BLITZ
5.12.89
VALORES SELADOS
Hoje nos valores está presente a literatura, nas suas duas vertentes: Poesia e Prosa. Tratarei da sua relação com os músicos e a música. Lugar pois para a cultura. Como deve ser.
A Poesia está na moda. E se virmos bem até é fácil compreender porquê. A moda está sempre, de uma forma ou outra, ligada ao exibicionismo.
BREVE ENSAIO SOBRE O EXIBICIONISMO POÉTICO E OS PERIGOS DA PROSA
A moda do vestuário não é mais do que um pretexto para se destaparem e exibirem os corpos. A tendência final é para a nudez absoluta. Estou a lembrar-me por exemplo daquele modelo de Ives Saint-Laurent que destapa completamente o seio feminino. Ora, precisamente, do corpo já pouco resta para mostrar, tornando-se já fastidiosa a sua constante exibição. Era precisamente destapar, mostrar, exibir provocatoriamente algo mais, mas o quê?
A resposta foi dada pela poesia. Como recentemente se veio a descobrir, graças ao sistemático trabalho de investigação dos meandros da mente humana levado a cabo pelas leitoras da «Maria» (notícia divulgada em primeira mão pelo «O Independente»), a poesia permite a cada um «entrar em contacto directo com os seus sentimentos mais íntimos» (sic). Daí até à exibição desses mesmos sentimentos vai um passo muito curto. Não foi aliás por acaso que a descoberta se deve a um grupo de senhoras. O sexo feminino sempre foi mais dado a este tipo de exibições, corporais ou outras. Até se costuma dizer que os poetas e os artistas em geral são um pouco efeminados. Os machos convictos devem pois abster-se completamente de lerem poesia, pelo menos em público, evitando assim o espectáculo, sempre degradante, como o dado por certos senhores que se exibem frente à «Brasileira» empunhando um livro de Pessoa e sentados ostensivamente à mesa do poeta. Em suma, quanto mais profunda a poesia, mais fácil se torna o «contacto directo» e consequente exibição. Basta ler, por exemplo, os primeiros versos de um qualquer poema de Anais Nin e, Zás, saltam cá para fora as intimidades todas, como por magia.
A moda veio do estrangeiro como não podia deixar de ser. Sabe-se como para os artistas e no caso concreto dos músicos, é fundamental o tal «contacto íntimo com os sentimentos mais profundos», indispensável para a feitura das suas obras de arte. Por outro lado os músicos são exibicionistas natos. Muito antes de terem lido a «Maria» já conheciam as faculdades despoletadoras do psiquismo humano proporcionadas pela poesia.
Mas se os efeitos da poesia são já do domínio público, em relação à prosa o problema é bem diferente. Actualmente, pouco ou quase nada se sabe ainda acerca dos seus efeitos reais sobre o psiquismo humano. Até agora as explicações dadas sobre o assunto têm sido vagas e insatisfatórias. Correm alguns rumores, surgem ocasionalmente boatos, mas nada de verdadeiramente importante transparece que mereça um mínimo de credibilidade científica.
Recentemente, uma equipa de investigadores do «lobbie» «Carícia», concorrente da «Maria», tem procurado novas vias de investigação, mas quanto a resultados concretos, nada, todos os esforços têm sido em vão. Realizaram-se, quase em segredo, alguns testes, mas os resultados, repito, não dão azo a grandes entusiasmos. Verifica-se, é verdade, que a leitura de textos como «Guerra e Paz», «Os Cinco na Ilha do Tesouro» ou a «Lista Telefónica» provocam nos leitores-cobaia reacções totalmente diversas e por vezes mesmo contraditórias. Mas a questão principal permanece: Porquê? Verifica-se, por exemplo, que a maioria dos leitores a quem coube a leitura da «Lista Telefónica» se revelou incapaz de a levar até ao fim. Quase todos se ficaram pela leitura das primeiras linhas revelando ao mesmo tempo um ar de confusão e extrema perplexidade. Mais tarde, interrogados sobre o facto, revelaram achar na generalidade o texto «monótono» e «pouco interessante». A única excepção foi a de um leitor que após ter devorado avidamente todo o texto, pediu de imediato que lhe trouxessem para ler as «Páginas Amarelas». Mas a maioria não gostou. E, no entanto, a «Lista» é das obras mais pretendidas, com novas edições todos os anos. Como se explica tal paradoxo? Um entre tantos mistérios até hoje por decifrar.
