01/12/2025

"La dulce vita" [Paolo Conte]

 

PÚBLICO SÁBADO, 20 ABRIL 1991 >> Local >> Televisão

 

“La dulce vita”

 

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ADIVINHA-SE Paolo Conte no cruzamento de Nova Orleães, Hollywood e um pátio italiano, sentado ao piano, semblante sorridente de “matador”, a ponta do bigode grisalho ligeiramente húmida de vinho.

Quando canta “La vera musica” numa voz rouca de tenor, as luzes baixam e o fumo de cigarros matiza de sonhos desfocados o veludo vermelho por trás do palco vazio. Noites de álcool. Bailes de anos passados na varanda do casino frente à praia. Amigos e amantes de quem já não se recorda o nome. Uma taça de champanhe erguida, de madrugada, à saúde de todos e ninguém, numa esplanada de Inverno à beira-mar. A doce vida.

Conforme a disposição, Paolo Conte canta os “blues”, cançonetas populares de faca e alguidar ou “pastiches” de Frank Sinatra, ao sabor ritmado dos copos, tangos e “passe dobles” vibrantes de “swing” – só, defronte de um piano que “andou a beber”, tal qual o de Tom Waits, ou em equilíbrio precário sobre orquestrações nascidas do casamento de Nino Rota com Carla Bley.

“Hemingway”, “Dancing”, “Blue Haways”, “Boogie”, “Un Gelato al Limon”, “La Vera Musica”, “Chi Siamo Noi” ou “Diavolo Rosso” são algumas das maravilhas incluídas no duplo álbum coletânea “I Primi Tempi” e a melhor maneira de aceder ao universo surreal do cantor. Para seguir viagem, sugere-se a audição de “Paolo Conte”, “Paris Milonga” ou “Appunti di Viaggio”, recentemente editados em CD. Sobram razões para assistir esta noite ao espetáculo de Paolo Conte, ao vivo na cidade suíça de Locarno.

 

Canal 2, às 00h30

 

Stivell desafinou [Alan Stivell]

 

PÚBLICO SEXTA-FEIRA, 19 ABRIL 1991 >> Cultura

 

II Festival Intercéltico e Semana da Bretanha, no Porto

 

Stivell desafinou

 

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A Bretanha invadiu a capital nortenha, ao som da harpa eletrificada de Alan Stivell. Não houve feridos – em nítida baixa de forma, o bardo não conseguiu fazer a festa e desiludiu os entendidos. Diferente opinião tiveram os milhares de pessoas que encheram o Teatro Rivoli, no Porto, e que no final aplaudiram de pé.

 

Quem desde a época brilhante de “La Renaissance de la Harpe Celtique” e “Chemins de Terre” tem vindo a acompanhar a obra de Alan Stivell, não pode deixar de se sentir desiludido com a fraca amostra a que teve direito na noite de anteontem. Acompanhado somente por Yves Riblis, nas guitarras acústicas e sintetizador, Alan Stivell trocou notas, falhou tempos e desafinou, chegando ao ponto de, num dado momento, a voz lhe faltar completamente, obrigando à interrupção e ao recomeço do tema.

Unanimemente reconhecido como um dos grandes intérpretes da harpa céltica e arauto da cultura bretã, Alan Cochevelou, de seu verdadeiro nome, mais parecia um novato, à procura da afinação certa e do registo vocal adequado. Saiu-se melhor nos poucos temas em que utilizou o “tin whistle”, típico pífaro metálico irlandês, ou a bombarda, com a qual tentou “agarrar” o público, através de uma das suas habituais cedências ao rock ‘n’ roll. Quanto à gaita-de-foles, sempre presente nos discos, nem vê-la – “em cena, só no meu grupo de rock” – explicou. O alegado cansaço (três horas de sono, na véspera, entre várias viagens de avião) não desculpa porém a falta de brio profissional de que deu mostras, mais parecendo, a certa altura, tratar-se de um ensaio e não de um espetáculo pago.

