23/01/2015

"Sou a cabra mais anti-social do mundo" [Diamanda Galás]



QUINTA-FEIRA, 8 NOV 2001

“Sou a cabra mais anti-social do mundo”


ENTREVISTA COM
DIAMANDA GALÁS

Diamanda Galás é a incomodidade em pessoa. A voz que faz despertar todos os demónios. A cantora de ascendência grega vem atuar ao vivo pela segunda vez em Portugal, para apresentar “Defixiones, Will and Testament” sobre o tema do genocídio.

Senhora de uma voz demencial, Diamanda Galás não tem medo das palavras. Quando canta ou quando dá entrevistas, como aquela que concedeu em exclusivo ao PÚBLICO, o seu discurso é sempre perigoso, mesmo letal. A artista, que já cantou de seios nus e coberta de sangue numa igreja em Nova Iorque, que exorcizou a sida numa trilogia sobre o sofrimento, a morte e a religião, que faz do grito e da dor o veículo de uma expressividade sem limites, traz a Portugal “Defixiones, Will and Testament”. As palavras são de poetas arménios ou assírios contemporâneos e fala do exílio e do genocídio. A sua alma torturada faz o resto. Não há engano possível: Diamanda Galás é uma cantora de blues.
            PÚBLICO – “Defixiones, Will and Testament” é o título do espetáculo que vem apresentar em Portugal. O que significa?
            DIAMANDA GALÁS – “Defixione” significa em grego “maldição compulsiva”, a paralisia do adversário. Prende-se tudo com a falta de liberdade do indivíduo. No caso dos gregos e dos turcos, num sentido político, houve o genocídio dos turcos contra os cristãos arménios ortodoxos [em 1915, na I Grande Guerra]. Não o querem admitir, mas aconteceu. Os turcos querem entrar para a União Europeia, não têm interesse em falar dos seus crimes de guerra. Até hoje, as vítimas desses crimes continuam injustiçadas. Existem familiares das vítimas que vivem hoje na América, sem dinheiro, sem justiça. Foi-lhes tirado tudo. Não têm memória, não têm o direito de ver a morte ser reconhecida. Se olharmos para o que está a acontecer hoje na América, não é uma surpresa…
            Era essa a pergunta que lhe íamos fazer a seguir. Vive em Nova Iorque, em pleno coração do império…
            A América é quem decide tudo, quem escolhe os amigos e os inimigos. O Irão e o Iraque ora são amigos, ora inimigos, é tudo uma treta! Na América há a merda dos fundamentalistas cristãos. Do outro lado, os taliban, todos “bons rapazes”, iguais aos que temos cá. Fazem todos o mesmo, sentam-se numa mesa a planear isto e aquilo, não têm nenhum Deus, apenas se preocupam com eles próprios. Não são de modo algum “pessoas sagradas”.
            Trata-se afinal de uma e única coisa: o poder?
            Sem dúvida! Não é diferente nos EUA. Nos EUA vivem uns esquerdistazitos que tocam guitarras e cantam sobre a paz. Tudo tretas! “Sabem, os taliban, Bin Laden,,, É preciso saber compreendê-los…” Não há nada para compreender. O que está a acontecer vem muito de trás, desde o início da História. Houve sempre gente como Hitler. Pegam nos homossexuais e fuzilam-nos contra a parede. Pegam nas mulheres e disparam sobre elas no meio da rua. Não se importam se têm filhos, os filhos que vão para o inferno. Não é nada de novo para os cristãos do Médio Oriente.
            Não existe nenhuma solução?
            Quando aconteceu o genocídio dos arménios, toda a gente se esteve nas tintas. Mas as Torres Gémeas foram atingidas e aí já prestaram atenção. Os acontecimentos recentes só parecem constituir uma novidade porque aqueles que têm o dinheiro e o tal superpoder foram atingidos. A única solução que conheço é falar. Tenho um “site” na Net onde se fala destes assuntos, sou uma ativista individualista. Tento disseminar informação e desmistificar a contra-informação. Os turcos entram nas livrarias para deitar para o lixo os livros que falam do genocídio. Tenho um amigo meu de 75 aos que dá seminários sobre este tema. Apareceu um conselheiro qualquer turco, tirou-lhe os livros todos e enviou-os para Ankara para serem destruídos. Mas ele continua a falar. Eu continuo a falar. Aconteceu o mesmo com a epidemia de sida…
