Y 25|JULHO|2003
música|crammed
Nos anos 80, a editora belga Crammed provou que a
música popular podia voltar a ambicionar ser obra de arte. Ou, se não, a pôr um
bigode no nariz do classicismo. Afinal de contas, Dada também se podia dar ao
luxo da luxúria.
Le crème de la Crammed
Os “eighties” foram mais do que o
reservatório de óleos pesados, faíscas elétricas e quinquilharia “glamour” que
hoje, devidamente reciclados, tomaram a forma de “electroclash”, “tecnocoisa” e
outras designações estapafúrdias que mais não servem do que para embalar
produtos, na sua maioria, absolutamente destituídos da menor mais-valia
musical.
Havia,
é certo, os Human League, Orchestral Manoeuvres in the Dark, Tubeway Army ou
Berlin Blondes para fazer a ligação entre a monstruosidade industrial dos
Throbbing Gristle, Test Dept., SPK e os primeiros Cabaret Voltaire, e as afetações
dos chamados neo-românticos (Spandau Ballet, Duran Duran, Classix Nouveaux,
etc). Era a maneira de tornar inofensiva uma atitude que levava a rebeldia
“punk” aos extremos da ideologia, da tecnologia e da magia. A par destas manobras
mais ou menos subversivas, a pop, claro, continuou a sua viagem de longo curso.
No
continente, porém, uma terceira via emergiu, o lado “arty” dos anos 80, ponto
de cruzamento de mil e uma estéticas, da pop à música contemporânea, da étnica
à eletrónica, da clássica ao minimalismo, do jazz às sínteses mais inverosímeis
– repondo a questão, deixada em aberto com a irrupção explosiva do “punk”, de
como continuar as experiências direcionadas para uma música, dita
“pretensiosa”, encetadas na década anterior pelo rock progressivo.
Em
Inglaterra já havia quem tratasse do assunto, na cooperativa, editora e
distribuidora Recommended que, a partir das sementes lançadas pelos Henry Cow e
pelo movimento RIO (“Rock In Opposition”), criara o chamado “rock de câmara”,
personificado por bandas como os Art Bears, News from Babel, Present,
Conventum, Univers Zero e Art Zoyd.
Na
Bélgica constituiu-se a sede do contrapoder, com a criação, em 1981, por Marc
Hollander, e Véronique Vincent, da editora Crammed, rapidamente extensiva a uma
sua subsidiária, a Made to Measure, vocacionada para a divulgação de propostas
mais elitistas e totalmente desfasadas da “normalidade”. A Cramworld,
especialista em “world music” surgiria alguns anos mais tarde. Tinha assim
início uma aventura “com base em encontros, paixões, ruturas e flirts
musicais”, mas também resultante de uma rede de cumplicidades que viria a
envolver ainda Hann Gorjaczkowska, responsável pela direção artística e gráfica,
Vincent Kenis e Samy Birnbach, dos Minimal Compact, hoje operativo nas pistas
de dança com a designação DJ Morpheus.
Marc
Hollander e Véronique Vincent eram, são, ambos músicos. Marc fundou um dos grupos
mais importantes dos anos 80, situado na charneira entre o polo Recommended e o
europeísmo “dandy” da sua própria editora, os Akasak Maboul. Véronique era a
cantora dos The Honeymoon Killers. Grupos que, curiosamente, permaneceram até à
data com dois dos seus trabalhos a não merecerem honras de reconversão para CD.
O presente pacote de 12 reedições, genericamente embalado com o rótulo “Crammed
Global Soundclash, 1980-1989” (mais duas coletâneas, uma centrada nas fusões
“world”, outra na “electrowave”) disponibiliza-os, enfim: “Onze Danses pour Combattre
la Migraine”, que tanto pode ser encarado uma proto-encarnação dos Aksak Maboul
como um trabalho a solo de Hollander, e “Les Tueurs de la Lune de Miel”, álbum
único dos The Honeymoon Killers.
feito
à medida. À Made to Measure, subsidiária da Crammed, coube a tarefa de
abrir os portões de um novo mundo. De súbito, a Europa começou a reparar na
existência de uma nova música, luxuosamente embalada e produzida, que escapava
às habituais catalogações de estilo. Álbuns “feitos à medida” de uma conceção estética
que poderíamos designar por “neoclássica” de acordo com o propósito da criação de
uma coleção de objetos únicos – obras de arte na verdadeira aceção da palavra.