Por seu lado, Yves Riblis, coitado, lá ia acompanhando como podia a falta de swing evidenciada pelo mestre (certas incursões na atonalidade contemporânea não servem de justificação para o dedo que falha a corda…). Por fim preferiu perguntar pelo resultado do Porto – Benfica.

 

Novo disco inspirado em Avalon

 

Resta a consolação de um novo disco, a sair em breve, “The Mist of Avalon” [As Brumas de Avalon], gravado na Irlanda e inspirado na obra de Marion Zimmler Bradley. Álbum “conceptual, de canções girando à volta do conceito arturiano” – nas palavras do autor. Alan Stivell assegura que “os franceses ficaram deslumbrados com o romance” e com a sua “maneira diferente de rever a lenda do rei Artur, a partir de um ponto de vista feminino e de uma visão pré-céltica das origens, anteriores ao Cristianismo”.

A Tradição, como ponte para o Futuro, tem sido desde há muito a cruzada pessoal do músico bretão, empenhado em participar na construção dos alicerces musicais da “nova idade” – “correspondente aos próximos 2000 anos”, período que acredita ser o da “reunificação da Humanidade” e da “comunicação total”. Recordem-se, a propósito, o seu último disco até à data, “Harpes du Nouvel Âge” ou o duplo “Symphonie Celtique”, de 1980, manifesto de confluência das músicas e culturas do universo, no mundo celta. Curiosamente, Alan Stivell afirma que no início, não pretendia senão “fazer rock bretão, ou céltico, sem recorrer forçosamente aos instrumentos tradicionais”. Chega a irritar-se quando chamam “cósmica” ou mesmo “céltica” à sua música – “procurar etiquetas, não faz parte de uma verdadeira atitude céltica. A noção de que tudo, o mundo, o universo, tem de ser analisado e dividido em pedaços, é tipicamente latina. No fim de contas é a maneira de funcionar do cérebro, tal como um computador. É uma noção latina que o povo celta não compreende”. A acreditar na teoria, chega-se facilmente à conclusão de que os portugueses nunca foram afinal, nem são, um povo latino.

As propostas de instauração planetária da “nova idade”, em que os celtas desempenhariam o principal papel, são à partida, louváveis: “Trata-se de reunir tudo, mas em que, ao mesmo tempo, nada ficará completamente unido. Cada indivíduo do planeta concretizará, à sua justa escala, a sua própria reunificação e terá acesso à grande biblioteca mundial”. E que “o macrocosmos e o microcosmos existem em todos e em cada um”, logo também “em cada música será possível escutar todas as músicas do planeta”. Decerto que sim, mas se nos cingirmos ao concerto de anteontem, fica-se mais com a ideia de que o mundo passará a ser como um quintal, em vez da grande e tão apregoada fraternidade universal.

 

 

Nils Lofgren - Silver Lining

 

Pop Rock

17 de Abril 1991

 

Nils Lofgren
Silver Lining
LP e CD, Essential, distri. Anónima


 








É guitarrista, mas Neil Young convidou-o para tocar piano em “After the Goldrush” e, mais tarde, já o instrumento certo, em “Tonight’s the Night” e “Trans”. Após uma passagem rápida pelos Grin, lançou-se numa carreira a solo relativamente bem sucedida, assinalada pela gravação de álbuns de rock “mainstream” (“Grin”, “Nils Lofgren”, “Back it up”, “Cry Tough”, “Night Fades Away” ou “Wonderland”, entre outros) que lhe valeram o estatuto de “guitar hero” capaz de proezas acrobáticas, como tocar de costas em salto de trampolim ou, segundo reza a lenda, de prodigiosos triplos saltos mortais com “flic flac” à retaguarda. Entrou para a E Street Band, de Bruce Springsteen, e parece que ficou mais sossegado. Agora, regressa a solo com “Silver Lining”, mas não há nada de particularmente interessante a registar – o mesmo “rock’n’roll” honesto de sempre, as mesmas baladas agradáveis e inócuas, o virtuosismo guitarrístico que se lhe reconhece. Uma referência final para a lista de convidados especiais: Bruce Springsteen, Levon Helm, Billy Preston e Ringo Starr. A música, infelizmente, nada tem de especial. **

