25/08/2016

Vários - "Lambarena"

Pop Rock

20 Abril 1994
WORLD

VÁRIOS
Lambarena
Celluloїd, import. Contraverso

BACH NEGRO

A cobra mordeu a própria cauda. O ciclo está prestes a fechar. “Lambarena” concilia o que na aparência parecia inconciliável. A fusão do mestre do barroco Johann Sebastian Bach com a música tradicional de África. Promoveu o encontro Albert Schweitzer, na cidade de Lambaréné, no Gabão. A coisa torna-se ainda mais estranha quando lemos na ficha técnica que a realização deste projeto, segundo uma ideia original de Mariella Bertheas, esteve a cargo de Pierre Akendengué e Hughes de Courson, um antigo elemento do grupo francês Malicorne. Bach e África, a matemática e a intuição, o contraponto e a repetição rítmica, polos opostos que deixaram de o ser. Até certo ponto. A receita lê-se na pequena fórmula enunciada na capa (uma embalagem cartonada em forma de cruz, no formato digipack): “Pela exaltação, a regra encontra o ritmo. Pela exaltação o ritmo encontra a regra.” Não diz muito, mas é bonito. Com a audição, faixa a faixa, o espanto instala-se.
“Lasset uns den nicht zerteilen” é um canto da região do Ogoué sobre um excerto da “Paixão segundo S. João”, com arranjo de Hughes de Courson. “Fugue sur Mayingo” desloca o conceito de fuga através de um coro feminino clássico que entoa a música de uma sociedade iniciática feminina chamada Ndjembé. Uma melodia fang do Norte do Gabão põe em diálogo um xilofone africano com um violoncelo, traçando a aproximação entre as simbologias rosacruciana e fang, numa jiga retirada da Suite nº4 em mi bemol maior para violoncelo, de Bach. Em “Bombé/Ruht wohl, ihr heilingen gebeine”, palmas rítmicas de uma cerimónia ritual Bouiti Apindji acompanham os encantamentos proferidos por um feiticeiro/orador, adaptando-se de forma incrivelmente natural a um excerto da “Paixão segundo S. João”, tocado em cravo e violino. A mesma peça do compositor alemão que, em “Herr unser herrsher”, a aliança das percussões dos convidados Naná Vasconcelos e Sami Ateba faz soar a uma “pastiche” de Jean-Michel Jarre. Já a junção do tradicional “Pepa nzac gnon ma” com o Prelúdio da partitura para violino nº3, interpretada pelo grupo Elugu Ayong e Hervé Cavellier no violino, o balafone, os tambores e o canto tradicional africano misturam-se de forma harmoniosa com a melodia clássica. Um piano apoiado num batuque faz a ponte entre um tradicional arranjado por Akendengué e o Prelúdio nº14, BWV 883.
Não param aqui as surpresas nem as ligações julgadas ilícitas. Um “Agnus Dei” em que a Missa em si BWV 232 desagua num ritmo dos pigmeus não anda longe das músicas do Quarto Mundo inventadas por Jon Hassell. De novo uma sociedade iniciática do Gabão, deste feita masculina, a Yassi, no Ogoué Médio, região onde fica situada a cidade de Lambaréné, junta o tradicional Okoukoué à Cantata 147. O barroco entrelaça-se com os ruídos da selva. Bach continua ao ritmo dos tambores, num cerimonial de invocação dos espíritos, com Naná Vasconcelos a percutir jarras e o coro numa interpretação do tema “A caça”, de Bach, a diluir-se nos sopros de um corno de antílope. As núpcias do absurdo ficam consumadas de forma um pouco patética na Cantata 147 – “Jésus, que ma joie demeure”, misturada com extratos de “Mouse biabatou”, num triângulo kitsch de bolhas da selva imaginária de Jon Hassell, murmúrios da sociedade iniciática Lissimbou e um órgão beato fora do lugar.
Para o fim deixámos o tema que por si só vale todo o disco. Uma música realmente nova e sem classificação possível, talvez a única que em “Lamabarena” faz esquecer o termo “fusão”, nasce de “Inongo/Invention à trois voix nº3 en ré majeur, BWV 789”. O arco musical ongongo (instrumento ritual da religião Bouiti) de Yvon Kassa, o órgão de Oswaldo Calo e uma voz humana (ou de um deus pagão?), gutural e ritmada, dão origem a qualquer coisa de sobrenatural, uma entidade musical autónoma que transcende a dicotomia África-Ocidente. Respiração do mundo, um estremecimento de ar, oração da selva numa capela verde de esmeraldas vegetais.
Para que conste, os oficiantes de “Lambarena” são os grupos do Gabão Okoukoué, Awana Africa, Elugu Ayong, Kokayl, Nzi Nimbu, M’Boudi, Nzimba, Mendzang M’Assove, Lissimbu e o grupo coral  Le Chant sur la Lowé, tendo a seu lado uma formação de 34 músicos europeus – coro, orquestra e solistas –, encarregados da interpretação das partituras de Bach. A aldeia global, a anulação das distâncias, aí está, para o melhor e para o pior. Sobre esta obra construída sobre o paradoxo diria o publicitário Pessoa: “Primeiro estranha-se, depois entranha-se.” (8)