Compreende-se pois a relutância dos músicos em utilizarem a prosa na sua música. Não se sabe até que ponto pode ser perigosa a sua leitura. Alguns experimentalistas mais afoitos resolveram arriscar. O compositor francês Pierre Henry foi um dos pioneiros. Leu e musicou o «Livro dos Mortos Tibetano», no álbum «Le Voyage», ou textos do Apocalipse numa obra ainda mais obscura. Mas, inexplicavelmente ou talvez não, o Estado francês resolveu intervir proibindo o prosseguimento das experiências e declarando o músico como incapaz e mentalmente desequilibrado. Nunca mais se ouviu falar no seu nome.
Entre nós, o cantor Fausto leu textos relativos aos Descobrimentos e passou-os para música. O disco daí resultante foi um êxito, com todos os portugueses a lerem sofregamente as «Crónicas» de Fernão Mendes Pinto. Foi um caso típico de resposta positiva da parte do psiquismo das massas. Quanto a Fausto, arriscou e ganhou. Mas quantos, menos afortunados, não terão também arriscado e perdido?
Talvez que os enigmas perdurem para sempre. Talvez os investigadores da «Maria» possam um dia dar a conhecer ao mundo as respostas por que todos anseiam. Talvez sejam os próprios músicos que estão mais próximos da verdade. Talvez, talvez…
Por enquanto temos de nos contentar com o quase nada que sabemos. E, no fundo, talvez seja preferível assim. Nós portugueses somos prudentes, lemos pouco e ouvimos pouca música. E temos um governo que se preocupa e nos protege, mantendo louvavelmente altos os índices de analfabetismo. Mas vale prevenir…
Fiquemos pois todos pelo seguro «Batem leve, levemente…» guardando para nós mesmos os nossos sentimentos mais íntimos. Somos pudicos, singelos, mimosos e sonhadores. Somos portugueses, mas não somos poetas. Cruzes, canhoto, que vergonha!...
5.12.89
VALORES SELADOS
Hoje nos valores está presente a literatura, nas suas duas vertentes: Poesia e Prosa. Tratarei da sua relação com os músicos e a música. Lugar pois para a cultura. Como deve ser.
A Poesia está na moda. E se virmos bem até é fácil compreender porquê. A moda está sempre, de uma forma ou outra, ligada ao exibicionismo.
BREVE ENSAIO SOBRE O EXIBICIONISMO POÉTICO E OS PERIGOS DA PROSA
A moda do vestuário não é mais do que um pretexto para se destaparem e exibirem os corpos. A tendência final é para a nudez absoluta. Estou a lembrar-me por exemplo daquele modelo de Ives Saint-Laurent que destapa completamente o seio feminino. Ora, precisamente, do corpo já pouco resta para mostrar, tornando-se já fastidiosa a sua constante exibição. Era precisamente destapar, mostrar, exibir provocatoriamente algo mais, mas o quê?
A resposta foi dada pela poesia. Como recentemente se veio a descobrir, graças ao sistemático trabalho de investigação dos meandros da mente humana levado a cabo pelas leitoras da «Maria» (notícia divulgada em primeira mão pelo «O Independente»), a poesia permite a cada um «entrar em contacto directo com os seus sentimentos mais íntimos» (sic). Daí até à exibição desses mesmos sentimentos vai um passo muito curto. Não foi aliás por acaso que a descoberta se deve a um grupo de senhoras. O sexo feminino sempre foi mais dado a este tipo de exibições, corporais ou outras. Até se costuma dizer que os poetas e os artistas em geral são um pouco efeminados. Os machos convictos devem pois abster-se completamente de lerem poesia, pelo menos em público, evitando assim o espectáculo, sempre degradante, como o dado por certos senhores que se exibem frente à «Brasileira» empunhando um livro de Pessoa e sentados ostensivamente à mesa do poeta. Em suma, quanto mais profunda a poesia, mais fácil se torna o «contacto directo» e consequente exibição. Basta ler, por exemplo, os primeiros versos de um qualquer poema de Anais Nin e, Zás, saltam cá para fora as intimidades todas, como por magia.
