JAZZ
DISCOS
PÚBLICO 20 SETEMBRO 2003
Destacando-se do mais
recente pacote de reedições “The Rudy Van Gelder Series” da Blue Note, dois
clássicos: “Our man in Paris”, de Dexter Gordon, e “Indestructible”, de Art
Blakey & The Jazz Messengers.
Uma
máquina indestrutível
No emaranhado de
épocas e estilos em que se tornou o jazz atual é fácil sentir insegurança e
desorientação. A história e as suas lições constituem o melhor remédio e a mais
fiel das bússolas. A Blue Note é um porto seguro onde a história do jazz,
nomeadamente do bop (do bepop ao hard), encontrou terreno de eleição para
crescer e se desenvolver. Grandes nomes do jazz gravaram para este selo criado
em Nova Iorque, ainda nos anos 30, pelo berlinense Alfred Lion. A Blue Note,
mais do que um som (devido, em grande parte, ao engenheiro de som Rudy Van
Gelder) foi, e é, um conceito global com uma estética própria e um conceito que
desde cedo privilegiou o intercâmbio de ideias e de músicos.
O hard bop teve na Blue Note alguns
dos seus mais importantes praticantes e a incessante série de reedições “The
Rudy Van Gelder Series” tem tido a virtude de recuperar, nas melhores condições
sonoras, alguns dos momentos históricos registados nesta editora, em muitos
casos aumentadas de takes e outro material inédito. Mais seis volumes da série
acabam de ver a luz do dia.
O pianista Horace Silver foi um dos
primeiros a incorporar a linguagem do hard bop na sua música. “Horace Silver
Trio”, gravado em 1952 e 1953, inclui sessões com os baixistas Gene Ramey,
Curly Russell e Percy Heath, mas é Art Blakey, na bateria, quem assume o
comando da locomotiva. O co-fundador dos Jazz Messengers (grande universidade
do hard bop, criadam aliás, na sequência de uma sessão com Silver) atrai
constantemente as atenções no modo como faz de cada tema uma demonstração
exemplar de criatividade. Além de poderosa máquina de ritmos (“Message from
Kenya” é a erupção tribal da África mais profunda e mágica onde o baterista faz
soar os seus tambores como se fossem o coração múltiplo das entranhas da terra e
“Nothing but the soul” um solo absoluto capaz de pôr o planeta aos saltos),
Blakey era um incessante desenhador de melodias, a cada momento projetadas para
o centro dos acontecimentos. Silver, herdeiro de Bud Powell e de Monk,
revela-se, por seu lado, um pianista fortemente enraizado na singularidade
rítmica do “blues”. A aliança entre ambos faz dançar um morto.
Quando nos pedem para nomear, sem
pensar, um saxofonista de jazz, o nome surge quase automaticamente: Sonny
Rollins. Sonny Rollins é “o” saxofonista, o aglutinador e experimentador
incessante de formas e estilos, unificados por uma energia e entrega sem
limites. Embora, e como Coltrane – que constituiu como que o horizonte limite
da sua própria busca –, se perdesse na exploração interminável do pormenor,
Rollins era a fonte inesgotável, fluxo de soluções e inquietações. Mas “Volume
One”, gravação mono de 1956, não vai além de uma típica sessão de manutenção. O
então ainda jovem saxofonista sopra em relaxe, Max Roach dá lições de “swing” e
Donal Byrd, como de costume, arde, arde, para no final sobrar pouco mais do que
manchas de fuligem. Na balada “How are things in Glocca Morra?”, pelo
contrário, basta ao saxofonista diminuir ligeiramente o volume de saída de ar
do seu tenor para a alma se sentir aquecida. Nada de transcendente, no entanto,
comparado com as vulcânicas erupções do magistral “Saxophone Colossus”.
Pois... Coltrane, o mago. Rollins e Coltrane
funcionam dialeticamente um pouco como os Rolling Stones e os Beatles. A Trane
bastou uma trajetória meteórica para alcançar as estrelas e se tornar um mito.