5º Festival Intercéltico do Porto

Pop Rock

1994
VIA LÁCTEA


ESTÁ A TRANSFORMAR-SE NUM HÁBITO. É a boa música, os bons espíritos, o convívio com os sons e a cidade. É o festival Intercéltico do Porto que de há cinco anos para cá, na Primavera, traz a Portugal a melhor música folk da Europa. Este ano, como nos anteriores, houve bons concertos, concertos razoáveis e concertos de exceção. Estes últimos são os momentos em que a História da música tradicional coincide com a história do festival. Geniais, bons ou simplesmente talentosos instrumentistas passaram durante quatro dias pelo palco do Terço e, ao lado da programação oficial, pelos bares, jardins e outros recantos que o Porto tem para oferecer ao explorador das pedras e do tempo. Mac-Talla, escoceses e gaélicos, Déanta, irlandeses aprendizes, os manos Jacky e Patrick Mollard com Jacques Pellen, bretões com o vício do jazz, Leilia, galegas com o sangue na guelra, Amélia Muge e Toque de Caixa, apostados em dar um rosto novo à música popular portuguesa, cumpriram, cada qual a seu jeito, as músicas que dão corpo à Tradição. Mas o céu só está ao alcance dos eleitos. E os eleitos – como já o haviam sido em anteriores edições do Intercéltico, Maddy Prior, De Danann, Barabán e Chieftains – foram esta ano os Muzsikas, transilvanos de génio, e os Dervish, da Irlanda, principiantes sim, mas já com a arte e o engenho dos mestres. Em termos individuais o destaque vai para Kristen Noguès, uma harpista bretã que deu vontade de escutar divorciada do jazz, para os húngaros dos Muzsikas, Miháli Sipos, no violino, e Sandór Csoóri, no “kontra” e gaita-de-foles, e para os irlandeses dos Dervish, Liam Kelly, na flauta, Shane McAleer, no violino, e Cathy Jordan, exímia tocadora de “bodhran” e senhora de uma voz na linhagem nobre das divas da música tradicional da ilha esmeralda. Quanto a Márta Sebestyén, com problemas na voz devido a uma gravidez recente, não deixou os seus créditos por mãos alheias num solo encantatório de flauta. Dos portugueses, para além das confirmações de Amélia Muge e Celso de Carvalho, a revelação chamou-se Teresa Paiva, a jovem dos Toque de Caixa que tem tudo para se transformar numa grande intérprete na gaita-de-foles.

Cada um é como cada qual [Kristen Noguès e Déanta no Intercéltico do Porto]

PÚBLICO
cultura SEGUNDA 28 MARÇO 1994

Bretões e irlandeses juntos no Intercéltico

Cada um é como cada qual

Exercícios de academismo vindos da Bretanha e uma promessa de futuro trazida por um grupo de mulheres da Irlanda marcaram o terceiro dia do Intercéltico que desde a passada quinta-feira tem vindo a decorrer na cidade do Porto. Kristen Noguès, bretã, e Deirdre Havlin, irlandesa, foram as revelações.

