13/01/2015

Arcebispos de Cantuária [Caravan]

Y 21|SETEMBRO|2001
reedições|música

arcebispos de Cantuária



Canterbury tornou-se numa lenda. Os novos músicos estão a redescobrir o imenso manancial oferecido por esta música que nos anos 70 se ergueu como a catedral de um arcebispo louco no meio de um prado da velha Inglaterra.

Canterbury (Cantuária) é uma cidade inglesa situada no condado de Kent, a sudeste de Londres. Deu ao mundo dos “Contos de Canterbury”, de Geoffrey Chaucer, e o Arcebispo. Mas isso foi antes de um pequeno núcleo de músicos se juntar na segunda metade dos anos 60 para formar o grupo que daria origem a um movimento e uma estética aos quais se convencionou chamar “cena de Canterbury” ou “som de Canterbury”.
            O grupo chamava-se The Wilde Flowers, nunca chegou a gravar qualquer álbum (embora, bem procurado, seja possível encontrar uma edição póstuma preenchida por atuações ao vivo) mas continha os alicerces do dois pilares que sustentariam a primeira geração do “Canterbury sound”: Soft Machine e Caravan. Kevin Ayers e Robert Wyatt, respetivamente vocalista e baterista dos Wilde Flowers, formaram em 1967 os Soft Machine, aos quais se vieram a juntar o baixista Hugh Hopper, que também integrou os Wilde Flowers, e Daevid Allen, o australiano excêntrico de cuja mente embotada pelos ácidos, o chá de haxixe, o espiritismo e as mensagens enviadas via rádio por entidades alienígenas, haveriam de brotar os Gong. Quanto aos Caravan, já tinham a sua primeira formação inscrita no “line-up” dos Wilde Flowers: os irmãos David e Richard Sinclair, Richard Coughlan e Pye Hastings. É deste grupo que agora nos surge o pacote da sua discografia para a Deram, re-remasterizada e enriquecida com temas e informações adicionais.

No país das maravilhas. Mas que som era este, afinal, que, extinta nos anos 70 a base do Progressivo sobre o qual evoluiu até meados da década, se estendeu pelos anos 80, dos EUA ao Japão, em grupos como Happy the Man, However ou Kenso, e prosseguiu revitalizado pelos 90, onde foi adotado pelo pós-rock de Chicago dos The Sea and Cake ou pelos neo-psicadélicos Gorky’s Zygotic Minci?
A música, o estilo, as imagens com o selo Canterbury ficaram demarcadas desde o início. Robert Wyatt e Richard Sinclair impuseram um estilo e uma filosofia vocais e poéticos que renegavam o tom mais politizado do “flower power”, como eclodira do outro lado do Atlântico, em São Francisco, personalizado por bandas como os Jefferson Airplane e os Grateful Dead, em assunção absoluta de uma “britishness” paralela à dos Beatles e dos Kinks, na pop.
Em vez dos mergulhos violentos na mente e das consequentes ressacas de Grace Slick e de Jerry Garcia, imersos no “acid rock” e nas doutrinas pregadas pelo papa do LSD, Timothy Leary, Richard Sinclair e Robert Wyatt pegaram ao colo no lado mais surrealista e poético do psicadelismo. A Alice de Lewis Carroll bebeu o seu chá com o chapeleiro maluco às cinco em ponto, num prado de Kent. David Sinclair, nos Caravan, e Mike Ratledge, na “Máquina Mole”, estabeleceram o contraste. À suavidade, mas também às derivações intrincadas, tecidas como uma tapeçaria “nonsense”, que eram as canções moldadas pelas vozes pop de Richard Sinclair e Robert Wyatt (de que a canção “The moon in June”, incluída no já divergente “Third”, dos Soft Machine, será o exemplo mais sublime), contrapuseram o “fuzz” do órgão eletrónico e fraseados jazzy que dispensavam a herança do rhythm ‘n’ blues, onde foi beber a geração mais nova do rock progressivo.

