PÚBLICO DOMINGO, 16 JUNHO 1991 >> Cultura
Cao na Mãe d’Água
NA
MÃE D’ÁGUA, em Lisboa, continua a decorrer (até dia 18) um ciclo dedicado aos
instrumentos de corda, à semelhança aliás do que, em local diferente, aconteceu
no ano passado. Anteontem à noite foi a vez do duo Carmen Cardeal/Pedro
Teixeira da Silva, repetivamente em violino e harpa clássica, e do galego
Emilio Cao, em harpa céltica. A Mãe d’Água, situada na zona das Amoreiras, é
uma imensa cisterna aberta a meio do aqueduto das águas livres ou, se
quisermos, uma catedral de água, cuja ressonância de 55 segundos constitui uma
característica interessante (se bem aproveitada) para a prática de música
acústica. Espaço mágico, em boa hora dado a descobrir aos lisboetas.
Ao centro da superfície aquática,
enquadrado por quatro imponenetes colunas, erguem-se esculturas (da autoria de
Susanne Themlitz e Paula Valente) imitando instrumentos de corda, que a
iluminação (concebida por Pedro Leston) e a reflexão da água transformam em
simetrias luminosas, vibrando em sintonia com o elemento líquido.
Carmen Cardeal e Pedro Teixeira da
Silva interpretaram, com a sensibilidade que o espaço circundante pedia, peças
de Donizetti, Debussy, Bach e Bartok, entre outros. Se a ressonância, por um
lado, dimensiona o som de maneira a dilatar o espectro vibratório, por outro,
não tem quaisquer contemplações para com o mínimo deslize dos intérpretes, o
que, na ocasião aconteceu algumas (raras) vezes – uma ligeiríssima saída de tom
nos registos mais agudos do violino ou uma corda grave da harpa a soar
desagradavelmente lassa – mas não chegou para comprometer nem a prestação dos
músicos nem o prazer da audição.
Emilio Cao, um dos expoentes da harpa
céltica e da música tradicional da Galiza, por seu lado, estava positivamente
encantado com a acústica e o ambiente do local. A sua harpa poucas vezes terá
soado tão pura e ao mesmo tempo tão majestosa, como na ocasião. Jogando, por
várias vezes, com “clusters” prolongados, conseguiu criar acordes e harmónicos
que mais se assemelhavam às emanações de um órgão celestial. Cascatas de notas
(o músico aludiu ao paralelo entre os sons da harpa e a água) que desaguaram no
dedilhar preciso (arrancou estrelas das cordas, trazendo o céu da Galiza para o
lago oculto no centro de Lisboa) dos instrumentais célticos e na suavidade
contida do canto, de “Fonte do Araño” ou “Amiga Alba e Delgada”. Silêncio
interior, reverberado nas notas infinitas da harpa e na comoção das centenas de
pessoas que, ostentando no rosto expressões de autêntico êxtase, comungaram com
a água, a luz e as intimistas liturgias tradicionais do músico galego. No
final, muitos foram aqueles que, querendo talvez continuar a ascese, subiram a
estreita escada de pedra que conduz ao terraço da construção, agora
transformado em esplanada, para ver, como se fosse a primeira vez, a linha
quebrada que une o céu aos telhados de Lisboa.
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