PÚBLICO SEXTA-FEIRA, 5 ABRIL 1991 >> Cultura
Minimalista
Wim Mertens lança obra em sete CD
A eternidade em cinco horas

MINIMALISTA,
monárquico, pós-moderno, genial e louco são alguns dos adjetivos aplicáveis ao
compositor belga Wim Mertens. Sobretudo os dois últimos, se levarmos em conta o
seu mais recente trabalho, “Alle Dinghe”, com mais de cinco horas de duração,
só ao alcance dos iniciados.
“Alle Dinghe” cumpre uma promessa
antiga. Desde o ano passado, quando o músico, monárquico e tradicionalista
convicto (tocou em particular para o rei de Espanha...), atuou a solo no Teatro
S. Luiz em Lisboa, que a ideia germinava no seu cérebro fervilhante. Ao ritmo
dos passos e das vibrações da serra de Sintra, Wim Mertens discorria, num
monólogo interminável, sobre aquela que seria a obra-chave, solução definitiva
para os mistérios que a sua música encerra, vitória sobre o tempo, a
eternidade, em suma.
Mertens considera-se um enviado dos
deuses, portador de uma missão a cumprir – transmitir aos homens a verdade
última – dos sons, da melodia e harmonia absolutas, ocultas na estrutura
pitagórica do verbo composicional, estrutura já manifestamente evidente, aliás,
nos dezassete minutos finais de harpa algébrica, para muitos insuportáveis, de
“Educes Me”. Toda a sua obra anterior a “Alle Dinghe” (de que “Vergessen”,
“Maximizing the Audience”, “Struggle for Pleasure” ou “After Virtue” constituem
fases cruciais) avança por aproximações progressivas a essa essência. Para quem
não conhece nem seguiu, passo a passo, nota a nota, esse percurso em direção ao
segredo, torna-se incompreensível, senão mesmo penosa, a audição integral deste
trabalho, só comparável, em depuração formal e duração, a “The Well-Tuned Piano”,
do profeta La Monte Young.
O tempo imóvel
Dividida em três núcleos fundamentais,
distribuídos por sete (!) discos compactos arrumados em três caixas, “Alle
Dinghe” (gravado na editora “Les Disques du Crépuscule”, distribuída em
Portugal pela Contraverso) dura exatamente cinco horas, cinquenta e cinco
minutos, dezassete segundos. “Sources of Sleepness” constitui a matéria dos
dois primeiros CDs – “Meinleib ist müde”
e “Venerandam” num, “Sub Rosa” e “Le Bref” no outro. “Vita Brevis” estende-se,
em sete partes, por mais dois compactos. Finalmente, “Alle Dinghe”, dividido em
dez partes, preenche os restantes três.
Para a escuta contínua e integral da
obra, torna-se necessário cumprir certos requisitos, a saber: jejum prévio
durante os cinco dias (tantos quantas as horas de “Alle Dinghe”) anteriores à
audição, depois do qual, no caso de se ter sobrevivido à fominha, se deverá
dedicar cinco horas à meditação transcendental, de modo a evitar ao máximo
possíveis acessos de impaciência, que, nestas circunstâncias, poderão ser
fatais.
“Sources of Sleepness” recupera o
formato instrumental dos Soft Veredict. Oito músicos dão corpo a este
“perpetuum mobile”, através de uma combinação característica da música de
câmara (tuba, clarinete, flauta, violino, violeta, violoncelo e contrabaixo) e
de desenvolvimentos melódico-harmónicos que retomam o minimalismo na sua
vertente mais radical.
“Vita Brevis” aponta para uma conceção
temporal própria do Zen – sucessão cíclica de infinitos instantes, como um
filme observado ao fotograma, micro-espirais de fogo desenroladas, ao longo de
mais de uma hora, pelo fagote, em solo absoluto, de Luc Verdonck, à semelhança
do que acontece nas “Instrumental songs” interpretadas, também em
solo-absoluto, pelo saxofone soprano de Dirk Descheemaeker, no álbum do mesmo
nome.
Os três últimos CDs correspondem ao
desfecho em forma de odisseia extática, “Alle Dinghe”, síntese operatória e
manifesto teórico das premissas subjacentes à música e conceções existenciais
do seu autor – ultrapassagem da linguagem e do pensamento conceptuais,
considerados prisões que obstam à pura contemplação da vida e do perpétuo e
imprevisível movimento que, por essência, ela é. O “tal-qualismo” de que
falavam os mestres Zen, visão das coisas “tal qual são” e não como as pensamos.
Cada parte de “Alle Dinghe” recorre a fonemas destituídos de sentido (“zo”,
“al”, “ook”, “et”, “tt”, “en”...), para descobrir o vazio que corrói a carne
das palavras e ao mesmo tempo apontar o silêncio incomensurável do Todo, do
Nada que é o tudo da realidade manifestada.
A música, enfim, liberta das grilhetas
do significado. Reduzida a um trio instrumental violino/violoncelo/contrabaixo,
a sequência final (e anti-apoteótica) de “Alle Dinghe” derruba todas as
conceções, teoria e modos de perceção sonora que a construção fictícia do Ego
geralmente implicam. Wim Mertens dá voz e espaço à liberdade anteriormente
enunciada por La Monte Young, na vertigem silenciosa do “teatro da música
eterna”. Não são diferentes, a Eternidade e o Instante.