PÚBLICO QUINTA-FEIRA, 2 MAIO 1991 >> Cultura
Os
Madredeus no Coliseu dos Recreios, em Lisboa
Canções do Quinto Império
Para os Madredeus foi a consagração. Para os milhares de
pessoas que encheram o Coliseu, a oportunidade de reencontro com uma música que
aprenderam a amar. Teresa Salgueiro cantou como só os anjos sabem. Carlos
Paredes juntou-se ao grupo para “mudar de vida” e seguir com “o navio” pela
noite fora.
Coliseu dos Recreios, em Lisboa. Noite
de terça-feira. Sala a abarrotar de gente de todas as idades, ansiosa para
assistir à prova de fogo da banda de Teresa Salgueiro, Pedro Ayres Magalhães,
Rodrigo Leão, Francisco Ribeiro e Gabriel Gomes – os Madredeus – a meio de uma
digressão iniciada em março na cidade de Braga e que os levará, já dia 4, ao
Porto, e, no Verão, aos Açores, Rio de Janeiro, Florença e Macau.
Sobre o palco, desenhado pelo escultor
António Campos Rosado, uma escada e uma casa, pequena, sem paredes. Escada por
onde se sobe para chegar ao céu. Cá em baixo, na terra, a casa, transparente,
portuguesa, com certeza. Iluminação discreta e eficaz. A luz colorida
contrastando com o negro das vestes dos músicos. Som límpido e potente,
permitindo ouvir distintamente as palavras, projetando bem alto as notas e a
clareza dos arranjos, na nave majestosa do Coliseu. Acontecimento único que a
televisão, felizmente, gravou.
A voz e a guitarra
A sequência de canções seguiu o
alinhamento prometido, a mostrar que nada foi deixado ao acaso. “Matinal”, “A
Saudade”, “A Península”, “Cuidado” e o hino “O Ladrão”, num ápice, conquistaram
o público. Ovações estrondosas, estrelinhas e isqueiros acesos, palmas de
acompanhamento, a festa, enfim. E no entanto a música dos Madredeus sabe
guardar um espaço de silêncio. As canções de Pedro Ayres são capazes de mover
multidões ao mesmo tempo que parecem ter sido compostas especialmente para cada
um de nós. Música fraterna e solidária. Esquece-se a vida a fingir, o ruído da
turba, a espuma dos dias e fica-se sozinho. Na companhia extasiada de uma voz
transcendente ao corpo feminino que a sustenta, a voar nas cadências, nossas
desde sempre, de um violoncelo, um teclado, uma guitarra acústica e um
acordeão. O uno e o múltiplo, juntos na mesma pessoa e na mesma música.
“Existir” no Quinto-Império.
Quando Carlos Paredes, acompanhado por
Luísa Amaro, tímido como sempre e é característico da sua pessoa exceto na
música que faz, subiu ao palco, sentiu-se no ar a emoção dos grandes momentos.
Só, dobrado sobre o seu corpo verdadeiro – a guitarra – interpretou “Mudar de
Vida”. A seguir, já acompanhado por todos os músicos da banda, improvisou ao
sabor do “Canto de Embalar” (música sua, letra de Pedro Ayres) e de “O Navio”.
Retirou-se debaixo de uma monstruosa salva de aplausos. Haveria de voltar.
Antes do intervalo, a extroversão e alegria de “O pastor”, canção vivida pelo
crítico de forma apocalíptica, rendido à força da música e ao magnetismo da
multidão, enquanto um “arrumador de retardatários” lhe apontava um foco de
lanterna aos olhos e berrava obscuras séries algébricas. Aos ouvidos aturdidos
chegavam, incertas, as palavras do poema: “ao largo ainda arde a fila L, números
22 e 24, a barca da fantasia/e o meu sonho mostre-me os seus bilhetes por favor
acaba tarde/acordar é o lugar ao lado que eu não queria”.
“As Ilhas dos Açores”, instrumental de
colorações eruditas, abriu serenamente a segunda parte do espetáculo. Rui
Machado, poeta açoriano, escreveu a propósito: “Na ilha o deus do tempo dorme
entre pedras e flores. Ilhas dos Açores, do Espírito Santo, Ilha dos Amores”.
Depois, sempre em crescendo, as canções guardadas no coração: “Vontade de
Mudar”, a suite “A Sombra”/“Solstício” (instrumental com novo e inspirado
arranjo)/“Estrada do monte” e finalmente a explosão da “Vaca de Fogo” – vaca
deleite.
Interpretação sublime
Carlos Paredes regressou no “encore”,
para a segunda interpretação da noite de “As Ilhas dos Açores”, fazendo
contrastar o tom arrebatado e as cicatrizes da sua guitarra com a fluência e o
vigor jovial dos outros instrumentos. Já no segundo regresso ao palco, Teresa
Salgueiro, iluminada por um foco intenso de luz branca e bem apoiada pela
guitarra de Pedro Ayres e o violoncelo de Francisco Ribeiro, interpretou de
forma sublime, “O Menino” – momento de pura religiosidade, com a multidão,
suspensa do canto de uma mulher, escutando-se e vivendo-se a si própria no
corpo crístico do infante.
“Mindelo” e de novo “Vaca de Fogo”
fecharam em apoteose um concerto inesquecível. Depois da noite de anteontem a
música portuguesa ficou um pouco mais próxima de Deus.
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