As mulheres continuam a dar cartas na quinta edição do festival Intercéltico, ou não fosse a edição deste ano dedicada à música tradicional no feminino. Sábado, com o cinema do Terço a abarrotar, coube a Kristen Noguès, uma veterana da harpa céltica mas praticamente desconhecida entre nós, salvar um concerto que teve mais a ver com o jazz do que com a folk, céltica ou não. O que até não seria grave se o trio de músicos acompanhantes, os famosos irmãos Molard, dos Gwerz, e o guitarrista Jacques Pellen não tivessem incorrido no pecado mortal do academismo, o que veio a acontecer e que, seja no jazz, seja na tradicional, costuma por regra ser fatal.
            Sozinha na harpa deu gosto ouvir Kristen Noguès, o modo como interligou os acordes da tradição com desvios pela contemporaneidade e a improvisação. Jacky e Patrick Molard e Jacques Pellen não a souberam acompanhar. Encharcada numa complexidade formal que deu pouco espaço à espontaneidade, cedo a música começou a soar demasiado pesada aos ouvidos de parte da assistência que preferiu seguir para o conforto do bar. Jacky deu a ideia de estar enfiado num espartilho. Patrick atingiu os limites da estridência na “cornemuse” e deu razão àqueles para quem as “uillean pipes” deveriam ser vedadas a todos à exceção dos irlandeses. Pellen pertence a outro universo e pareceu sempre um intruso. A boa música não se compadece com virtuosismos vazios de força e sentimento. Que o digam os Muzsikas e a lição que deram na véspera. No “encore” chegou a ser penoso assistir aos esforços e caretas de desaprovação e desespero da harpista, num afã de mudança de chaves a tentar, sem sucesso, encontrar o tom certo que afinasse com o gemido perfeitamente dispensável do bordão da gaita de Patrick Molard. Enfim, receberam muitas palmas...
            Da Irlanda, as Déanta, cinco mulheres contra as quais nada pôde o único homem da banda, Eóghan O’Brien, confirmaram que, por ora, são uma boa promessa e que o futuro da música tradicional da ilha deverá contra com elas. Têm para já em Deirdre Havlin uma boa flautista e tocadora de “tin whistle” (inovadora a forma fora dos cânones habituais como executa os “reels” e “airs” neste instrumento) e uma boa voz – que foi amaciando e ganhando segurança ao longo do concerto – na pessoa de Mary Dillon. Bem dispostos, eficazes quanto baste, tendo em Clódagh Warnock uma excelente e bem-humorada porta-voz, os Déanta foram bons embaixadores do seu país. Não fizeram grandes avarias nem tal se lhes pede por enquanto.
            Depois, foi rumar até um recanto dos jardins do hotel acastelado onde os Déanta se juntaram aos seus vizinhos de Sligo, Dervish, e a Jacky Molard para uma “jam session” de álcool e o mais que geralmente acontece quando vários irlandeses se juntam em redor de uma mesa com os instrumentos e, neste caso, dezenas de latas de cerveja em cima.
            Tiveram pouco tempo para isso. A fação ibérica, comandada por Amélia Muge e Uxia, entrou em disputa e a matar, com o adufe e a pandeireta a abafarem tudo o que fosse subtileza, acabando a madrugada em decadência acelerada do popular ao popularucho mais chão, perante o gaúdio dos irlandeses que devem ter ficado impressionados com o proverbial tato nacional. Com Jacky Molard enchouriçado e muito bem bebido no meio do arraial lusitano e em processo acelerado de regressão à pré-história do violino, a festa foi portuguesa até ao fim. Nós cá somos assim! É para que vejam!

Demónios da Transilvânia [Muzsikas e Leilia no Intercéltico]

PÚBLICO
cultura DOMINGO 27 MARÇO 1994

Intercéltico, no Porto

Demónios da Transilvânia

Concertos como o dos Muzsikas no segundo dia do Intercéltico do Porto não se descrevem. Quem lá esteve assistiu à viragem de uma página dourada na história do festival. Quem não esteve deverá lamentar-se até ao fim dos seus dias. Na primeira parte, as Leilia mostraram o avanço que nisto da música tradicional a Galiza leva sobre nós.

