12
JULHO 2003
JAZZ
DISCOS
O “free”
foi grito, libertação, revolta. Mas também descoberta, encontro e ousadia.
Civilizações antigas, criaturas negras e invocações povoam a obra de Cherry,
Sharrock, Lowe e Grimes, agora em quatro reedições.
A
civilização dos anti-civilizados
“’Mu’ First Part” inaugurou, em 1969, o
catálogo da editora francesa Byg, preferencialmente voltada para o “free jazz”,
série que continua a ser objeto de sucessivas reedições remasterizadas e em
formato de miniaturas em cartão, agora sob a designação Sunspots. É seu autor o
trompetista e multi-instrumentista Don Cherry, falecido em 1995, ex-colaborador
de Ornette Coleman e viajante infatigável dos locais e folclores planetários.
Em
“’Mu’ First Part” – dueto com o baterista Ed Blackwell, associação que
prosseguiria em álbuns como “El Corazon” ou no coletivo Old and New Dreams – a
música segue todo um programa de intenções e associações simbólicas
explicitadas em forma de expressões como “The silent life”, “Vibrations”, “Harmony”,
“Abstract sound” ou, ainda mais representativos do espírito da época, que
Cherry assimilou como ninguém, “Love” e “Wisdom”. Títulos como “Total
vibration”, “Sun of the East” ou “Terrestrial beings” sugerem ligações, não
descabidas, ao “outer space” de Sun Ra, com a diferença de que enquanto o
“teclista de Saturno” viajava pelos confins da galáxia, Cherry mergulha a sua
música nas raízes africanas, nos rituais mágicos da terra (não por acaso,
aparece como símbolo gráfico, não um astro, mas uma árvore) e numa visão
panteísta do jazz. Ed Blackwell alterna um discurso mais livre com
repetitivismos, fragmentos de batuque e guizos de “griot”, enquanto o
trompetista introduz no formulário “free” acentos de flauta étnica, podendo o
trompete divagar por notas mais “espanholadas” sem cair na redundância. Álbum
representativo de um tempo de descobertas e recusas mas também de
convergências, entre o jazz e a música do mundo, real ou mitológico, como a
antiga civilização de Mu.
Ainda
na Sunspots, ressurge um disco há longo tempo ausente do mercado, “Monkey –
Pockie – Boo” (1970), do guitarrista Sonny Sharrock, com Linda Sharrock (voz),
Beb Guérin (baixo) e Jacques Thollot (bateria). Sonoridades marcada por
“drones” e saturações tímbricas levadas ao limite, gritos e lamentos de verdadeiro
“gestalt” vocal (especialidade na qual a mulher do guitarrista se mostra
particularmente convincente, compondo uma versão “naif” de Diamanda Galas)
impressionam quer pela crueza quer pela violência, podendo os 17 minutos de
“27th day” ser experiência difícil de ultrapassar. O massacre prossegue em
“Soon” para se resolver no título-tema sob a forma de cântico ritual. Tudo se
organizaria anos mais tarde em “Guitar”, onde os “blues”, apesar da capa de
“noise” envolvente, mostrariam estar afinal presentes na guitarra de Sharrock.
Da sua mulher, Linda, desconhece-se se terá ou não recebido assistência médica após
tão inflamado desempenho.
Em
nome de John Coltrane, “In Trane’s name”, é como o saxofonista tenor Frank Lowe
dá início a mais um périplo de “screaming” pelas regiões, não tão isentas de
margens como isso, do “free”, aqui com data de 1973 e o título “Black Beings”.
Como Coltrane, este embora no sentido da ascese, Lowe é um saxofonista do
paroxismo, da exploração intensiva dos registos extremos do instrumento e da
emoção. Pode apontar-se a esta música em que cada nota pega fogo, a ignorância
do pequeno detalhe que se revela no silêncio ou da “nuance” interior. Frank
Lowe é o animal que literalmente ruge no tenor, karateka do jazz com liberdade
de tomar a forma da criatura que melhor se adequa ao seu gesto. Joseph Jarman, dos
Art Ensemble of Chicago (nos saxofones alto e soprano), William Parker (contrabaixo),
Rashid Sinan (bateria) e “The Wizard” (violino) são os outros participantes
desta obra emblemática de uma atitude bem expressa na dedicatória “aos músicos que
tocam e oferecem toda sua fé e poder”.
Henry
Grimes põe toda a sua fé e poder na forma como toca contrabaixo em “The Call”,
em trio com Perry Robinson (clarinete) e Tom Price (bateria). “Você nunca ouviu
sons como estes na sua vida”, arrisca o “slogan” da capa desta edição de 1965 e
a verdade é que, neste caso, o “free” não se esgota no disparo na horizontal
mas numa verticalidade e exploração de alto risco pelos meandros da escuta
interior que dispensam conotações com “estilo” ou “género”. “A chamada” faz-se
aos demónios e anjos primordiais, de acordo com uma dinâmica de pesquisa que
recusa fórmulas e sinalizações estáticas. E se Grimes tem a segurança de quem
escora a escavação é Robinson quem extrai da rocha os minerais mais valiosos.
Há obstáculos a vencer para quem os queira acompanhar na invocação. E o perigo
de queda no abismo.
Don Cherry
“Mu”
First Part
Sunspots
7 | 10
Sonny Sharrock
Monkey-Pockie-Boo
Sunspots
7 | 10
Frank Lowe
Black
Beings
ESP
7 | 10
Henry Grimes Trio
The
Call
ESP
8 | 10
Todos distri. Trem Azul
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