PÚBLICO SEXTA-FEIRA, 19 ABRIL 1991 >> Cultura
II
Festival Intercéltico e Semana da Bretanha, no Porto
Stivell desafinou
A Bretanha invadiu a capital nortenha, ao som da harpa eletrificada
de Alan Stivell. Não houve feridos – em nítida baixa de forma, o bardo não
conseguiu fazer a festa e desiludiu os entendidos. Diferente opinião tiveram os
milhares de pessoas que encheram o Teatro Rivoli, no Porto, e que no final
aplaudiram de pé.
Quem desde a época brilhante de “La
Renaissance de la Harpe Celtique” e “Chemins de Terre” tem vindo a acompanhar a
obra de Alan Stivell, não pode deixar de se sentir desiludido com a fraca
amostra a que teve direito na noite de anteontem. Acompanhado somente por Yves
Riblis, nas guitarras acústicas e sintetizador, Alan Stivell trocou notas,
falhou tempos e desafinou, chegando ao ponto de, num dado momento, a voz lhe
faltar completamente, obrigando à interrupção e ao recomeço do tema.
Unanimemente reconhecido como um dos
grandes intérpretes da harpa céltica e arauto da cultura bretã, Alan
Cochevelou, de seu verdadeiro nome, mais parecia um novato, à procura da
afinação certa e do registo vocal adequado. Saiu-se melhor nos poucos temas em
que utilizou o “tin whistle”, típico pífaro metálico irlandês, ou a bombarda,
com a qual tentou “agarrar” o público, através de uma das suas habituais
cedências ao rock ‘n’ roll. Quanto à gaita-de-foles, sempre presente nos
discos, nem vê-la – “em cena, só no meu grupo de rock” – explicou. O alegado
cansaço (três horas de sono, na véspera, entre várias viagens de avião) não
desculpa porém a falta de brio profissional de que deu mostras, mais parecendo,
a certa altura, tratar-se de um ensaio e não de um espetáculo pago.
Por seu lado, Yves Riblis, coitado, lá
ia acompanhando como podia a falta de swing evidenciada pelo mestre (certas
incursões na atonalidade contemporânea não servem de justificação para o dedo
que falha a corda…). Por fim preferiu perguntar pelo resultado do Porto –
Benfica.
Novo disco inspirado em Avalon
Resta a consolação de um novo disco, a
sair em breve, “The Mist of Avalon” [As Brumas de Avalon], gravado na Irlanda e
inspirado na obra de Marion Zimmler Bradley. Álbum “conceptual, de canções
girando à volta do conceito arturiano” – nas palavras do autor. Alan Stivell
assegura que “os franceses ficaram deslumbrados com o romance” e com a sua
“maneira diferente de rever a lenda do rei Artur, a partir de um ponto de vista
feminino e de uma visão pré-céltica das origens, anteriores ao Cristianismo”.
A Tradição, como ponte para o Futuro,
tem sido desde há muito a cruzada pessoal do músico bretão, empenhado em
participar na construção dos alicerces musicais da “nova idade” –
“correspondente aos próximos 2000 anos”, período que acredita ser o da “reunificação
da Humanidade” e da “comunicação total”. Recordem-se, a propósito, o seu último
disco até à data, “Harpes du Nouvel Âge” ou o duplo “Symphonie Celtique”, de
1980, manifesto de confluência das músicas e culturas do universo, no mundo
celta. Curiosamente, Alan Stivell afirma que no início, não pretendia senão
“fazer rock bretão, ou céltico, sem recorrer forçosamente aos instrumentos
tradicionais”. Chega a irritar-se quando chamam “cósmica” ou mesmo “céltica” à
sua música – “procurar etiquetas, não faz parte de uma verdadeira atitude
céltica. A noção de que tudo, o mundo, o universo, tem de ser analisado e
dividido em pedaços, é tipicamente latina. No fim de contas é a maneira de
funcionar do cérebro, tal como um computador. É uma noção latina que o povo celta
não compreende”. A acreditar na teoria, chega-se facilmente à conclusão de que
os portugueses nunca foram afinal, nem são, um povo latino.
As propostas de instauração planetária
da “nova idade”, em que os celtas desempenhariam o principal papel, são à
partida, louváveis: “Trata-se de reunir tudo, mas em que, ao mesmo tempo, nada
ficará completamente unido. Cada indivíduo do planeta concretizará, à sua justa
escala, a sua própria reunificação e terá acesso à grande biblioteca mundial”.
E que “o macrocosmos e o microcosmos existem em todos e em cada um”, logo
também “em cada música será possível escutar todas as músicas do planeta”.
Decerto que sim, mas se nos cingirmos ao concerto de anteontem, fica-se mais
com a ideia de que o mundo passará a ser como um quintal, em vez da grande e
tão apregoada fraternidade universal.
Sem comentários:
Enviar um comentário