18/01/2015

Freak show olhos nos olhos [The Residents]



Y 28|SETEMBRO|2001
música|residents

freak show olhos nos olhos



Quem são os Residents? A pergunta tem sido obsessivamente feita nos últimos 30 anos. A mais famosa banda desconhecida do planeta atua pela primeira vez em Portugal. Sem bilhete de identidade, de fraque e olhos gigantescos no lugar da cabeça. Um concerto histórico.

Desde que se formaram, em 1970, no estado do Louisiana, terra de carnaval e de feitiços, os Residents têm conseguido manter o anonimato. Como e porquê? Como, ninguém sabe. Porquê, porque a questão é irrelevante, dizem eles, e apenas a obra importa. Não se sabe sequer se os músicos que amanhã e domingo irão apresentar no Centro de Arte Moderna, em Lisboa, o novo projeto multimédia “Icky Flix”, no âmbito dos Encontros Acarte, são os mesmos – pelo menos alguns deles – que nos anos 70 atiraram à cara da pop álbuns como “Meet the Residents”, “The Third Reich ‘n’ Roll” e “Eskimo”.
            O mistério é intenso, persistente e excitante. Tudo na biografia desta banda pode ser, de resto, mentira, avisa o “site” oficial, residents.com. O mito rodeia todas as atividades dos Residents. Daí o seu poder e eficácia. Os Residents mentem deliberadamente nas entrevistas. Os Residents são humanos? É muito provável que não…

            Olhos nos olhos. Quem são os Residents? Há quem jure a pés juntos ter estado a seu lado, ter-lhes tocado e conhecer as suas identidades. Nada de especial: são elementos do “staff” da editora Ralph, que formaram ainda nos anos 70 para gravar e distribuir uma música então dificilmente tolerável pelo “mainstream”. Um admirador conseguiu mesmo os seus autógrafos: “Mr. Resident”, “A resident” e “Residents”. Afinal, que importância tem saber os nomes? John Smith, Elvis Presley, Abigail Crunch, Manuel Ferreira (sim, pode acontecer que haja um português no grupo!)? Absurdo, inquietante, ridículo, irrisório. Mas… quem são os Residents? Que nome dar à ameaça?
            Ao vivo, os Residents apresentam-se de fraque e máscaras de globos oculares. Antes costumavam disfarçar-se de lagostas e passear pelos supermercados enfiados em uniformes de amianto. São um quarteto, como os Beatles. The “fabulous eyeballs”. Quando uma das máscaras oculares foi roubada, o quarto “resident” passou a ocultar-se atrás de um crânio e a chamar-se Mr. Skull.
            A inquietação, potenciada pelo anonimato, aumenta ao fazermos uma análise da sua obra. Desde o início, o grande objetivo dos Residents tem sido o de minar metodicamente os alicerces da música pop, introduzindo no espaço oco um sucedâneo, por vezes colorido, por vezes sombrio, umas vezes doce, outras amargo, mas sempre camuflado por uma camada em que o humor e a perversidade se confundem. As formas, os géneros, a mitologia, a iconografia da galáxia pop e, finalmente, as novas tecnologias multimédia, têm sido aspiradas, marteladas, amassadas, pervertidas (ou redimidas?) e vomitadas nos media pelos Residents. Existe uma filosofia e uma ideologia subjacentes ao “cartoon”. A desmontagem obedece a regras. Apaga-se a luz. Estudam-se os tiques. Substitui-se o recheio.
            A inversão tornou-se visível muito cedo. O single de apresentação, “Santa dog”, é um anagrama de “Satan god”. O EP “The Beatles Play the Residents and the Residents Play the Beatles” aprofunda o conceito de contaminação. Os Beatles, ícone absoluto da cultura pop, eram os primeiros alvos a abater. A capa e o título de “Meet the Residents”, álbum de estreia de 1973, são uma réplica adulterada de “Meet the Beatles”. Os rostos dos “fabulous four” de Liverpool desfeitos por caricaturas grotescas rabiscadas pelos “fabulous four” do Louisiana. Nos últimos anos assistiu-se a um regresso dos Residents à temática religiosa, isto é, ao tiro ao alvo sobre a Bíblia. Dinamitar o espírito para melhor metamorfosear a carne.

            Teoria da obscuridade. Flashback. Em 1966 os músicos que viriam a constituir-se como The Residents, antigos companheiros de escola (pobres professores!), abandonam o Louisiana, onde se dedicavam à gravação e recolha de música local, e estabelecem a sua base de operações em São Francisco, assistindo de perto ao “Summer of love”. Ervas daninhas em pleno roseiral. Em 1969, chegam rumores aos ouvidos de um guitarrista inglês, de seu nome Philip Lithman, posteriormente conhecido como Snakefinger. Vai de propósito à Califórnia, investigar. Mas antes, numa passagem pela Bavária, na orla da floresta negra, Lithman conhece uma misteriosa personagem, N. (Nigel?) Senada. Lithman e Senada travam por sua vez conhecimento com o grupo. N. Senada impressiona os futuros Residents com a sua “teoria da obscuridade” e o ensino de bizarras técnicas fonéticas.
            Quando, em 1971, a Warner Brothers recusa uma cassete que os quatro lhe tinham enviado, para hipotética inclusão numa coletânea, e a devolve à procedência, por escrito, em pacote endereçado simplesmente aos “residents” da morada indicada, estava encontrado o nome que se viria a tornar lenda: The Residents.
            Abramos aqui um parênteses, para falar do misterioso senhor Senada, nascido, ao que parece, na Alemanha, em 1907. Uns dizem que não passava de uma personagem ficcional inventada pelos próprios Residents. Mas N. Senada compôs e gravou músicas reais, sendo a sua obra mais conhecida, “Pollex Christi (The Thumb of Christ)”, inspirada em excertos de “Carmina Burana”, de Carl Orff. Senada advogava as virtudes do erro e afirmava ser impossível tocar corretamente as suas composições. Em 1938 desistiu de fazer música, alegando que esta se tornara “demasiado estarrecedora” para os ouvidos humanos. Parte então para o Canadá para estudar os costumes do povo “Inuit”. Com base nos seus apontamentos sociológicos sobre esta etnia esquimó, os Residents compõem “Eskimo”, de 1979. A partir daí o seu rasto perde-se por completo. Um musicólogo garante que N. Senada é Harry Partch, um dos compositores preferidos dos Residents (juntamente com Captain Beefheart), coincidindo as técnicas musicais de ambos.