A moda veio do estrangeiro como não podia deixar de ser. Sabe-se como para os artistas e no caso concreto dos músicos, é fundamental o tal «contacto íntimo com os sentimentos mais profundos», indispensável para a feitura das suas obras de arte. Por outro lado os músicos são exibicionistas natos. Muito antes de terem lido a «Maria» já conheciam as faculdades despoletadoras do psiquismo humano proporcionadas pela poesia.
Mas se os efeitos da poesia são já do domínio público, em relação à prosa o problema é bem diferente. Actualmente, pouco ou quase nada se sabe ainda acerca dos seus efeitos reais sobre o psiquismo humano. Até agora as explicações dadas sobre o assunto têm sido vagas e insatisfatórias. Correm alguns rumores, surgem ocasionalmente boatos, mas nada de verdadeiramente importante transparece que mereça um mínimo de credibilidade científica.
Recentemente, uma equipa de investigadores do «lobbie» «Carícia», concorrente da «Maria», tem procurado novas vias de investigação, mas quanto a resultados concretos, nada, todos os esforços têm sido em vão. Realizaram-se, quase em segredo, alguns testes, mas os resultados, repito, não dão azo a grandes entusiasmos. Verifica-se, é verdade, que a leitura de textos como «Guerra e Paz», «Os Cinco na Ilha do Tesouro» ou a «Lista Telefónica» provocam nos leitores-cobaia reacções totalmente diversas e por vezes mesmo contraditórias. Mas a questão principal permanece: Porquê? Verifica-se, por exemplo, que a maioria dos leitores a quem coube a leitura da «Lista Telefónica» se revelou incapaz de a levar até ao fim. Quase todos se ficaram pela leitura das primeiras linhas revelando ao mesmo tempo um ar de confusão e extrema perplexidade. Mais tarde, interrogados sobre o facto, revelaram achar na generalidade o texto «monótono» e «pouco interessante». A única excepção foi a de um leitor que após ter devorado avidamente todo o texto, pediu de imediato que lhe trouxessem para ler as «Páginas Amarelas». Mas a maioria não gostou. E, no entanto, a «Lista» é das obras mais pretendidas, com novas edições todos os anos. Como se explica tal paradoxo? Um entre tantos mistérios até hoje por decifrar.
Compreende-se pois a relutância dos músicos em utilizarem a prosa na sua música. Não se sabe até que ponto pode ser perigosa a sua leitura. Alguns experimentalistas mais afoitos resolveram arriscar. O compositor francês Pierre Henry foi um dos pioneiros. Leu e musicou o «Livro dos Mortos Tibetano», no álbum «Le Voyage», ou textos do Apocalipse numa obra ainda mais obscura. Mas, inexplicavelmente ou talvez não, o Estado francês resolveu intervir proibindo o prosseguimento das experiências e declarando o músico como incapaz e mentalmente desequilibrado. Nunca mais se ouviu falar no seu nome.
Entre nós, o cantor Fausto leu textos relativos aos Descobrimentos e passou-os para música. O disco daí resultante foi um êxito, com todos os portugueses a lerem sofregamente as «Crónicas» de Fernão Mendes Pinto. Foi um caso típico de resposta positiva da parte do psiquismo das massas. Quanto a Fausto, arriscou e ganhou. Mas quantos, menos afortunados, não terão também arriscado e perdido?
Talvez que os enigmas perdurem para sempre. Talvez os investigadores da «Maria» possam um dia dar a conhecer ao mundo as respostas por que todos anseiam. Talvez sejam os próprios músicos que estão mais próximos da verdade. Talvez, talvez…
Por enquanto temos de nos contentar com o quase nada que sabemos. E, no fundo, talvez seja preferível assim. Nós portugueses somos prudentes, lemos pouco e ouvimos pouca música. E temos um governo que se preocupa e nos protege, mantendo louvavelmente altos os índices de analfabetismo. Mas vale prevenir…
Fiquemos pois todos pelo seguro «Batem leve, levemente…» guardando para nós mesmos os nossos sentimentos mais íntimos. Somos pudicos, singelos, mimosos e sonhadores. Somos portugueses, mas não somos poetas. Cruzes, canhoto, que vergonha!...
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