Eles os dois são ela [Eurythmics]

 

PÚBLICO SÁBADO, 13 ABRIL 1991 >> Local >> Televisão

 

Eles os dois são ela

 

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ELA É ANNIE LENNOX. Ele Dave Stewart. Ele toca, compõe e arranja. Canções, claro. Ela é a voz, o rosto e o corpo dado ao manifesto. Ele é a música, o profissional na sombra que faz mexer os cordelinhos. Ela é teatro, instinto, sedução. Ele – óculos escuros – tocava com Elton John e abusava das drogas. Ela – cabelo louro muito curto – cantava nos Tourists. De tão diferentes, ligam bem um com o outro. São os Eurythmics – fábrica de sonhos prontos a consumir. Ou de espelhos. “Sweet dreams are made of this”, afinal de contas.

No início, o frio de um jardim de Colónia: “In the Garden”, gravado nesta cidade, com Holger Czukay e Jaki Liebezeit, dos Can, e os dois D.A.F., Robert Görl e Gabi Delgado. Disco eletrónico, distante, fatal. Em 1981, dançava-se ao som das máquinas. Depois, o golpe de magia de “Sweet Dreams (are made of this)”, um milhão de discos vendidos e “top one” nos Estados Unidos. Os tijolos do caminho tornam-se dourados: “Touch” – e a versão mini, para discoteca, “Touch Dance” –, “1984 (for the love of big brother)” – banda sonora do filme inspirado na obra de Orwell –, “Be yourself tonight”, “Revenge”, “Savage” e “We two are one too” desmentem o provérbio – com os Eurythmics, tudo o que luz é ouro.

Canções de êxito, nem se fala: “Love is a Stranger”, “Right by your side”, “Here Comes the Rain”, “Sex Crime”, “Sisters are Doing it for Themselves” (em dueto com Aretha Franklin), “Beethoven (I love to listen to)”. “There Must be na Angel”, com certeza. Há. Chama-se Annie Lennox. Vamos vê-la e ouvi-la, a propósito de “We two are one too”, ao vivo, no mundo real, e em “clips”, no mundo da ilusão. Os dois são um.

 

Canal 2, às 00h25

A eternidade em cinco horas [Wim Wertens]

 

PÚBLICO SEXTA-FEIRA, 5 ABRIL 1991 >> Cultura

 

Minimalista Wim Mertens lança obra em sete CD

 

A eternidade em cinco horas

 

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MINIMALISTA, monárquico, pós-moderno, genial e louco são alguns dos adjetivos aplicáveis ao compositor belga Wim Mertens. Sobretudo os dois últimos, se levarmos em conta o seu mais recente trabalho, “Alle Dinghe”, com mais de cinco horas de duração, só ao alcance dos iniciados.

“Alle Dinghe” cumpre uma promessa antiga. Desde o ano passado, quando o músico, monárquico e tradicionalista convicto (tocou em particular para o rei de Espanha...), atuou a solo no Teatro S. Luiz em Lisboa, que a ideia germinava no seu cérebro fervilhante. Ao ritmo dos passos e das vibrações da serra de Sintra, Wim Mertens discorria, num monólogo interminável, sobre aquela que seria a obra-chave, solução definitiva para os mistérios que a sua música encerra, vitória sobre o tempo, a eternidade, em suma.