Foi, além disso, uma das primeiras editoras, senão mesmo a primeira, a lançar o
conceito de “série”, englobando a diversidade em caixas com selo de marca num
misto de obscurantismo quase esotérico e apelo gráfico irresistível. Mais
importante que tudo: as músicas que ostentavam na capa a tira “Made to Measure”
eram garantia de surpresa e de associações musicais sem paralelo.
O
cartão de visita, com número de série MTM1, veio à luz em forma de antologia,
com a participação dos Aksak Maboul, Tuxedomoon, Minimal Compact e Benjamin Lew
em inéditos compostos de propósito para ela. O destino estava traçado e os
números da série seguinte dariam a conhecer algumas obras marcantes da música
alternativa dos anos 80. Os melhores: “Reivax au Bongo”, de Hector Zazou (faz
parte do atual pacote), “Colorado Suite”, de Blaine L. Reininger e Mikel Rouse,
“western spaghetti” em forma de “opus” minimalista (“Philip Glass meets
Bonanza”, como escreveu alguém), “A Walk in the Woods”, de The Mikel Rouse
Broken Consort, minimalismo com eletrónica e costela romântica, “Sedimental
Journey”, de Peter Principle, fragmentos quebrados e incongruentes dos
Tuxedomoon, misturados com poemas e interferências cósmicas. “Géographies”, de
novo Hector Zazou, Wagner, Raul Ruiz e ZNR em sinfonias de ópio, “Stranger than
Paradise”, de John Lurie, “Desert Equations: Azax Attra”, de Sussan Deyhim e
Richard Horowitz (incluído no pacote), “Music for Commercials”, de Yasuaki
Shimizu, electroanúncios para televisão. “If Windows They Have”, de Daniel
Schell & Karo, neo-tudo e obra-chave dos 80, “Down by Law”, de John Lurie,
mais BSO em formato de jazz “downtown” de câmara, “Douzième Journée: Le Verbe,
la Parure, l’Amour”, segredos e romances eletrónicos, outro clássico, e a sua sequela,
“A Propos d’un Paysage”. “Tone Poems”, de Peter Principle, o título diz tudo e
não diz nada, “Géologies”, de Hector Zazou, na linha de “Géographies”, “Pretty
Ugly”, de Peter Scherer e Arto Lindsay, “noise” e “no rock” domesticados mas não
menos sinistros para um “ballet” de Amanda Miller, “Arrows”, de Steve Shehan,
“world music” de uma galáxia distante.
Mais
recentes: “Le Secret de Bwlch”, de Daniel Schell e Karo, refinamento da nova
“chamber music” deste grupo suíço, “Domino One”, de Ramuntcho Matta, “kitsch”,
vudu, carnaval, sons de água e de galinhas. Mais convencionais, semi-fracassados
ou “excêntricos” pelos motivos errados (exibicionismo sem nexo nem propósito),
encontram-se discos de Benjamin Lew, Samy Birnbach e Benjamin Lew (“Nebka” e
“Le Parfum du Raki” não estão ao nível dos duetos com Steven Brown), Fred Frith
(a BSO, pouco gratificante, “The Top of His Head”), Steven Brown & Delphine
Seyrig, Zelwer, Gabor G. Kristof, Karl Biscuit, Seigen Ono, David Cunningham
(fez bem melhor do que aqui, com “Water”), ainda Hector Zazou (o redundante “Sahara
Blue” e “Glyph”, com Harold Budd), Brion Gysin (neste caso, a conversa é mais
que música...) e John Lurie National Orchestra.
Tudo
somado, dá para uma quantidade de horas de audição, deslumbramento e,
eventualmente, desorientação. As medidas da Made to Measure variavam com a
mesma facilidade que a arquitetura das cidades obscuras em BD de Schwitens e
Peeters. Mas a Crammed reservou outras das suas preciosidades para o seu
próprio catálogo. O bolo teve mais do que uma cereja no topo.
doze danças para combater
a enxaqueca
AKSAK
MABOUL
Onze Danses pour Combattre la Migraine (1977)
8|10
Fica finalmente disponível
em CD o antecessor de “Un Peu de l’Âme des Bandits”. Marc Hollander assegura a
quase totalidade da composição e instrumentação deste disco em que o rock de
câmara ganha as tonalidades de música de feira, com as suas caixas-de-ritmo de
primeira geração, minimalismo “kitsch”, divagações de jazz e variedades impressas
em cartões de visita desbotados que evocam os “orgues de barberie” de Pascal
Comelade. Um álbum que ditaria algumas das vias posteriormente seguidas por outros
artistas do catálogo.
TUXEDOMOON
Desire (1981)
10|10
Exilados na Europa, os
norte-americanos Tuxedomoon abandonaram o pós-punk erudito que marcou o seu
álbum de estreia na Ralph, inevitavelmente influenciado pelo som dos Residents,
para mergulharem no crepúsculo de uma música que aliava a nostalgia ao
futurismo. Ritmos automáticos, o violino “alien” de Blaine L. Reininger, o
arsenal de efeitos eletrónicos desconjuntados de Peter Principle e os teclados
e sopros de Steve Brown, capazes de se infiltrarem no sangue de um jazz doente
como um antibiótico, servem canções sobre a decadência do amor e do Ocidente.
HONEYMOON
KILLERS
Les Tueurs de la Lune de Miel (1982)
8|10
Os assassinos da
lua-de-mel, bizarra formação franco-belga liderada pelo saxofonista, já
falecido, Yvon Vromann, não são assim tão violentos, embora se inspirassem no
“punk” e na “new wave”, mas seguindo um figurino francês. O lado “arty” emerge,
porém, quando menos se espera, nas aproximações jazz/burlescas de uns Etron Fou
Leloublan enquanto o sorriso pop chega a ser pateta numa faixa como “Histoire à
suivre”, com sabor a Jane Birkin. Tudo estaria bem se não houvesse um saxofone
a gritar “free jazz”. E há coisas como faziam os Kas Product (lembram-se?) e os
Alésia Cosmos (ninguém se deve lembrar…). Eletrónica no batedor e ritmos Recommended
integram igualmente este curioso objeto que agora surge aumentado por temas
extra, entre os quais um “live” com os Aksak Maboul.
BENJAMIN
LEW
Compiled Electronic Landscapes (1982)
8|10
Antologia de fragmentos e
paisagens eletrónicas extraídos dos álbuns a solo “Nebka” e “Le Parfum du
Raki”, bem como das anteriores e francamente superiores colaborações com Steven
Brown. Os títulos e ambientes dir-se-iam recortados de um filme de Marguerite
Duras ou do “Marienbad” de Resnais. Portos do Mediterrâneo, ventos do deserto, as
aventuras de Adéle Blanc-Sec e de Arsène Lupin na Paris da Belle Époque em
quadros eletrónicos onde a influência de Eno se veste com o onirismo dos filmes
do inconsciente.
ZAZOU,
BIKAYE, CY1
Noir et Blanc (1983)
8|10
Desta colaboração entre
Hector Zazou, previamente nos ZNR, o cantor congolês Boni Bikaye e o grupo de
eletrónica Cy1 resultaria um dos primeiros exemplares de etnotecno, antes da
queda na variante etnoseca. As programações, imbuídas do calor próprio dos sintetizadores
e sequenciadores analógicos, seguram danças dervíshicas enfeitadas pelos
cânticos afro de Bikaye. Absolutamente hipnótico ou, como alguém descreveu na
altura esta fusão de prototecno e arvoredos “world”: “Fela Kuti meets Kraftwerk
on the dance floor. Arrumar ao lado da variante kraut e, inevitavelmente, mais
fria, “Zero Set”, de Dieter Moebius, Conny Plank e Mani Neumeier.
MINIMAL
COMPACT
Deadly Weapons (1984)
6|10
Samy Birnbach e a
israelita Malka Spiegel fizeram dos Minimal Compact uma das bandas da Crammed
com maior projeção fora de portas. A mistura de elementos rock com melodias e
sonoridades do Extremo Oriente, onde alguém, mais excitado, viu o encontro de
Ian Curtis com a cantora folk egípcia Oum Kalsoum, não resistiu ao desgaste do
tempo, ouvindo-se hoje como um típico objeto dos anos 80 pós-Joy Division, já
impregnado pelo espírito electro.
KARL
BISCUIT
Secret Love (1984)
5|10
Karl Biscuit era uma figura
enigmática que aparece na capa de “Secret Love” a fazer o número do manequim
romântico. Apesar das referências aos Depeche Mode e aos Human League e da
graça de lhe terem chamado “Julien Clerc em três dimensões”, a pop eletrónica e
as “torch songs” de pacotilha servidas em bandeja de mambo e eletrobeats
baratos é pouco convincente enquanto testamento musical deste francês hoje
responsável pela companhia de dança Castafiore.
HECTOR
ZAZOU
Reivax au Bongo (1986)
9|10
Registado originalmente na
Made to Measure, “Reivax au Bongo” é um daqueles discos que parecem saídos do
sonho de um louco. Composto como banda sonora para uma telenovela imaginária
(!), o “primeiro lado” experimenta, num contexto de desenhos animados, as
vocalizações étnicas de Boni Bikaye, Kanda Bongo Man e Ray Lema. Tão delirante
como exótico, este primeiro segmento não faz prever o que se segue: naipes
grandiosos de música coral cantada por donzelas e querubins que se elevam nas
alturas como um madrigal pré-barroco de Gabrielli ou Heinrich Schütz.
COLIN
NEWMAN
Commercial Suicide (1986)
6|10
Pop eletrónica com dose de
excentricidade q.b. pelo ex-vocalista dos Wire, em colaboração com John Bonnar,
Malka Spiegel e o engenheiro de som/produtor e alicerce do chamado “som belga”,
Gilles Martin. A par de canções padronizadas na pop eletrónica da época, a
presente reedição junta-lhes um inédito com Newman a falar da sua música, sobre
fundo sonoro. Os mais exagerados viram neste álbum as mesmas qualidades de
“Rock Bottom”, de Robert Waytt, e de “The Madcap Laughs”, de Syd Barrett, mas a
verdade é que a este “suicídio comercial” falta tanto a tragédia como a
loucura.
SONOKO
La Débutante (1988)
7|10
Disco de uma beleza fora
do vulgar a deste baile de debutante de uma cantora japonesa com voz de boneca
caída no jardim de Virginia Astley. O som de dar corda a uma caixa-de-música dá
o mote a uma coleção de melodias frágeis, por vezes arrebatadoras, que incluem uma
mutação cândida de “Cheree”, dos Suicide, modificada para “Cheri cheri”, uma
letra de Shakespeare, uma dedicatória a Brigitte Bardot, “La poupée qui fait
non”, de Michel Polnareff, música de igreja, um requiem de Gabriel Fauré (1888)
e uma arrepiante, porque falsamente ingénua, versão de “In heaven”, da banda
sonora de “Eraserhead”, de David Lynch. No filme o tema é cantado por uma
bailarina que vive dentro de um radiador, ao mesmo tempo que pisa
espermatozoides: “In heaven everything is fine”.
SUSSAN
DEYHIM & RICHARD HOROWITZ
Desert Equations: Azax Attara (1987)
8|10
Étnica, técnica, tecno,
cânticos da Pérsia, programas de computador, “drones” e dunas. Danças eletro em
contraponto com uma voz planetária. O escritor Paul Bowles perguntou, a
propósito, se esta música foi composta sob a influência de algum alucinogénico,
enquanto Jaron Lanier, cientista, compositor e inventor da realidade virtual
fala de uma genuína viagem dos corpos através de uma paisagem hi-tech. “Azax
Attra” percorre-se como se pisássemos o solo de uma ilusão e subitamente
sentíssemos no rosto o choque da areia empurrada pelo vento.
BEL
CANTO
White-out Conditions (1988)
7|10
Muito antes dos icebergs
imóveis dos Sigur Rós, os noruegueses Bel Canto, da cantora Annelli Marian
Drecker, lançavam ao mar o conceito de pop ártica que viria a ramificar-se na atualidade
por nomes como Biosphere, Chiluminati e Röyksopp. Apesar da rítmica ser de
gelo, chovem melodias capazes de inflamar os corações, como “Blank sheets”.
Fizeram-se comparações com os Cocteau Twins, Sara MacLachlan, Dead Can Dance e
Talk Talk, mas é mais singelo do que isso.
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