            As toupeiras triunfam. Nenhum álbum dos Residents é mais marcado pela “teoria da obscuridade” de N. Senada, do que “Not Available”, banda sonora imaginária de um naufrágio mental. De acordo com a doutrina, “Not Available” só deveria ser editado quando todos, incluindo os seus autores, se tivessem esquecido da sua existência. Assim, o disco, segundo do grupo, foi gravado em 1974 mas apenas viu a luz do dia quatro anos mais tarde, quando o posterior “The Third Reich ‘n’ Roll”, já saíra, em 1976. Na prática, o segundo álbum dos Residents é oficialmente o terceiro.
            “The Third Reich ‘n’ Roll” contém disseminados todos os princípios da ideologia Residents, sendo e si mesmo um tratado de dissecação da música pop. Glosa êxitos dos Beatles e dos Stones e outros “hits” do “top ten” para os esventrar através do mesmo tipo de cacofonia epilética e aberração que os alemães Faust montaram no seu álbum de estreia. E afirma que Hitler era um vegetariano.
            Além de “Eskimo”, vento ártico sobre os rituais de morte dos esquimós, histeria, silêncio e terror, “Commercial Album”, de 1980, dispara sobre o coração da indústria – 40 temas com um minuto exato de duração cada, destinados a serem tocados como “jingles” na rádio. A pop assumida na sua condição de prostituta, a canção oferecendo-se como objeto de consumo imediato. A terrível gargalhada dos Residents fez-se ouvir bem alto nos salões da hipocrisia.
            Além de Snakefinger, já falecido e autor de magníficos álbuns a solo de inspiração residentiana (“Chewing Hides the Sound”, “Greener Postures”, “Manual of Errors”) e, a par dos Renaldo and the Loaf, um dos primeiros discípulos da banda, também Fred Frith e Chris Cutler, músicos-teóricos da banda inglesa Henry Cow (com conotações estéticas a Harry Partch, Faust e Mothers of Invention que, por sua vez, estavam ligados a Captain Beefheart…) passaram a ser colaboradores habituais dos “eyeballs”.
            A década de 80 é aproveitada pelos Residents para a composição de grandes trabalhos conceptuais. “Mark of the Mole” e “The Tunes of Two Cities”, partes um e dois de uma “Mole Trilogy” inacabada, contam a história do colapso da civilização humana e da sua derrota às mãos das toupeiras. Metáfora da infiltração subterrânea, da vitória das trevas sobre a luz, da noite sobre o dia, são obras-primas de pop, eletrónica, loucura, método e paradoxo. E metem medo.
            Saltando por cima de uma terceira parte que nunca existiu, o quarto capítulo da saga, “The Big Bubble”, apresenta os Residents como a banda de casino, The Big Bubble (chegou a especular-se se os rostos da capa não seriam afinal dos próprios…). As partes cinco e seis de “Mole Trilogy” são fantasmas.
            Na manga, estavam “The American Composers Series”, idealizadas para inundar o mercado durante 20 anos. Cessaram ao fim de dois álbuns, “George & James”, com versões da música de George Gershwin e James Brown, e “Stars & Hank Forever”, correspondente a John Philip Sousa e Hank Williams Sr. Uma vez mais, alguns dos mitos da música americana transformados em monstruosidades. Elvis Presley levou com a mesma dose, em “The King and I”, jogo de simulações (“I”/ “eye”) e exéquias ao rock ‘n’ roll.

            Circo de horrores. Simulação – a etapa que faltava para a armadilha se fechar e os Residents cerrarem em definitivo as mandíbulas em torno do pescoço da vítima. Se a fase “religiosa”, levada a cabo em “God in 3 Persons” e “Wormwood: A Curious Collection of Bible Stories”, usava como arma a caricatura e o cinismo para derrubar alguns dos santos dos seus altares, o que sucedeu a seguir levaria ainda mais longe a manipulação. Os Residents apropriam-se da tecnologia audiovisual mais sofisticada e aplicam-na no quarto virtual dos jogos eletrónicos de computador.
            O CD-Rom de “Freak Show” obriga o jogador a funcionar e a pensar como um psicopata à deriva num mundo de criminosos paranóicos. “Bad Day on the Midway”, também uma série de TV, leva-nos em deambulações por um circo de horrores.
            Os Residents criaram o seu mundo. Terroristas estéticos, observam-nos com o olhar gelado de “eyeballs” solenemente vestidos de fraque para a cerimónia do fim dos tempos que se avizinha. Cabe-nos a nós sair deste mundo de monstros, psicologicamente vivos e sãos. A sua obra infiltrou-se não só na música como em filmes, livros e vídeos delirantes. A sua música evoluiu da disformidade dos primeiros álbuns para o grotesco eletrónico dos anos 80 e deste para a frase litúrgica atual, evangelho a ecoar nos sininhos da demência e no clamor de maquinismos sugadores de almas. Tornaram-se um grupo pop. O grupo pop mais perigoso do mundo. Senhoras e senhores, meet the Residents!

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