado da velha Inglaterra.
Richard Sinclair, em “R.S.V.P.”, de 1994,
diz em jeito de despedida dessa época, numa das canções, “What’s rattlin’?” (“O
que é que está a fazer barulho?”): “I’m bored with Caravan, Fleetwood Mac and
Uncle Sam/I´m sick of Tangerine Dream, Hatfield and Soft Machine/Radio Gnome
and Henry Cow/We’re not part of that now”, mas acaba a perguntar: “One question
we all dream/What’s doing Mike Ratledge? (…) What’s doing Robert Wyatt?/What’s
doing Kevin Ayers?/What’s doing Mike Doodlage?”.
a caravana passa
Os
cães ladram mas a caravana passa. Agora re-remasterizada (as anteriores versões
já tinham o som melhorado mas estas fazem finalmente justiça à magnificência do
vinil original). Os Caravan passam, de facto, por ser os mestres-escola de
Canterbury. Quem pela primeira vez se depara com a música de “If I Could do
it…” (1970) e “In the Land of Grey and Pink” (1971) torna-se participante de
uma história interminável de fascínio e descoberta. Do primeiro rezam as
crónicas que o título-tema foi tocado de forma maníaca por John Peel no seu
“Top Gear” até as espiras do disco se gastarem. Fabulosos o swing, a suavidade
“naif” de um “riff” vocal viciante. As canções, pop até à medula, infiltradas
por uma sensualidade quase hedonística, jogam xadrez com o paradoxo e o sonho,
fundem-se com deambulações instrumentais de jazz psicadélico, descobrem o prazer
da inflexão-surpresa, da respiração, da melodia voadora. “In the Land of Grey
and Pink”, considerado pela revista “Mojo” um dos melhores dez discos de música
Progressiva de sempre, separa o que em “If I Could…” estava ligado. Canções
gloriosas de um lado, a longa “suite” “Nine feet underground”, de outro.
Ouve-se de um trago, como um requintado licor auditivo. Canções como “Winter
wine” ou “Golf girl” misturam a imprevisibilidade do jazz com a arquitetura
melódica da pop e o sopro de uma narrativa aberta. A entrada em cena do piano
elétrico de Steve Miller, em substituição de David Sinclair, empurrou “Waterloo
Lily” (1972) para sonoridades menos sensíveis à pureza juvenil dos álbuns
anteriores, cultivando o rigor instrumental e uma menor elasticidade dos materiais
de composição, tendência que se manteria em “For Girls who Grow Plump in the
Night” (1973), desta feita em estreita dependência da viola de arco de Geoffrey
Richardson, enquanto o regressado David Sinclair garante o equilíbrio entre a
complexidade e o swing, segundo aquela fórmula secreta exclusiva das bandas de
Canterbury. Apenas curiosa, a experiência com orquestra “Caravan & The New
Symphonia” (1974), correspondente à fase de maior sucesso e entrada nos
“charts” britânicos do grupo. Mas “Cunning Stunts”, de 1975 (6/10), perdera em
definitivo o sortilégio, sobrando canções que ainda assim retinham migalhas do
antigo esplendor.
CARAVAN
Deram, distri. Universal
9|10
If I Could do it all over
again, I’d do it all over you
9|10
In the Land of Grey and
Pink
8|10
Waterloo Lily
8|10
For Girls who Grow Plump in
the Night
6|10
Caravan & the New
Symphonia
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