Y 1|AGOSTO|2003
capa|música
Kraftwerk
No tour da pop eletrónica
São os recordistas no “tour” da pop eletrónica. Mas “Tour de
France Soundtracks” escapa à justa do carro-vassoura. Os homens-máquina
regressaram.
O
“Tour de France” terminou há dias com a 5ª vitória consecutiva do ciclista
norte-americano Lance Armstrong. Os germânicos Kraftwerk não podiam desperdiçar
a oportunidade para, uma vez mais, celebrarem o triunfo do homem-máquina.
Adeptos incondicionais do ciclismo, sabendo-se que
um dos seus membros fundadores, Ralf Hütter, é mesmo colecionador e perito em
bicicletas, encontraram na simbiose ciclista/bicicleta o perfeito exemplo dessa
identidade entre o biológico e o orgânico que laboriosamente têm vindo a
construir desde que, em 1974, puseram a rolar as suas roldanas embebidas em
ácido desoxirrinbonucleico em “Autobahn” – auto-estrada musical cujas placas de
sinalização apontariam para uma das principais direções que conduziria a pop
até ao presente.
“Tour de France, Soundtracks” (disponível a 4 de
Agosto), composto por originais e versões do primeiro “Tour de France”, apura o
conceito de homem-máquina, cujo desenvolvimento se processou através de fases
de montagem prévias – “RadioActivity”, “Trans Europe Express”, “The
Man-Machine”, “Computer World” e “Electric Cafe”. Os títulos do novo disco
alternam entre a análise do humano (“Vitamin”, “Elektro Kardiogramm”,
“Regeneration”), da máquina (“Aerodynamik”, “Titanium”) e das “performances”
obtidas da fusão entre ambos (as três “étapes” do “tour”, “Chrono”). A entidade
mutante unificada é observada à lupa em “La forme”.
Homem-máquina, “the man-machine”, um novo corpo
originado da fusão entre os neurónios e o “chip” (o “bio-chip”). Carne,
plástico e metal. Pensa-se em filmes como “A Mosca” e “Crash”, de Cronenberg,
pelo lado humano e existencialista, em “Tron” ou em “Matrix”, na perspetiva da
inteligência artificial.
atenção: obras. Mas se a tecnologia
parece ocupar o lugar central na obra demiúrgica dos quatro de Düsseldorf, é
interessante verificar até que ponto os seus dois principais operadores, Ralf
Hütter e Florian Schneider, optaram desde o início por uma abordagem artesanal,
ou minimalista, do som eletrónico. Ao invés de complexas produções, os
Kraftwerk preferiram a mesma diretiva do “less is more” posta em prática pelos
Can, na sua “trip” de transe universal – uma concentração implosiva dos meios
tecnológicos postos ao serviço da máxima simplicidade musical.
Antes, porém, do andróide e do robô, os Kraftwerk
rodearam-se de quinquilharia, fios, lâmpadas e metal ferrugento, para construir
o homem de lata, o autómato das fitas de ficção científica de série Z.
Em “Tonefloat” (1970), que constitui a estreia
discográfica da dupla, ainda sob a designação Organisation, a música é uma
cacofonia com pretensões psicadélicas de sons eletroacústicos diretamente
inspirados em Stockhausen. “Kraftwerk” (1970) e “Kraftwerk 2” (1972), com os
pinos de sinalização na capa, deram início às obras. O som de guindastes e
escavadoras, ferro em brasa, cimento e martelo-pilão. Metal já a chocar contra
o metal, a fazer faísca e a exigir máscaras de proteção. Obras violentas, mais
próximas do rock industrial e da música concreta do que da pop ou do rock,
permanecem como exemplos do melhor “krautrock” da região industrial da Alemanha,
a par dos Cluster e dos Neu!. Com uma ponta de humor: Julian Cope, no seu livro
“Krautrocksampler” define uma das faixas de “Kraftwerk” como “os Stooges na
Toys’R’us”.
“Ralf and Florian” (1973), mostra na contracapa
uma foto da dupla rodeada de néons e instrumentos musicais. Álbum de transição,
inclui uma “clusteriana” música de baile e uma sinfonia ambiental de cristais e
ananases, “Ananas Symphonie”, que é provavelmente o refresco de ácidos mais
refrescante a alucinogénico que o “Krautrock” destilou. A obra máxima seria
editada no ano seguinte e tem por título “Autobahn”, “Auto-Estrada”. Depois
dela, a pop mudou. O longo tema de abertura é a banda sonora, via auto-rádio
sintonizado nas estrelas, de uma viagem de automóvel pela auto-estrada. No entanto,
cuidado com as cabeças: as auto-estradas alemãs permitem velocidades que as
portuguesas nem imaginam. O “wahn wahn wahn” do refrão soa como o “Fun fun fun”
dos Beach Boys, fonte inesgotável de inspiração, num álbum de tração às quatro
rodas que pôs os sintetizadores a cantar e os “tops” em polvorosa. As duas
“Kometenmelodies” finais desenham um arco-íris de beleza estonteante no espaço
sideral. Antes de darem ao pedal, os Kraftwerk lançavam-se em quinta velocidade
num Mercedes rumo ao futuro. Mas foram os álbuns seguintes, “Radio-Activity”
(1975), “Trans Europe Express” (1977), “The Man-Machine” (1978) e “Computer
World” (1981) que transpuseram para a música a noção de miniaturização e máxima
potência que caracterizou a indústria informática no último quarto de século e,
consequentemente, a música eletrónica, sempre dependente dos avanços da
tecnologia. Os Kraftwerk foram o “Pocket calculator” da pop eletrónica do
século XX, resta saber se lhes caberá ainda algum papel no século que agora se
inicia.