Como as flores de um jardim. Mas no fundo desta poção mágica que também albergava uma nostalgia difusa pela bossa-nova e aragens folk, agitava-se algo indefinível, uma elegância e um mistério que, apesar das inevitáveis dissidências que proliferariam através de uma miríade de correntes derivadas do som original, conferiam unidade ao “som de Canterbury”.
“Volume Two”, dos Soft Machine (1969), e “If I Could do it all over Again, I’d do it all over You” (1970), também oo segundo álbum, dos Caravan, são os dois paradigmas da escola de Canterbury. A chávena de chá de Alice quebrar-se-ia na produção posterior destes dois grupos, em particular dos Soft Machine, que a partir de “Third” encetariam uma das aventuras mais fascinantes de um grupo pop pelo jazz. Os Caravan mantiveram-se mais fiéis à fábula, cedendo apenas ao fim do quinto álbum, “For Girls who Grow Plump in the Night” (1973).
Mas a aventura de Canterbury dispensava os seus progenitores. Criara-se uma espécie de família, cujos membros não cessaram de difundir, sob fórmulas mais ou menos personalizadas, o legado dos Caravan e dos Soft Machine. O “Canterbury sound” espalhara-se como as flores de um jardim, polinizando o Progressivo com a sua aura colorida. Apareceram radicais e moderados, dissidentes e tradicionalistas, cada qual acrescentando uma letra, uma frase, à história. Os mais ilustres foram os Hatfield and the North, com Dave Stewart, Pip Pyle e os irmãos Sinclair. Gravaram duas obras-primas que prolongaram o lado mais lúdico e swingante dos Caravan. O lado experimental e cerebral encontra-se nos Egg e, posteriormente, nos National Health, projetos de Dave Stewart. Gilgamesh e Soft Heap orientaram as “Canterbury tales” segundo as coordenadas do jazz, os primeiros sob a batuta de Alan Gowen (já falecido, teclista “honorário” dos National Health), os segundos, sob o comando de Hugh Hopper que, depois do terramoto a solo, “1984”, se dedicou a tentar fazer descarrilar o comboio do jazz-rock. O que os Soft Machine haviam perdido a partir de “Third”, conservou-o Robert Wyatt nos Matching Mole e Kevin Ayers na sua tão disparatada como genial discografia a solo. Os Gong, muitas vezes conotados, com ou sem razão, com o espírito de Canterbury, são algo mais. O seu bule de chá era uma nave espacial. E se estivermos atentos, perceberemos que a sua “radio gnome invisible” continua a emitir.
Canterbury tornou-se numa lenda. Os novos músicos, aqueles com dois dedos de testa, estão a redescobrir o imenso manancial oferecido por esta música que se ergue como a catedral de um arcebispo louco no meio de um prado da velha Inglaterra.
Richard Sinclair, em “R.S.V.P.”, de 1994, diz em jeito de despedida dessa época, numa das canções, “What’s rattlin’?” (“O que é que está a fazer barulho?”): “I’m bored with Caravan, Fleetwood Mac and Uncle Sam/I´m sick of Tangerine Dream, Hatfield and Soft Machine/Radio Gnome and Henry Cow/We’re not part of that now”, mas acaba a perguntar: “One question we all dream/What’s doing Mike Ratledge? (…) What’s doing Robert Wyatt?/What’s doing Kevin Ayers?/What’s doing Mike Doodlage?”.


a caravana passa
Os cães ladram mas a caravana passa. Agora re-remasterizada (as anteriores versões já tinham o som melhorado mas estas fazem finalmente justiça à magnificência do vinil original). Os Caravan passam, de facto, por ser os mestres-escola de Canterbury. Quem pela primeira vez se depara com a música de “If I Could do it…” (1970) e “In the Land of Grey and Pink” (1971) torna-se participante de uma história interminável de fascínio e descoberta. Do primeiro rezam as crónicas que o título-tema foi tocado de forma maníaca por John Peel no seu “Top Gear” até as espiras do disco se gastarem. Fabulosos o swing, a suavidade “naif” de um “riff” vocal viciante. As canções, pop até à medula, infiltradas por uma sensualidade quase hedonística, jogam xadrez com o paradoxo e o sonho, fundem-se com deambulações instrumentais de jazz psicadélico, descobrem o prazer da inflexão-surpresa, da respiração, da melodia voadora. “In the Land of Grey and Pink”, considerado pela revista “Mojo” um dos melhores dez discos de música Progressiva de sempre, separa o que em “If I Could…” estava ligado. Canções gloriosas de um lado, a longa “suite” “Nine feet underground”, de outro. Ouve-se de um trago, como um requintado licor auditivo. Canções como “Winter wine” ou “Golf girl” misturam a imprevisibilidade do jazz com a arquitetura melódica da pop e o sopro de uma narrativa aberta. A entrada em cena do piano elétrico de Steve Miller, em substituição de David Sinclair, empurrou “Waterloo Lily” (1972) para sonoridades menos sensíveis à pureza juvenil dos álbuns anteriores, cultivando o rigor instrumental e uma menor elasticidade dos materiais de composição, tendência que se manteria em “For Girls who Grow Plump in the Night” (1973), desta feita em estreita dependência da viola de arco de Geoffrey Richardson, enquanto o regressado David Sinclair garante o equilíbrio entre a complexidade e o swing, segundo aquela fórmula secreta exclusiva das bandas de Canterbury. Apenas curiosa, a experiência com orquestra “Caravan & The New Symphonia” (1974), correspondente à fase de maior sucesso e entrada nos “charts” britânicos do grupo. Mas “Cunning Stunts”, de 1975 (6/10), perdera em definitivo o sortilégio, sobrando canções que ainda assim retinham migalhas do antigo esplendor.

CARAVAN
Deram, distri. Universal

9|10
If I Could do it all over again, I’d do it all over you

9|10
In the Land of Grey and Pink

8|10
Waterloo Lily

8|10
For Girls who Grow Plump in the Night

6|10
Caravan & the New Symphonia


Sem comentários: