07/10/2019

Quem sabe para onde o tempo vai [Fairport Convention]


Y 11|JULHO|2003
roteiro|discos

FAIRPORT CONVENTION
Fairport Convention
8|10

What We Did on our
Holidays
9|10

Unhalfbricking
9|10
Island, distri. Universal



fairport convention
quem sabe para onde o tempo vai

No manifesto de intenções de “Fairport Convention”, álbum de estreia de 1968 da banda que viria a tornar-se a instituição da folk rock inglesa, pode ler-se: “What we played – The best of the singers-songwriters, music of almost suicidal variety, mind boggling complicated arrangements of ostensibly simple songs, anything that other groups wouldn´t touch”. Ainda com Judy Dyble e Martin Lamble (que viria a morrer num acidente de viação), “Fairport Convention” arranca para este rally com o que poderia ser um clássico dos The Byrds, “Time will show the wiser”, de Emitt Rhodes, e prossegue com “I don’t know where I stand”, título apropriado para uma vocalização frágil e tocante de Dyble, na linha do que faria nos Trader Horne. Álbum variado, integra influências da pop psicadélica, britânica e americana (como na delirante versão de “Jack O’Diamonds”, de Dylan, algures entre os Grateful Dead e os Jefferson Airplane), com Ashley Hutchings, futuro fundamentalista da tradição rural, a revelar inusitada destreza na escrita de coisas tão bizarras como “The lobster”. A reedição, remasterizada, inclui quatro temas extra, entre os quais “Suzanne”, de Cohen, e “Morning glory”, de Tim Buckley. Um clássico menor e, para os que apenas conhecem fases posteriores do grupo, uma surpresa estonteante.
            No ano seguinte, Alexandra Elene MacLean Denny, Sandy Denny, entrara já para o grupo, em substituição de Judy Dyble, fazendo de “What we Did on our Holidays” algo de especial que abre com o clássico que daria nome ao seu primeiro projeto fora do grupo, “Fotheringay”. Abrangendo ainda temas de Dylan (“I’ll keep it with mine”) e Joni Mitchell (“Eastern rain”), o psicadelismo, o “cajun” ou os “espirituais” (Denny a fazer de Joplin em “The Lord is in this place, how dreadful is this place?”), bem como um “Book song” de Ian Matthews, o álbum introduz o conceito de “folk elétrica” em “Mr. Lacey” ao mesmo tempo que aparecem os primeiros arranjos de tradicionais, entre os quais “Nottamun town” e “She moves through the fair”, prenúncio da direção que o grupo viria a seguir.
            “I’ll keep with mine” vale pela vocalização de Denny, em veia já explorada no álbum de 1967 de apresentação dos Strawbs, “All of our Own Work”, e “Meet on the ledge”, um original de Thompson, com aquele “swing” característico dos The Byrds que os Fairport tão bem adaptaram a uma inconfundível “britishnes”, figura na galeria dos melhores temas do grupo.
            Ainda de 1969, outra peça-chave, “Unhalfbricking”, título sugerido por Denny em mais do que provável estado de euforia etílica. “Genesis hall” ostenta a marca de uma voz em estado de graça. Poucas vezes Sandy Denny terá cantado como nesta canção de abandono, capaz de nos arrebatar naquele tom que apenas se encontrará, na música inglesa, em “I Want to See the Bright Lights Tonight”, de Richard e Linda Thompson. Denny que em “Si tu dois partir”, versão “cajun” e cantada em francês de um tema de Dylan, volta a abrir caminho ao “boom” do folk rock inglês dos anos 70, por bandas como os Steeleye Span, Matthews Southern Comfort ou Albion Country Band, e se mostra superlativa no jazzy “Autopsy”, onde está já tudo o que se pode encontrar na sua brilhante discografia a solo.
            O mantra de 11 min. e único tradicional do álbum, “A sailor’s life”, é apresentado pela cantora de “world” Sheila Chandra como contendo os genes da música de fusão, na síntese de 2000 anos de canto tradicional védico com os timbres e modos da música irlandesa. O mesmo que, sem que ninguém desse conta, e na mesma altura, também fizeram os Mr. Fox e que em “Liege and Lief” iria ainda mais fundo. Depois, foi neste disco que os Fairport contrataram a sua estrela, o violinista Dave Swarbrick, aqui ainda um dos convidados, a par de Ian Matthews, Dave Mattacks (baterista que marcaria a rítmica futura dos FC) e Trevor Lucas (pilar dos Fotheringay). Apesar de três originais de Dylan, “Unhalfbricking” apresenta, pela primeira vez, o estilo distinto que levaria os Fairport ao estatuto mítico de que ainda hoje gozam. Mesmo que Denny lançasse ao vento as dúvidas e a interrogação ao destino – que para si seria trágico – em “Who knows where the time goes?”. “Não receio o tempo”, canta. E é todo um tempo de beleza gloriosa que desaba sobre nós.

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