            Assunto que abordou na trilogia “Masque of the Red Death”, onde personificou a morte e a doença, uma espécie de exorcismo no limite do sofrimento…
            As pessoas andam apavoradas com o antraz. Eu rio-me na cara delas. “Queridos, andamos a lidar com uma crise – a sida – há 20 anos, acham que o antraz é um grande problema?” Vão-se foder. Os vossos amigos andam a morrer de sida, há funerais todos os dias! Querem falar da morte? Morreram seis mil pessoas nas Torres. Quantas morreram de sida, só na área de São Francisco? As pessoas veem apenas o que lhes convém. Vivo a duas milhas do World Trade Center, vi tudo a acontecer, o fumo entrou na janela do meu quarto. Dois dias depois viajei para Londres para dar um concerto! É preciso pagar a renda [risos].
            Por falar em morte, o seu próximo projeto é uma ópera intitulada “Nekropolis”, a Cidade dos Mortos.
            É sobre Constantinopla (reparou que até agora chamei sempre Constantinopla a Instambul?), onde ainda vivem dois mil gregos, na maioria velhos, que são proibidos de falar a sua língua. Sabia que a palavra “grego” significa “cão”, em turco? São tratados como criminosos. O que pretendo dizer em “A Cidade dos Mortos” é que os seus antigos habitantes já estão todos mortos. Já nem há sírios nem assírios, nem gregos, nenhum dos povos que lá habitava. Foram todos mortos. Os turcos aproveitaram as catedrais construídas na época bizantina, verdadeiras obras de arte, puseram-lhe no topo uma bandeira sua e dizem que são genuínos produtos da arte turca! Os turcos nunca criaram nada. Tudo o que têm foi roubado. Mesmo a religião que professam foi roubada dos árabes. A música, roubaram-na da Grécia. A única coisa que os turcos sabem fazer é cinzeiros. Falo sem ambivalências. Não tenho medo desses turcos de merda, estou-me nas tintas para eles! Mas toda a gente tem um medo de morte deles, como tinham antes medo de Hitler!
            Como vão ser os espetáculos do Porto e de Lisboa?
            Uma missa sobre o genocídio. Vou estar sozinha em palco, a voz apoiada num piano e eletrónica. Sou a cabra mais anti-social do mundo. Em termos vocais vou usar toda a espécie de técnicas que a humanidade hoje conhece [risos].
            Longe vão os tempos em que cantou em “topless”, coberta de sangue, na catedral de St. John, the Divine, em Nova Iorque. Na altura, foi um escândalo.
            Disseram-lhe isso? Só sei que o cardeal O’Connor tentou impedir-me, mas isso foi porque ele é idiota! Não queria ser escandalosa, apenas mostrar o que as mulheres sicilianas sentem quando alguém morre, as carpideiras, o seu pranto. Por isso, apareci com o tronco encharcado de sangue, não se tratava propriamente de um “show” de “striptease” [risos].
            Mas, afinal, como é que conseguiu autorização para esse espetáculo?
            Não consegui. Se pedires autorização para fazer certas coisas nunca vais conseguir fazê-las [risos]. Há coisas que não se devem pedir nesta vida. Se pedires autorização para tocar uma peça de Mozart, tudo bem. Mas na minha posição, sabe como é…
            Um dos seus álbuns tem por título “You must be certain of the Devil”. O diabo desempenha que papel na sua obra?
            Por outras palavras, o mundo de Lúcifer. Se ficarmos aqui mais três horas a conversar, podemos discutir o assunto…


Diamanda Galás
VILA NOVA DE GAIA Hard Club. Hoje, às 22h30. Tel.: 223744755.
Bilhetes a 3500$00 e a 4000$00.
LISBOA Aula Magna. Sáb., 10, às 22h. Tel.: 218820890.
Bilhetes a 4000$00 e 5500$00.

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