Mertens considera-se um enviado dos deuses, portador de uma missão a cumprir – transmitir aos homens a verdade última – dos sons, da melodia e harmonia absolutas, ocultas na estrutura pitagórica do verbo composicional, estrutura já manifestamente evidente, aliás, nos dezassete minutos finais de harpa algébrica, para muitos insuportáveis, de “Educes Me”. Toda a sua obra anterior a “Alle Dinghe” (de que “Vergessen”, “Maximizing the Audience”, “Struggle for Pleasure” ou “After Virtue” constituem fases cruciais) avança por aproximações progressivas a essa essência. Para quem não conhece nem seguiu, passo a passo, nota a nota, esse percurso em direção ao segredo, torna-se incompreensível, senão mesmo penosa, a audição integral deste trabalho, só comparável, em depuração formal e duração, a “The Well-Tuned Piano”, do profeta La Monte Young.

 

O tempo imóvel

 

Dividida em três núcleos fundamentais, distribuídos por sete (!) discos compactos arrumados em três caixas, “Alle Dinghe” (gravado na editora “Les Disques du Crépuscule”, distribuída em Portugal pela Contraverso) dura exatamente cinco horas, cinquenta e cinco minutos, dezassete segundos. “Sources of Sleepness” constitui a matéria dos dois primeiros CDs – “Meinleib ist müde” e “Venerandam” num, “Sub Rosa” e “Le Bref” no outro. “Vita Brevis” estende-se, em sete partes, por mais dois compactos. Finalmente, “Alle Dinghe”, dividido em dez partes, preenche os restantes três.

Para a escuta contínua e integral da obra, torna-se necessário cumprir certos requisitos, a saber: jejum prévio durante os cinco dias (tantos quantas as horas de “Alle Dinghe”) anteriores à audição, depois do qual, no caso de se ter sobrevivido à fominha, se deverá dedicar cinco horas à meditação transcendental, de modo a evitar ao máximo possíveis acessos de impaciência, que, nestas circunstâncias, poderão ser fatais.

“Sources of Sleepness” recupera o formato instrumental dos Soft Veredict. Oito músicos dão corpo a este “perpetuum mobile”, através de uma combinação característica da música de câmara (tuba, clarinete, flauta, violino, violeta, violoncelo e contrabaixo) e de desenvolvimentos melódico-harmónicos que retomam o minimalismo na sua vertente mais radical.

“Vita Brevis” aponta para uma conceção temporal própria do Zen – sucessão cíclica de infinitos instantes, como um filme observado ao fotograma, micro-espirais de fogo desenroladas, ao longo de mais de uma hora, pelo fagote, em solo absoluto, de Luc Verdonck, à semelhança do que acontece nas “Instrumental songs” interpretadas, também em solo-absoluto, pelo saxofone soprano de Dirk Descheemaeker, no álbum do mesmo nome.

Os três últimos CDs correspondem ao desfecho em forma de odisseia extática, “Alle Dinghe”, síntese operatória e manifesto teórico das premissas subjacentes à música e conceções existenciais do seu autor – ultrapassagem da linguagem e do pensamento conceptuais, considerados prisões que obstam à pura contemplação da vida e do perpétuo e imprevisível movimento que, por essência, ela é. O “tal-qualismo” de que falavam os mestres Zen, visão das coisas “tal qual são” e não como as pensamos. Cada parte de “Alle Dinghe” recorre a fonemas destituídos de sentido (“zo”, “al”, “ook”, “et”, “tt”, “en”...), para descobrir o vazio que corrói a carne das palavras e ao mesmo tempo apontar o silêncio incomensurável do Todo, do Nada que é o tudo da realidade manifestada.

A música, enfim, liberta das grilhetas do significado. Reduzida a um trio instrumental violino/violoncelo/contrabaixo, a sequência final (e anti-apoteótica) de “Alle Dinghe” derruba todas as conceções, teoria e modos de perceção sonora que a construção fictícia do Ego geralmente implicam. Wim Mertens dá voz e espaço à liberdade anteriormente enunciada por La Monte Young, na vertigem silenciosa do “teatro da música eterna”. Não são diferentes, a Eternidade e o Instante.