Já Rollins, como os Stones, é o trabalhador eterno e infatigável (Coltrane
também o era, mas funcionava numa dimensão de grau superior...) cujo génio não
se revela no instante mas antes se constrói a pulso. “Blue Train” não é, porém,
uma obra com o estatuto de “A Love Supreme” ou “Ascension”. A gravação, com
data de 1957, rodeou-se de várias contingências, com misturas de “takes” e
mesmo, como no título-tema, de colagem de momentos extraídos de “takes”
diferentes. Ladeado por dois notáveis solistas, Lee Morgan, na trompete, e
Curtis Fuller, no trombone, e pela secção rítmica de Paul Chambers
(contrabaixo), Kenny Drew (piano) e Philly Joe Jones (bateria), Coltrane corria
aqui ainda sem a urgência de quem sabe que o tempo escasseia para alcançar a
imortalidade. Ou seja, sem sair dos carris.
Autor
de extensa discografia para a Blue Note, o guitarrista Grant Green é sinónimo
de “blues” e de “feeling”, um pouco como uma versão simplificada de Charlie Christian.
“Grandstand”, de 1961, caracteriza-se (como outros álbuns do guitarrista) por
um som “longe” e acessível em que a leveza de timbre do guitarrista e as
sonoridades aveludadas do Hammond de Jack McDuff se casam de uma maneira que
viria a mostra-se altamente rentável, em termos de vendas, para a editora.
Yusef Lateef, como Roland Kik, um soprador e multi-instrumentista adepto da
excentricidade, é a peça fora da engrenagem, embora o seu desempenho em
“Grandstand” esteja longe de soar ao canto exótico de uma ave rara.
Falemos
então de coisas sérias. Como “Our Man in Paris” (1963), de Dexter Gordon. Às primeiras notas
desaparece qualquer resistência. O tenor de Gordon possui o timbre exato, entre
a clareza do fraseado e a dose ideal de rugosidade e uma pessoalíssima conceção
do tempo de onde lhe advém o “swing”. Sobre a voz do seu saxofone tenor – cuja
influência se exerceu, já agora, quer sobre Rollins quer sobre Coltrane –, há
quem diga que alia a descontração, quase indolência, de Lester Young (ouça-se a
forma como se deixa atrasar, arrancando golpes de lânguida sensualidade em
“Willow weep for me”) à virilidade de Coleman Hawkins. “Our Man in Paris”,
considerado um dos clássicos do bebop tardio, é uma daquelas fortalezas
inexpugnáveis do jazz que permitem, a cada nova consulta, descobrir a essência
do próprio jazz. No meio de “Scrapple from the apple”, notável apropriação de
um tema e das conceções harmónicas de Charlie Parker, “A night in Tunisia”, de
Dizzy Gillespie, e “Our love is here to stay”, de Gershwin, “Brodway”
destaca-se como uma demonstração da capacidade de improvisação que, inclusive,
fizeram o saxofonista evoluir para fora do bop (“estou sempre à procura de
novos modos de improvisar”, disse) e “Stairway to the stars” é um tratado sobre
como subir ao céu nas asas de uma balada. Aqui com o indispensável impulso do
piano de Bud Powell, absolutamente notável na delicadeza e luminosidade que
imprime a cada nota, a cada harpejo capaz de transformar o teclado na rede de
luz de uma harpa.
De
regresso ao início e ao local do “crime”, deliciemo-nos com uma gravação de Art
Blakey com os Jazz Messengers de 1964, “Indestructible”, preenchida na íntegra
por originais do grupo. Eis a máquina a funcionar em pleno. A Lee Morgan e
Curtis Fulwer junta-se o tenor elástico de Wayne Shorter. O contraponto entre
os três em “The egyptian” é para ser gozado até ao tutano desta renovada
remasterização de 24-bits. Cedar Walton, no piano, faz bater o pé no andamento
hispânico de “Sortie”, com o baterista a trotar em volta e o baixo de Reggie
Workman faz rolar “Calling miss Khadija”. O diálogo entre o tenor de Wayne
Shorter, autor das duas últimas composições, e o trombone de Curtis Fuller, em
“When love is new”, é um instante de suspensão, cumplicidade e lirismo num
álbum cuja força e coesão são suficientes para justificar o título e considerar
a máquina Jazz Messengers, de facto, indestrutível.
HORACE SILVER
Horace Silver Trio
7 | 10
SONNY ROLLINS
Volume One
6 | 10
JOHN COLTRANE
Blue Train
7 | 10
GRANT GREEN
Grandstand
5 | 10
DEXTER GORDON
Our Man in Paris
9 | 10
ART BLAKEY &
THE JAZZ MESSENGERS
Indestructible
8 | 10
Todos Blue Note,
distri. EMI-VC
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