Pois, o impossível aconteceu. Até cerca das onze horas de sexta-feira o concerto do ano passado dos Chieftains neste mesmo festival parecia constituir uma barreira intransponível, a bitola de qualidade pela qual se poderiam aferir as atuações dos outros, miseráveis mortais. Os Muzsikas deitaram por terra esta teoria.
            Antes dos húngaros vieram da Galiza as Leilia dizer que é possível obrar com o passado de uma terra. Quando o amor celebra núpcias alquímicas com o trabalho. Seis mulheres vestidas a rigor com trajes tradicionais, armadas com pandeiretas e o canto coletivo de quem se entregou à vida naquilo que esta tem de mais autêntico e visceral, ritualizaram no Cinema do Terço a re-ligação, sob a forma de muiñeiras, mazurkas e jotas, a uma matriz ouro, verde e sangue – a “Galicia”, de Maeloc, Rosalia e Álvaro Cunqueiro.
            Cantaram como o crepitar de uma fogueira ou os sussurros de um rio, fazendo acompanhar as vozes pelo batimento sincronizado nas pandeiretas ou em instrumentos do quotidiano – uma sertã, uma lata de pimentos, enxadas percutidas com pedras. Mulheres de corpo nítido, reais como árvores, ou rochas ou aves – mulheres só – que ora coravam de timidez, ora deslizavam pelo palco conversando entre si, trocando de posições e sorrisos, alternando o canto com a vontade de explicar a sua pátria e ao mesmo tempo de encurtar o fosso que separa duas culturas – a protuguesa e a galega – que nasceram irmãs.
            Depois, bem, depois é que foram elas, ou melhor, eles. Quatro demónios com forma humana desceram das montanhas dos Cárpatos trazendo consigo um vento de loucura que varreu por completo a música que ficara para trás. Dániel Hámar, Miháli Sipos, Péter Heri e Sándor Csoóri – os Muzsikas – deixaram de rastos uma assistência literalmente siderada que no final saiu do recinto em estado de choque. Torna-se impossível descrever o que se passou em palco. Os Muzsikas não atuam no sentido vulgar do termo. Eles vivem, deixam-se arrastar enquanto tocam pelas cadências por vezes infernais da música, dos próprios ritmos interiores que brotam da alma dos Cárpatos, da Transilvânia e da Moldávia assombradas por seres e sons do outro mundo.
            Miháli Sipos é um violinista assombroso. Quando a improvisação o levou para as regiões a que só ouvidos com coração conseguem aceder, era ver no seu rosto um sorriso de felicidade, no transe de quem se abandona aos imperativos do movimento puro. Por vezes o violino não resistia uma corda desistia, separando-se do corpo de madeira. Sipos prosseguia, ainda com maior velocidade, fúria, ternura. Num dos temas, “Vonat” (“o comboio”), ele, juntamente com um prodigioso Sándor Csoóri na gaita-de-foles húngara – “ainda há pouco tempo era uma cabra”, dizia um dos músicos, enquanto Sándor mostrava o fole coberto de pelos, afrastando a gaita pelo chão como se esta fosse ainda um animal vivo – e Péter Éri na harmónica, dispararam em aceleração. Os ânimos dos presentes entraram em combustão espontânea com a entrada em cena do casal de bailarinos, Ildiko Tóth e Zoltan Farkas, corpos de alegria, danças de paixão. Ainda mais alucinante – e estou prestes a esgotar os adjetivos – foi a corrida de Sipos com o “gardon” (um falso violoncelo de formas angulosas utilizado como istrumento de percussão) de Daniel Hámar. Quem, na assistência, os conseguiu acompanhar, chegou à meta exausto.
            No meio deste frenesim coletivo, a cantora por quem todos ansiavam, Márta Sebestyen – e é quase escandalosa esta afirmação – pouco faltou para passar despercebida. Cantou apenas por três vezes, numa delas alternando a vocalização com a execução numa “flauta mágica” com apenas um buraco na extremidade, além da embocadura, e noutra tocando “tin whistle” num diálogo com o bouzouki de Péter Eri, de colorações “irlandesas”. Com o público em delírio aplaudindo de pé, os sete artistas regressaram ao palco para um “encore” em que a própria Márta acabou a dançar perante um público nesta altura já com a cabeça a andar à roda.
            Por fim, algumas linhas de descanso: os Muzsikas acabaram de lançar novo álbum, “Szóla A Kakas Már”, à semelhança do anterior “Máramaros”, dedicado à música dos judeus da Transilvânia. De tarde, no cinema Jardim, o jornalista Xoán Manuel Estévez, da publicação galega “A Nosa Terra” proferiu uma conferência sobre a música tradicional e popular da Galiza. De madrugada andaram fantasmas à solta pelo castelo onde se encontra alojada a comitiva do festival.

