13/01/2015

Uma ampola de tudo, uma mão cheia de nada [David Sylvian]



Y 21|SETEMBRO|2001
música|david sylvian

Uma ampola de tudo, uma mão cheia de nada

David Sylvian dá a cara ao paradoxo. Esteta ou “estreta”, pop ou ambiental, pintor do artifício ou designer da simplicidade, artista do vazio ou apaziguador do caos, é possível escutar na sua música o zumbido de algo que não tem fundo. O silêncio pode ser tudo e não conter nada. Vem a Portugal abrir a digressão.

David Sylvian é, como se costuma dizer, um esteta. Um esteta é alguém que contempla o mundo através das suas formas. Existem dois tipos de estetas. Um dá sentido ao termo aristotélico e considera a forma aquilo que faz cada coisa ser exatamente aquilo que é e a distingue de todas as outras. Existência plena. O outro não consegue vislumbrar além da casca das coisas, deleitando-se com a sua aparência. É o esteta-decorador ou esteta da treta, vulgo “estreta”.
            O estetoscópio (salvo seja) de David Sylvian, oscila entre o esquema aristotélico e o papel de parede. Além de que Sylvian é o que se chama um tipo politicamente correto. E um verdadeiro neo-renascentista.
            Pinta, fotografa, cuida dos filhos, adora a mulher, Ingrid Chavez, ex-protegida de Prince (o teclado da Macintosh não dá para escrever o símbolo…), que também pinta e escreve e até dá uma ajudinha, cantando de vez em quando nos concertos e nos discos do marido, interessa-se pelo zen e outras matérias esotéricas, é amigo de Ryuichi Sakamoto (outro esteta, os estetas dão-se bem uns com os outros) e, claro, toca e canta.
            Recentemente, o ex-Japan arranjou mesmo tempo extra para tocar ao vivo. Ao ponto de se abalançar numa nova digressão que se inicia em Portugal. Já na próxima segunda-feira, em Lisboa, prosseguindo no dia seguinte, no Porto. O resto da Europa e o Japão vão ter que esperar.
            Além da “tournée”, os aficionados de Sylvian têm ainda à disposição a coletânea relativamente recente, “Everything and Nothing”, e a versão remasterizada e remisturada de “Damage”, gravado ao vivo em 1993, de parceria com o guitarrista dos King Crimson, Robert Fripp. Em 2002 estará disponível uma coletânea de temas instrumentais.
            “Everything and Nothing” serviu igualmente de genérico à presente digressão, o que significa que a maioria dos temas que David Sylvian irá interpretar faz parte dela. Na Internet ferve-se de impaciência e fazem-se votações com toda a gente a acotovelar-se na tentativa de pressionar o músico para cantar as canções favoritas de cada um. Segundo as últimas estatísticas, “Ride” lidera com 423 votos, seguido de “Some kind of fool”, “The scent of magnolia”, “Cover me with flowers” e “Orpheus”. Quanto a álbuns, é curioso, “Brilliant Trees”, álbum de estreia de 1984, vai à frente, seguindo-se “Secrets of the Beehive” e “The first day”.
            Em palco, para acompanhar David Sylvian neste “Tudo ou nada” ao vivo, vão estar o irmão Steve Jansen, antigo companheiro seu nos Japan, na bateria, Matt Cooper, nos teclados, Tim Young, na guitarra, e Keith Lowe, no baixo.

Japão com estilo. Mas recordemos a história deste esteta, ou estreta, ou simplesmente um tipo que ganha a vida a fazer música com estilo e elegância.
            David Sylvian nasceu há 43 anos em Stone Park, Beckenham, Kent, iniciando-se nas lides musicais (expressão jornalística idiota bastante vulgarizada) como letrista, compositor e vocalista dos Japan. A década de 80 arrancava sob o manto de vergonha provocada pelo punk e era “in” ser “arty”, “poppy” e “stylish”. Os Japan eram tudo isto – uma mistura de eletropop, romantismo, filosofia oriental e, em jeito de cobertura de creme, a voz amaneirada de Sylvian. “Tin Drum”, álbum de 1981 dos Japan, continha a canção “Ghosts”, ilustrativa da face mais ambiental e misteriosa do grupo e uma das suas melhores de sempre.
            Ryuichi Sakamoto, que trocara a veia pós-Kraftwerk dos Yellow Magic Orchestra pelos fatos Versace, foi sensível à beleza dos fantasmas. O japonês convidou o músico dos Japan para dar voz a “Forbidden colours”, uma das canções da banda sonora de “Merry Christmas Mr. Lawrence”, cuja pauta era assinada pelo próprio Sakamoto. O público adorou e ofereceu a Mr. Sylvian o seu primeiro grande sucesso internacional.
            Mas o melhor estava para vir. No ano seguinte, ainda fresco das “charts”, surge “Brilliant Trees”. Gravado em Berlim, aconteceu-lhe o que geralmente acontece quando um artista vai gravar a Berlim (como fez Bowie em “Low” e “Heroes”) – chega a ser brilhante. Também na admira, com uma lista de convidados de calibre que incluía os trompetistas Jon Hassell, Kenny Wheeler e Mark Isham, o ideólogo dos Can, Holger Czukay, o contrabaixista pau-para-toda-a-obra, Danny Thompson, o inseparável par dos Japan, Steve Jansen e Richard Barbieri e, previsivelmente, Ryuichi Sakamoto. “Brilliant Trees” é pop ambiental com textura de veludo, delicada filigrana de palavras polvilhada por sons e cores multiétnicos.
            Já artista completo e diplomado, Sylvian transita do microfone para a fotografia em Polaroid, publicando um livro, “Perspectives”, com montagens e bonecos. Segue-se um vídeo e as primeiras colaborações extra-Sakamoto. Em trio com Robert Fripp e Kenny Wheeler, grava o EP “Steel Cathedrals”, que inclui o instrumental “Words with the shaman”, com Jon Hassell na trompete. O shaman poderia bem ser Robert Fripp, o guitarrista discípulo de Lúcifer.