ohm sweet ohm. Entremos porém, com a
devida autorização, no estúdio Kling Klang, onde os germânicos têm arrumados os
seus fornos alquímicos de raios laser. Há esquemas e fórmulas colados nas
paredes. Não é só a ligação dos nervos do homem a circuitos elétricos
artificiais que interessava à dupla alemã. O cérebro pensa e ordena: viagem,
comunicação, forma e substância, energia, transmissão/receção. “You are the
transmitter, I am the antenna” é um dos “slogans”, tão divertidos como
acutilantes, proclamados no álbum “Radio-Activity” (1975). E “when airwaves
swing, distant voices sing”. “Radioland”, “Airwaves”, “The voice of energy”,
“Radio stars”, “Uranium” e esse fabuloso trocadilho que condensa a fusão entre
a espiritualidade tradicional e a energia das novas divindades-eletrões: “Ohm
sweet ohm”. Dentro de um contador Geiger, fervilha um microuniverso de
fantasias hollywoodescas. O mundo de máquinas dos Kraftwerk é uma Dysneylândia
quântica de Pinóquios que se divertem a entrelaçar os fios de força de um campo
unificado. A música é simétrica, mas os seus demiurgos apresentam-na como
número de circo.
Se “Radio-Activity” ilustra a propagação da radioatividade
e, deste modo, prepara a mutação, física e psicológica da Europa, “Trans-Europe
Express” é a viagem de comboio que modificou o imaginário pop do Velho
Continente. Um dos passageiros chamava-se David Bowie e saltou em andamento a
tempo de gravar a “trilogia de Berlim” – “Low, “Heroes” (o tema “V-2 Schneider”
é uma dedicatória a Florian Schneider) e “Lodger”. Sem este álbum seminal, já
se sabe, nem a pop eletrónica nem a música de dança seriam o que são hoje.
Sobretudo a tecno, a “house” e o eletro viciaram-se na batida totalitária – mas
tão romântica – de “Europe endless”, “Metal on metal”, “Franz Schubert” e “Endless”.
A repetição, a produção em série, a viagem circular sem princípio nem fim (o
logótipo de “Europe endless” é um círculo fechado em forma de pauta). O
super-homem nietzscheano espreitava na esquina. “Radio-Activity” e
“Trans-Europe Express” retratam as novas formas de comunicação (“Electric Cafe”
reconheceria a sua falência, como nessa trágica interrupção telefónica que é
“The telephone call”). Outro filme, “Ao Correr do Tempo”, de Wim Wenders, não
filma outra coisa. O digital vinha a caminho.
“The Man-Machine” é o emblema. Os kraftwerk
desistem de uma vez do invólucro de pele e transformam-se em robôs. A bordo de
uma máquina de realidade virtual, saltam para o espaço, evocando em temas como
“Spacelab”, “Metropolis” (evidente a conotação com o filme de Fritz Lang) e
“Neon Lights”, uma versão cibernética da valsa de Strauss em “2001-Odisseia no
Espaço”, de Kubrick. “We are the robots” passaria a ser a declaração de
identidade que jamais abandonariam.
“The Man-Machine” é o espaço exterior. “Computer
World” mergulha no interior de um “chip” para revelar a realidade observada e
filtrada através de um monitor. Aqui a comunicação é já a das máquinas e entre
as máquinas, processada através de sinais linguísticos e números codificados
(“Numbers”). “Computer world”, “Computer love”, “Home computer”. Somos nós, a
olhar de dentro do PC, com os olhos muito abertos de espanto. “It´s more fun to
compute”? Cada um que digite a resposta que mais lhe convier.
No último capítulo relevante da história dos
Kraftwerk, “Electric Cafe” assume-se como uma paródia ao universo criado pelo
grupo. Paródia extensiva à pop eletrónica, ou tecnopop, de que eles próprios
foram os criadores. “Boing boom tchak”, ou as onomatopeias da idiotia levadas
com um “smile” para as “dance floors”. Faltava apontar o rato e carregar em
“desligar”. E ficar de parte a observar o curso dos acontecimentos. “The Mix”
seria mera operação de limpeza e diversão e “Tour de France”, na presente
versão longa-duração, contenta-se em ser uma deslizante manobra de “charme”,
umas vezes em cura de sono “chill-out”, outras bem-humorada, à maneira dos
Telex, grupo belga que, paradoxalmente, foi a versão mais fiel e clownesca do
original Kraftwerk.
Como dois respeitáveis anciãos, Ralf Hütter e
Florian Schneider passeiam-se hoje de bicicleta pela Baviera florida,
observando o cenário de florestas, nuvens e montanhas com a placidez de
turistas na reforma. Se com uma íris biológica ou através de lentes biónicas,
eis o enigma que eles próprios fazem questão de não esclarecer.
KRAFTWERK
Tour de France Soundtracks
EMI, distri. EMI-VC
6|10
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