A cidade das mulheres [5º Festival Intercéltico do Porto]

Pop Rock

16 FEVEREIRO 1994

A CIDADE DAS MULHERES

Márta Sebestyen com os Muzsikas, Mac-Talla, Déanta, Dervish, Kristen Nogues com os irmãos Mollard e Jacques Pellen, Leilia, Amélia Muge e Toque de Caixa. Oito nomes para o Festival Intercéltico do Porto, na sua quinta edição. Com uma orientação temática: as mulheres na música tradicional. E algumas novidades: um bar com música ao vivo, espaços verdes, até uma capela onde poderão acontecer surpresas.
Um espaço diferente acolhe na Primavera na cidade do Porto o espírito celta. Este ano o Intercéltico mudou de poiso. Do Rivoli passou para o Cinema do Terço, uma sala bem mais confortável e acolhedora que a anterior. A 24, 25, 26 e 27 de Março, de quinta a domingo, vão passar pelo Porto grandes senhoras da música tradicional. O último dia é especial, integrando-se nas comemorações dos 25 anos de MC – Mundo da Canção que, quase nem vale a pena dizê-lo, é a entidade organizadora do Intercéltico, com o apoio forte da Câmara Municipal.
Amélia Muge abre o festival. Com José Martins, Luís Sá Pessoa, convidados surpresas e um reportório especialmente preparado para a ocasião. Fecha a primeira noite a superbanda escocesa da editora Temple, Mac-Talla: duas damas, Christine Primrose e Eilidh MacKenzie, e um cavalheiro, Arthur Cormack, do canto gaélico, mais a harpista Alison Kinnaird e o teclista, ex-Runrig, Blair Douglas.
Sexta-feira começa sob os auspícios da música galega, com o coro Leilia, que os lisboetas já conhecem do projeto Hent-San Jakez que em 1993 passou pela Aula Magna. Márta Sebestyen, rainha da música tradicional da Hungria, a grande estrela da noite e uma das maiores do festival, atua a seguir. Com a sua banda Muzsikas e um par de dançarinos.
Noite de exceção, a de sábado. Primeiro com um dos momentos decerto mais altos do Intercéltico: da Bretanha, a harpa de Kristen Norgue, que virá acompanhada por um trio de mestres constituído pelos irmãos Mollard, Jacky, o violinista, Patrick, o gaiteiro, e Jacques Pellen, autor de "Celtic Procession”, um exercício de jazz colorido com referências célticas, gravado recentemente para a Silex. A seguir, os Déanta, uma das últimas revelações do inesgotável filão da música irlandesa.
Para o dia de encerramento do Intercéltico, o tal das comemorações, foram convidados os portugueses Toque de Caixa, ainda mal refeitos da emoções do seu álbum de estreia, “Histórias do Som”, e, em final de festejos que se prevê apoteótico, mais irlandeses da nova geração, os Dervish, com uma cantora que começa a dar brado, Cathy Jordan, e o primeiro álbum acabado de chegar a Portugal, “Harmony Hill”, cuja crítica poderá ser lida na página de World deste mesmo suplemento.
O resto, que não é pouco e desempenha um papel determinante no ambiente único que a todos envolve no Intercéltico, inclui um ciclo de cinema Intercéltico, a realizar no cinema Jardim nos dias 17, 18, 19, 22 e 23 de Março, os dois últimos dedicados a Maureen O’Hara. As chamadas “conversas intercélticas” terão lugar na mesma sala, subordinadas aos temas “A música tradicional e popular na Galiza” (dia 25) e “A herança céltica na música portuguesa” (dia 26). A animação musical, que é o mesmo que dizer música ao vivo, copos (eufemisticamente denominados “alimentos pogueanos”...) e conversa vão dar um gosto ainda mais especial ao festival. De 24 a 26, no cinema Jardim, a partir das 23h e prolongando-se pela “madrugada céltica” dentro, um grupo de irlandeses e portugueses tocará boa música para quem quiser impregnar-se do espírito (e dos espíritos) da causa. Mais forte ainda é o que se está a preparar para um “convívio intercéltico” em estilo de “regabofe celta”. No Cinema do Terço e no jardim circundante. Se “os nevoeiros e as chuvas célticas o não impedirem”, avisa a organização. Vídeos, artesanato (pelo galego Pablo Leal, que criou em latão a insígnia do Intercéltico) e a indispensável feira do disco completam o leque de atividades paralelas.
Agora é entrar em estágio até a festa dos celtas que é de todos começar.

