CULTURA
DOMINGO,
27 JUL 2003
Totonho soltou a
cabra no Músicas do Mundo de Sines
Ao fim de dois
dias, o 5.º festival Músicas do Mundo pode orgulhar-se de ser o mais
participado de sempre. Música, com “M” grande, para já, só a dos portugueses
Danças Ocultas e dos afegãos Ensemble Kaboul. Do Brasil ouviu-se um enorme
estrondo.
Surpreendentemente,
foram os brasileiros Totonho e os Cabra a arrancar a maior e mais furiosa onda
de aplausos registada ao fim de dois dias do festival Músicas do Mundo, que
ontem terminou em Sines. Chanfana de cabra, prato pesado, esteve prestes a
provocar indigestão mas, servida como ceia, foi engolida pelos mais resistentes
com sofreguidão.
Totonho e o seu grupo, últimos artistas
a atuar sexta-feira num castelo completamente lotado, cantam e falam com alguma
dificuldade. A música do grupo é simplória, os ritmos são de uma pobreza
confrangedora, mas o entusiasmo e a convicção mostram um empenhamento total,
uma raiva genuína, um desejo de vomitar as tripas e de comunicar, custe o que
custar. Houve quem não aguentasse e fosse abandonando o recinto, insensível à
mistura de batuque, megafone e rap disparados à queima-roupa. Os que
aguentaram, porém, renderam-se, transformando em ritual pagão o que de início parecera
chinfrineira e erro de “casting” do festival.
É o Brasil do Nordeste, o Brasil pobre,
o Brasil profundo que Totonho e os Cabra lançam à cara de quem os ouve. Totonho
é o cabra (embora o seu verdadeiro apelido seja Bezerra), que grita através de
um megafone imprecações e palavras embrulhadas em escarros. “Segura a cabra”
foi o hino repetido no encore, por entre eletrónica industrial (consta que o grupo
aprecia os alemães Einstuerzende Neubauten) e cordas gordurentas. Totonho está
pouco à vontade em palco, inicia frases de explicação sem as terminar,
engasga-se, tudo parece coisa de amadores. E os Cabra são-no, de facto, embora o
vocalista não seja nenhum Zé Cabra. Ensaia passos fora de ritmo, ergue um totem
com a cabeça de uma cabra, não se percebe o que diz mas percebe-se que está a
ser sincero e que gostaria que a música servisse, de facto, para mudar a
sociedade e o mundo. Grita, imita um cão a ladrar e faz de cabra mais do que
uma vez. Em “Babaovo midi” rima Peter Tosh com Macintosh mas é preciso chegar à
parte final do “concerto” para tudo fazer sentido, através de um rock pesado,
implosivo, massacrante.
Nos bastidores ele e o grupo choram
e abraçam-se, comovidos. O público pede “encores” (foram os únicos a dar dois)
e parecem não acreditar que são desejados. Têm que ser empurrados para o palco.
Tinham estado ali, nus, arriscando-se ao ridículo. Mas regressam, como heróis.
Totonho acerta finalmente nos movimentos do corpo e da voz, improvisa no lugar
certo, os outros músicos perdem a timidez e dão o máximo de si próprios,
enlouquecidos. “Segura a cabra”, mas a cabra já se transformara num demónio.
Tudo poderia começar nesse momento e, quando as luzes se apagam, já de
madrugada, continuam a ouvir-se os gritos dos jovens das filas da frente a
pedir mais.
A melhor música da noite veio dos
Ensemble Kaboul, do Afeganistão. Talvez numa sala fechada tivesse soado ainda
melhor. Ainda assim, para quem entrasse a tempo (e esta é uma música que, como
o “raga” indiano, necessita que entremos nela e não o contrário), o transe
instalou-se de forma subtil e gradual, como a serpente que, sem nos darmos conta,
se enrola em torno do coração e o hipnotiza. Solos de percussão e de
instrumentos de corda exóticos criaram um clima de relaxamento no qual a voz da
cantora Mahwash se encaixou sem se destacar. Música para se ouvir deitado a
olhar para as estrelas.
No registo oposto, o trio de cantoras
veteranas Mahotella Queens e o seu grupo elétrico, limitou-se a pôr as pessoas a
baloiçar o corpo. Sessentonas mas bem ginasticadas, as rainhas dançaram,
mudaram de roupa, vestiram camisas transparentes, mostraram as pernas e o rabo,
foram alegria e comunicabilidade e, no final, depois de um tema da tradição
zulu (o melhor da sua atuação), desfizeram-se em elogios a Sines, ao público, ao
festival, prometendo voltar. A “Mbaquanga”, da qual mostraram a versão em
plástico, uma africanada batida em rock automático, funcionou, como um “preset”
de ritmo.
No dia de abertura, os Danças Ocultas,
na apresentação de temas de um álbum a editar em breve, mostraram que a
europeização parece ser caminho obrigatório para este quarteto de acordeões
diatónicos. Estão mais adultos, e composições como “La danse idéale”, “Danças
ocultas” e “Tristes europeus”, são tapeçarias de câmara, dignas da grande folk em
qualquer parte do mundo. Arranjos intrincados, uso sábio do contraponto e uma erudição
que não dispensa o contacto com as fórmulas populares dão garantias de que o grupo
poderá ser, num futuro muito próximo, par de pleno direito de formações como Trans
Europe Diatonique ou de solistas como Alain Genty e Riccardo Tesi.
Quinta-feira terminou com os
Simentera, de Cabo Verde, que mostraram o que é habitual nos grupos com esta proveniência:
um balanço a que os corpos dificilmente resistem, um calor que se entranha na
pele, belas vozes femininas nas baladas e histórias para contar, como a do guitarrista
mais velho, com apenas três dedos numa das mãos e filhos feitos em todas as
ilhas do arquipélago, façanha que o público aplaudiu devidamente — o fértil
guitarrista agradeceu, erguendo os braços em triunfo. Infelizmente houve também
um suporte rítmico sem grande imaginação, um saxofonista sofrível e um tempo
excessivo de atuação, dando a entender que os Simentera, caso os deixassem,
ficariam no palco toda a noite.
O Músicas do Mundo cumpre, assim, o
ritual. Dentro do castelo, a “world music”, sobre relva (sim, sim, aqui não há
pó, o chão é verde e confortável!...) e sob o céu do Verão alentejano. Fora
dele, o folclore do costume: tendas de artesanato e de chás, falsos e
verdadeiros hippies (para os distinguir, basta ver se há crianças e cães por
perto, caso haja, são verdadeiros), “rastas” e bailarinas, aprendizes de malabaristas
e outros cromos que, não se sabe bem porquê, estão sempre presentes neste tipo
de festivais. Vimos mas não ouvimos djembés, louvado seja o Deus da música do mundo.
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