Elogio da preguiça. À medida que ganha confiança, David Sylvian vai prolongando a duração dos temas. Mas o que, num ambientalista de génio como Brian Eno, se aceita como emanação de uma zona tão inóspita como luminosa do espírito, em David Sylvian aparenta mais o colorido de um rebuçado enjoativo que leva eternidades a derreter. “Gone to Earth”, de novo com Fripp, e contando com a presença de um segundo guitarrista, Bill Nelson, outro “artista”, com selo de origem nos Red Noise, estende-se preguiçosamente por dois álbuns. “Ambient” soporífera ferida pelas “frippertronics” do “Rei Carmesim”. “Secrets of the Beehive”, de 1987, mexe-se um bocadinho mais e contém “Forbidden colours”, uma das mais expressivas canções dos Japan.
O convívio com Holger Czukay deixara, entretanto, as suas marcas e, de Berlim para Colónia, Sylvian dá o braço ao homem dos Can para com ele fazer os sintetizadores ressonar no par “Plight & Premonition” (1988) e “Flux & Mutability”. Ambos preenchidos por instrumentais looooooooongos que almejavam, em vão, aflorar as zonas sagradas do silêncio que Czukay lograra registar, duas décadas antes, em “Cannaxis”.
1989 é o ano da caixa “Weatherbox”, com “design” do já desaparecido Russell Mills, outro esteta, que costumava trabalhar com Brian Eno. Com os seus antigos companheiros dos Japan enceta o projeto Rain Tree Crow o qual, em comparação com os bocejos anteriores, é um toque de despertador. “Ambient” elegante, recupera algum do mistério perdido pelos Japan. Michael Brook, parceiro habitual de Brian Eno, é um dos participantes. Curiosamente Eno e Sylvian nunca chegaram a trabalhar juntos…

O silêncio, tão próximo… Seguem-se novas e antigas colaborações. Ingrid Chavez, Bill Frisell, Robert Fripp, Sakamoto, Trey Gunn (outro King Crimson, de uma formação mais tardia). Sylvian aproveita para casar com Ingrid e gravar um novo álbum com Fripp, “The First Day”. O que poderia ter acontecido se tivesse sucedido o inverso, jamais o saberemos.
“The First Day” é mais Fripp que Sylvian, daí o seu ar de ameaça. Mas Sylvian encaixa bem com o homenzinho de estatura pequena mas cérebro descomunal que é Robert Fripp. Um adequado “nervous breakdown” tornou-o digno de emparceirar com o autor de “21st century schizoid man”… O zen ajudou a harmonizar a sua vida.
Já nos anos 90, Sylvian lança “Damage”, ao vivo, com Fripp, e mais dois álbuns a solo, “Dead Bees on a Cake” e “Approaching Silence”. O título deste último diz tudo. A música ambiental desliza sombria, provocando no ouvinte, consoante a sua disposição, o sono ou a meditação.
Tudo esta calmo agora. David Sylvian vive em Nova Inglaterra com a mulher, as duas filhas, o enteado e o I-Ching. Cessou contrato com a Virgin e está a transformar a sua casa em estúdio privado. Tudo está bem quando acaba bem. É muito? É pouco! A resposta pode ser dada estalando uma ampola de haiku (poema zen de três versos, contendo um paradoxo logico tendente a provocar o “satori”, a iluminação instantânea): “Everything and nothing”. Tudo e nada.

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