21/08/2016

Archetype - Archetype



Pop Rock

1994
WORLD

AS CORDAS DE PLATÃO

ARCHETYPE
Archetype
Escalibur, distri. Etnia


“Arquétipo” é sinónimo de “modelo”, no sentido platónico de “forma”. A mesma palavra, num dicionário de música da Bretanha, significa uma formação específica de 16 mãos, oito paus munidos de pelos de crina (ou seja, os arcos) em contacto com 32 cordas tensas, em grupos de quatro, sobre caixas de madeira com maior ou menos ventre (ou seja, o violino, o violoncelo e o contrabaixo, cada um com quatro cordas). Os Archetype são, completamente de acordo com estes enunciados, um octeto de cordas bretão (num total de 32 mãos...) que procura alargar os horizontes musicais dos instrumentos de corda mencionados, no contexto da música tradicional. Opção comparável à dos Une Anche Passe (crítica publicada, neste suplemento, na semana passada) em relação aos instrumentos de sopro com palheta. Com uma diferença fundamental. Enquanto estes integram no seu estilo a improvisação e liberdades formais que têm paralelo no “free jazz”, os Archetype, pelo contrário, privilegiam a complexidade estrutural e o contraponto devidamente anotados na pauta. A composição, em contraste com a improvisação (não importa discutir aqui se a improvisação não é afinal composição espontânea, sem mediação...), dentro de um espírito próprio dos grupos de música de câmara. Entre os oito instrumentistas lá está Jacky Molard, violinista dos Gwerz, um nome cada vez mais determinante na nova música tradicional da Bretanha.
Integram a música dos Archetype gavotas, polkas, “an dros” e marchas bretãs, um genuíno “hora” da Bulgária (mais um sucedâneo, “Le loup des Carpates”) e um “medley” de “jigs” e “reels” irlandeses (onde, por sinal, os Archetype se mostram um pouco fora de água), um dos quais compostos por Frankie Gavin, dos De Danann. Música para ouvir confortavelmente, de maneira a propiciar uma melhor decifração dos pormenores, de construção minuciosa, quase matemática. Certos temas evocam de forma vaga “momentos da corda” dos Gentle Giant (“Polka-plinn”), Penguin Cafe Orchestra (“Oust et lié”, escrito em parte por Jean Baron), Michael Nyman (um excecional e inovador “Aperitif-concert”) e Malicorne (“Andy’s waltz”). Não vale a pena procurar neste disco quaisquer incitamentos à dança, muito menos motivos para libações de qualquer espécie. O prazer é de outro tipo, dirigido ao cérebro (que também sabe sentir). O mesmo prazer que pode ser obtido com a audição de uma peça do barroco ou a contemplação das “ideias” – as tais formas, modelos ou arquétipos de que falava Platão. (8)

Em Público - Amélia Muge



Pop Rock

26 JANEIRO 1994
EM PÚBLICO

AMÉLIA MUGE *

Aguarda-se com grande expetativa o seu próximo álbum. José Martins vai, como no anterior, tomar as rédeas do poder ou haverá, desta vez, maior controlo da sua parte?
Nunca tenho a sensação de que estou a dirigir as operações. Até mesmo quando componho, sinto sempre que há interferências, em concreto dos próprios materiais que estão em jogo. São eles que se impõem e me arrastam. O novo disco, é evidente, reflete muito mais um diálogo e a evolução natural desse diálogo. Tenho muitas coisas que começaram por ser tocadas de uma certa maneira e que, neste momento, já estão a ser tocadas de outra. É um disco que reflete uma caminhada, bastante mais do que o outro.

