PÚBLICO SEGUNDA-FEIRA, 22 ABRIL 1991 >> Cultura
Festival
Intercéltico terminou
Bruxas à solta no Porto
Os portugueses Vai de Roda e os bretões Gwendal fecharam,
com chaves de ouro e prata, a semana da Bretanha. Os portugueses provaram que o
futuro é compatível com a tradição. Os bretões apostaram na fusão de estilos e
no virtuosismo. Durante quatro dias, o Porto foi a capital celta.
António Tentúgal, ficou provado, é um perfecionista.
Sábado, no espetáculo ao vivo dos Vai de Roda, nada foi deixado ao acaso, de
maneira a transformar a sala do Teatro Rivoli num palácio de sortilégios. Ainda
as pessoas se acomodavam nos respetivos lugares e já, na penumbra do palco, se
faziam ouvir os “espanta diabos”, chocalhos e assobios, a afugentar os maus
espíritos e a criar a atmosfera propícia à vinda das “bruxinhas boas”.
Tentúgal (sanfona, braguesa, “tin
whistle”, acordeão e ponteira), Bilão (braguesa, bandolim, “bodhran” e
harmónica), Tinó (acordeão), Cristina (sintetizadores), Emanuel (violino) e
Miguel Teixeira (guitarras clássica e folk, braguesa, cavaquinho e percussões)
recriaram, no recinto, um mundo mágico, encenado e narrado em histórias de
encantar e lenga-lengas que evocam memórias ancestrais perdidas nas brumas do
tempo.
Ao contrário de outros grupos que por
aqui passaram (como os Na Lua ou os próprios Gwendal), nos Vai de Roda a eletricidade
não se intromete nos assuntos do espírito, antes com ele se casa e harmoniza.
Os sintetizadores manipulados pela Cristina servem a natureza e a fonte
tradicional, arquitetando ventos e trovoadas ou compondo ressonâncias
palacianas fundadas em ritmos nascidos das entranhas da terra-mãe digita.
“Rosinha vem-te comigo” foi o tema
escolhido para abrir o concerto, embalado no enovelar da sanfona e na doçura
das palavras cantadas por Tentúgal, criando desde início, entre o público, um
espaço de silêncio maravilhado. Público que no fim se rendeu completamente ao
universo onírico dos Vai de Roda, culminado, de forma sublime, na interpretação
do tradicional transmontano “La Vitorina”. Depois, impressionaram as vozes de
todos os elementos masculinos da banda, juntas nas celebrações do “S. João” e a
conceção teatral a que todo o concerto obedeceu, de modo a tornar as canções de
“Terreiro das Bruxas”, numa espécie de livro de histórias a que não faltou
sequer o toque picaresco do erotismo popular, na narração dos amores proibidos
entre um alho-porro e uma donzela inocente… Os Vai de Roda regressaram ao palco
para um merecido “encore”, através do instrumental “Realejo sacabruxas”, de
mãos dadas com o mafarrico, que deixou no ar um aroma de flores e enxofre.
Os Gwendal, fundamentalmente um duo
constituído por Youenn Le Berre (flauta eletrificada, “tin whistle” e
gaita-de-foles”) e Robert Le Gall (violino eletrificado e guitarra elétrica),
acompanhados na ocasião por quatro músicos, nos sintetizadores, baixo, guitarra
elétrica, guitarra acústica amplificada e bateria, interpretaram temas do seu
mais recente disco “Glen River”, utilizando a receita habitual – técnica
irrepreensível de todos os executantes (com destaque para as proezas na flauta
de Le Berre), eletricidade à solta e uma mistura de estilos que abrange o jazz,
a música africana, as danças bretãs e os endiabrados “airs” e jigas irlandeses.
Houve espaço para tudo, até para solos de bateria e guitarradas que mais faziam
lembrar os Dire Straits. Oscilando entre o bom (nos temas mais tradicionais) e
o péssimo (nas “rockalhadas” de bailarico de subúrbio), os Gwendal disfarçaram
contudo os pontos fracos com as proezas técnicas dos músicos. Ainda houve quem,
ao canto da sala, se atrevesse a dançar, mas a complexidade dos compassos e dos
arranjos cedo desmotivou os atrevidos.
Feito o balanço do Festival, fica a
certeza de um sucesso organizativo, em termos artísticos e de bilheteira, e a
promessa de, para o ano, regressar ainda com mais força, se possível,
integrado, a exemplo do “Fantasporto”, na programação oficial da Câmara
Municipal. A cidade e a música só teriam a lucrar.
Uma palavra final de louvor para a
organização, a cargo da Mundo da Canção, através dos seus mentores, Avelino
Tavares e Mário Correia, impecáveis em todos os aspetos, sem esquecer Bernard
Despaumadères (gaulês de coração tripeiro), do Instituto Francês do Porto,
entidade produtora do Festival, que soube como ninguém fazer a ponte entre a
capital nortenha e a Bretanha. O mundo celta está de parabéns.
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