16/10/2019

Totonho soltou a cabra no Músicas do Mundo de Sines


CULTURA
DOMINGO, 27 JUL 2003

Totonho soltou a cabra no Músicas do Mundo de Sines

Ao fim de dois dias, o 5.º festival Músicas do Mundo pode orgulhar-se de ser o mais participado de sempre. Música, com “M” grande, para já, só a dos portugueses Danças Ocultas e dos afegãos Ensemble Kaboul. Do Brasil ouviu-se um enorme estrondo.


Surpreendentemente, foram os brasileiros Totonho e os Cabra a arrancar a maior e mais furiosa onda de aplausos registada ao fim de dois dias do festival Músicas do Mundo, que ontem terminou em Sines. Chanfana de cabra, prato pesado, esteve prestes a provocar indigestão mas, servida como ceia, foi engolida pelos mais resistentes com sofreguidão.
            Totonho e o seu grupo, últimos artistas a atuar sexta-feira num castelo completamente lotado, cantam e falam com alguma dificuldade. A música do grupo é simplória, os ritmos são de uma pobreza confrangedora, mas o entusiasmo e a convicção mostram um empenhamento total, uma raiva genuína, um desejo de vomitar as tripas e de comunicar, custe o que custar. Houve quem não aguentasse e fosse abandonando o recinto, insensível à mistura de batuque, megafone e rap disparados à queima-roupa. Os que aguentaram, porém, renderam-se, transformando em ritual pagão o que de início parecera chinfrineira e erro de “casting” do festival.
            É o Brasil do Nordeste, o Brasil pobre, o Brasil profundo que Totonho e os Cabra lançam à cara de quem os ouve. Totonho é o cabra (embora o seu verdadeiro apelido seja Bezerra), que grita através de um megafone imprecações e palavras embrulhadas em escarros. “Segura a cabra” foi o hino repetido no encore, por entre eletrónica industrial (consta que o grupo aprecia os alemães Einstuerzende Neubauten) e cordas gordurentas. Totonho está pouco à vontade em palco, inicia frases de explicação sem as terminar, engasga-se, tudo parece coisa de amadores. E os Cabra são-no, de facto, embora o vocalista não seja nenhum Zé Cabra. Ensaia passos fora de ritmo, ergue um totem com a cabeça de uma cabra, não se percebe o que diz mas percebe-se que está a ser sincero e que gostaria que a música servisse, de facto, para mudar a sociedade e o mundo. Grita, imita um cão a ladrar e faz de cabra mais do que uma vez. Em “Babaovo midi” rima Peter Tosh com Macintosh mas é preciso chegar à parte final do “concerto” para tudo fazer sentido, através de um rock pesado, implosivo, massacrante.
            Nos bastidores ele e o grupo choram e abraçam-se, comovidos. O público pede “encores” (foram os únicos a dar dois) e parecem não acreditar que são desejados. Têm que ser empurrados para o palco. Tinham estado ali, nus, arriscando-se ao ridículo. Mas regressam, como heróis. Totonho acerta finalmente nos movimentos do corpo e da voz, improvisa no lugar certo, os outros músicos perdem a timidez e dão o máximo de si próprios, enlouquecidos. “Segura a cabra”, mas a cabra já se transformara num demónio. Tudo poderia começar nesse momento e, quando as luzes se apagam, já de madrugada, continuam a ouvir-se os gritos dos jovens das filas da frente a pedir mais.
            A melhor música da noite veio dos Ensemble Kaboul, do Afeganistão. Talvez numa sala fechada tivesse soado ainda melhor. Ainda assim, para quem entrasse a tempo (e esta é uma música que, como o “raga” indiano, necessita que entremos nela e não o contrário), o transe instalou-se de forma subtil e gradual, como a serpente que, sem nos darmos conta, se enrola em torno do coração e o hipnotiza. Solos de percussão e de instrumentos de corda exóticos criaram um clima de relaxamento no qual a voz da cantora Mahwash se encaixou sem se destacar. Música para se ouvir deitado a olhar para as estrelas.
            No registo oposto, o trio de cantoras veteranas Mahotella Queens e o seu grupo elétrico, limitou-se a pôr as pessoas a baloiçar o corpo. Sessentonas mas bem ginasticadas, as rainhas dançaram, mudaram de roupa, vestiram camisas transparentes, mostraram as pernas e o rabo, foram alegria e comunicabilidade e, no final, depois de um tema da tradição zulu (o melhor da sua atuação), desfizeram-se em elogios a Sines, ao público, ao festival, prometendo voltar. A “Mbaquanga”, da qual mostraram a versão em plástico, uma africanada batida em rock automático, funcionou, como um “preset” de ritmo.
            No dia de abertura, os Danças Ocultas, na apresentação de temas de um álbum a editar em breve, mostraram que a europeização parece ser caminho obrigatório para este quarteto de acordeões diatónicos. Estão mais adultos, e composições como “La danse idéale”, “Danças ocultas” e “Tristes europeus”, são tapeçarias de câmara, dignas da grande folk em qualquer parte do mundo. Arranjos intrincados, uso sábio do contraponto e uma erudição que não dispensa o contacto com as fórmulas populares dão garantias de que o grupo poderá ser, num futuro muito próximo, par de pleno direito de formações como Trans Europe Diatonique ou de solistas como Alain Genty e Riccardo Tesi.
            Quinta-feira terminou com os Simentera, de Cabo Verde, que mostraram o que é habitual nos grupos com esta proveniência: um balanço a que os corpos dificilmente resistem, um calor que se entranha na pele, belas vozes femininas nas baladas e histórias para contar, como a do guitarrista mais velho, com apenas três dedos numa das mãos e filhos feitos em todas as ilhas do arquipélago, façanha que o público aplaudiu devidamente — o fértil guitarrista agradeceu, erguendo os braços em triunfo. Infelizmente houve também um suporte rítmico sem grande imaginação, um saxofonista sofrível e um tempo excessivo de atuação, dando a entender que os Simentera, caso os deixassem, ficariam no palco toda a noite.
            O Músicas do Mundo cumpre, assim, o ritual. Dentro do castelo, a “world music”, sobre relva (sim, sim, aqui não há pó, o chão é verde e confortável!...) e sob o céu do Verão alentejano. Fora dele, o folclore do costume: tendas de artesanato e de chás, falsos e verdadeiros hippies (para os distinguir, basta ver se há crianças e cães por perto, caso haja, são verdadeiros), “rastas” e bailarinas, aprendizes de malabaristas e outros cromos que, não se sabe bem porquê, estão sempre presentes neste tipo de festivais. Vimos mas não ouvimos djembés, louvado seja o Deus da música do mundo.

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