Quais são as etapas principais dessa caminhada?
O papel individual de cada um no coletivo que representa este disco [José Martins, Luís Sá-Pessoa] está mais bem definido, sentimo-nos os três melhores na nossa individualidade. O novo disco vai ter coisas compostas há muitos anos, em Moçambique, as coisas novas misturam-se com as antigas. Um dos grandes defeitos, mais do que virtudes, de uma pessoa como eu – que está a editar depois de muitos anos a compor – é esta de dizer: “Será que vou conseguir meter nesta leva aquela e aquela canção que ficaram de fora e que eu gostava de aproveitar?” Estou sempre insatisfeita porque tenho imenso material e, muitas vezes, a seleção continua a não depender de mim. De repente, ponho qualquer coisa cá para fora e o interesse das pessoas é tão grande que a canção acaba por se impor, sem que haja uma seleção criteriosa minha. Mas isso é bom.

Em que estado se encontra a sua ligação com a música tradicional? Está já confirmada a sua participação no festival Intercéltico deste ano...
Não sei muito bem o que é a música tradicional. Sei que não tem a ver com formalismos mas mais com atitudes, com aproximações que ultrapassam as próprias morfologias musicais. Para mim, a importância do Intercéltico tem exatamente a ver com isto: por um lado, com esse espírito aberto que nós, ao longo da história, nos habituámos a encontrar nos celtas, embora depois existam certos povos, como a Irlanda, que acabaram por transformar essa música num símbolo de resistência e, aí, ela acaba por cristalizar em termos formais. Mas, regra geral, o espírito da música tradicional é de grande abertura e troca de experiências. Há muita coisa que as pessoas não se habituaram a ver dentro do tradicional, como sejam novos temas, novas sonoridades, novos métodos de se trabalhar, muita coisa que irá fazer parte, no futuro, do património tradicional.

Até que ponto o seu estilo vocal incorpora elementos e técnicas do canto tradicional?
Mais, se calhar, que o canto tradicional, o canto das pessoas que cantam. Por exemplo, nas Janeiras, em que se verifica a prática de cantar em conjunto, de estarmos ao lado a ouvir a voz do outro, sem ser através do disco nem da rádio. A ideia de coro é fundamental para o canto individual. Quando ouço a voz de um homem ou de uma mulher a cantar nas Janeiras, não posso deixar de ver, por trás, um avô que ensinou aquilo àquela pessoa, um passado que é familiar antes de ser social, do testemunho de estar vivo que passa pela canção.

É essa sua sensibilidade ao canto comunitário que está na base da formação do projeto de vozes femininas AGrupa?
Pois, que eu não queria que fosse o “meu” projeto. Acho que só pode haver um projeto quando há materiais, coisas concretas a partir das quais se pode trabalhar. Isso é uma coisa que eu já tinha. Tenho certas coisas que nunca cantarei sozinha, que têm a ver com um coletivo de vozes. Por outro lado, não sei se por estar há demasiado tempo desligada disso que é [... ilegível...]. A primeira vez que voltei a sentir de novo isso foi quando estava em casa de uma amiga, na Graça, e ouvi pessoas a ensaiarem as marchas populares de Lisboa. Afinal, há gente que canta! Isto para mim é fundamental. Por outro lado, a própria prática de cantar a várias vozes, talvez porque componho muito com a voz, é que me permite chegar aos instrumentos de uma outra maneira. Há, pois, também questões de aprendizagem. Se os processos são ricos, dão produtos ricos.

Vão ser só a Amélia Muge, a Margarida Antunes e a Cristina Antunes?
Para já, somos o núcleo duro. Gostaríamos muito de encontrar outras pessoas na mesma onda. Por exemplo, pessoas como a Filipa Pais, a Minela, a Teresa Salgueiro ou a Maria João. Inclusive, já falámos. Na teoria, tanto a João como a Filipa disseram que sim. Só que têm surgido problemas de ordem prática... Enquanto eu, a Cristina e a Guida nos encontramos uma vez por semana, não só para cantarmos como para fazermos exercícios respiratórios, vocais... Para já, estamos as três a pensar propor um trabalho de conjunto para Lisboa, Capital da Cultura, que seria um espetáculo ao vivo. Já temos um reportório de seis canções, compostas por mim, com letras minhas e duas da Hélia Correia. Tencionamos também ir buscar coisas do Lopes Graça, do Zeca, não serão só originais.

Passemos a uma questão delicada, relativa à UPAV e ao modo como foi distribuído e promovido o seu álbum de estreia, “Múgica”, que desapareceu do mercado depois de uma primeira edição esgotada em poucos dias...
O disco, de que foi feita apenas uma primeira edição de 2000 exemplares, está esgotadíssimo, é verdade. Na altura em que se estava a pensar fazer uma segunda edição, surgiram os problemas da suspensão de toda a atividade editorial da UPAV. Os dois mil exemplares editados são, de facto, um número muito baixo, que teve a ver com contenção de despesas e com uma sondagem de mercado. Mas a partir do momento em que o disco esgotou... E quem vendeu mais foram os armazéns, o Serafim, da Movieplay (ver página 4 deste suplemento); e, se vendeu, foi porque as discotecas o procuraram...

Não se sente frustrada por o disco ter chegado a tão poucas pessoas?
Há sempre a hipótese de nos tornarmos profissionais da frustração, o que, neste país, é muito comum. Às vezes, penso até que as pessoas têm um certo gosto em estar frustradas por acharem que [...ilegível...] apostado na gravação quando nenhuma editora quis pegar no disco; como não elimina a importância que tudo isso teve para mim no determinar num certo número de opções que eu fui tomando, que me permitiram, no fundo, fazer aquilo que quero que é estar e trabalhar mais na música. Considero que o processo em si, da feitura do disco, foi extremamente positivo. Sobre o lado que tem mais a ver com a venda, fica, apesar de tudo, em aberto a hipótese, no caso de o próximo disco vender bem, de ser feita a reedição do primeiro. Vamos até imaginar que tinha sido feita uma edição de 10 mil exemplares e tivesse apenas vendido mil. Nesse caso, estaria muito pior do que estou neste momento, em que sei que não há um único disco cá fora.

Hoje, que o seu nome se tornou já mais conhecido, mudou alguma coisa na atitude das editoras em relação ao si? O próximo disco já tem editora?
Em relação ao novo álbum, estou ainda na fase de seleção dos temas. Tenho um bocado de dificuldade em me situar em relação a isso. Para mim, as editoras não são um todo homogéneo. Estou a seguir com o maior interesse o atual movimento das pequenas editoras independentes. Gosto pouco da palavra coerência, se coerência tem a ver com qualquer coisa de muito certinho, isto é assim porque liga com aquilo. Uma das coisas que me dá enorme gozo é encontrar ligações insuspeitadas. E até sou capaz de chegar à conclusão de que tenho muito a ver com uma multinacional...

Será que certas resistências postas pela indústria à sua música se prendem com a sua intransigência, com a exigência de imposição de regras próprias?
Mas se também a indústria é difícil para as pessoas! Aí, estamos iguais! É preciso ter muita força para encontrar a voz interior que toda a gente deve ter. E se não se tem é porque estamos numa época onde se entende a comunicação apenas pelo lado de fora. Temos de comunicar e de pactuar com tanta coisa que, a certa altura, fica pouco espaço para comunicarmos connosco mesmos. E isso eu considero essencial. Mas não acho que seja uma pessoa intransigente, pelo contrário. Considero sempre qualquer proposta, seja ela qual for, a mais maluca ou que aparentemente não tenha nada a ver comigo, como um desafio.


* Cantora e compositora. Prepara o lançamento do projeto de vozes femininas AGrupa  e de um novo álbum a solo, cujo reportório será apresentado parcialmente nos três espetáculos ao vivo de amanhã, sexta e sábado no Instituto Franco-Português.