25/10/2008

Peter Hammill - Prometeu agrilhoado

BLITZ

21.11.89
VALORES SELADOS


Como certamente repararam, estive ausente desta página a passada semana. Outros deveres jornalísticos impuseram que me deslocasse à República do Alto Volta para fazer a reportagem sobre os pequenos-almoços de Paul McCartney nessa mesma República.
Mas eis que regresso são e salvo, já refeito do choque McCartney e pronto para mais prosas sobre os «Valores», talvez não tão interessantes como as refeições do ex-Beatle, mas olhem, faz-se o que se pode. Dizia eu então que os Van Der Graaf foram o grupo mais importante da década de 70. Foram sim senhor e Peter Hammill um dos maiores poetas e compositores de sempre da música dita popular. É sobre este senhor que, como tinha prometido, escreverei esta semana. Como o assunto é extenso traçarei a sua história cingindo-me apenas aos discos que, ao longo de duas décadas, Hammill vem brilhantemente assinando. O título deste artigo é:


PETER HAMMILL
PROMETEU
AGRILHOADO

Porquê Prometeu? Ora, porque foi esta personagem mítica quem roubou o Fogo Celeste, mesmo nas barbas do Criador. Depois foi castigado, como se impunha. Peter Hammill imitou o herói do mito mas, como Fernando Pessoas bem acentuou, a posse do génio paga-se bem cara. Hammill nunca alcançou a glória que já há muito merece. A sua obra é conhecida apenas por um clube de iniciados, felizmente com cada vez mais sócios.
Peter Hammill é o romântico por excelência. Não no sentido degradado do termo, geralmente associado aos remoques de um Tony de Matos ou, mais modernamente, a um Vítor Espadinha, mas naquele, bem mais elevado, dos poetas do século passado. O genuíno poeta romântico é aquele que enfrenta, numa irremediável solidão, as forças sobrenaturais que o transcendem, sejam deuses ou demónios. No séc. XIX estes paladinos do eterno confronto entre o humano e a condição divina acabavam sempre tuberculosos, apaixonavam-se por rapariguitas andrajosas que invariavelmente tomavam pela Mulher ideal, embebedavam-se e drogavam-se muito e às vezes, por fastio ou verdadeiro desespero, suicidavam-se.
O nosso homem, mais prudente e avisado, escolheu antes escrever canções e gravar discos. As suas angústias existenciais e dilaceramento interior têm sido óptimos pretextos para a criação de alguns momentos decisivos na história dos songwriters ocidentais (mas há outros?). Além de sofredor nato, Hammill é um razoável pianista e guitarrista. Mas é a VOZ que faz a diferença. A voz e a maneira como a utiliza. São únicos e está tudo dito.
Passemos então aos discos e à sua descrição sucinta. Passemos também para um tom mais sério que o homem e a obra assim o justificam.
1971 – (O mesmo ano da edição de «Pawn Hearts») - «Fool’s Mate», em português, «cheque à pastora» aplicado no jogo do xadrez aos mais idiotas ou simplesmente inexperientes. Hammill tem a obsessão do xadrez e é um óptimo jogador sobretudo quando joga sozinho, o que acontece quase sempre. Canções da primeira infância, ainda optimistas como «Imperial Zeppelin» ou «Sunshine», mas ostentando já os germes de iminentes dramas interiores. Participa no disco um tal Robert Fripp, o senhor que se segue nos «Valores».

1973 - «Chameleon in the Shadow of the Night». O primeiro clássico. As paranóias em volta do estatuto do rockstar (que Hammill, de resto, nunca foi) em «German Overalls» e «Rock and Role». O fim dos fins, o Apocalipse, interior e planetário, nunca resolvido, nunca redentor, de «In the End» e a grande ode à solidão pintada em tons épicos e desamparados que é «In the Black Room».

1974 - «The Silent Corner and the Empty Stage». A capa interior mostra uma cruz no centro de uma garganta desmesuradamente aberta. A totalidade da obra do autor de «Pawn Hearts» constitui a sua própria crucificação. Mas Hammill também ataca: o vazio do mundo moderno em «Modern», as hipocrisias religiosas em «The Lie» ou a poluição tecnológica em «Red Shift». Mas também uma imensa e entristecida ternura na balada «Wilhelmina», deposição do futuro nas mãos de uma criança. «A Louse is not a Home» (um piolho não é uma casa) é uma longa e brilhante incursão na esquizofrenia mais terrível que é a da absoluta lucidez. Musicalmente o álbum marca uma aproximação mais notória ao som dos Van Der Graaf.

1974 - «In Camera». A obra máxima. Basta escutar «Tapeworm» - o som da grande explosão cósmica final ou a sequência final «Gog/Magog» (dois demónios do Apocalipse), mergulho definitivo nos abismos do inconsciente, o desvendar de todos os seus códigos e a agonia e dissolução final do «Eu» nas câmaras do Inferno. Aterrador e sublime.

1975 - «Nadir’s Big Chance». Nasce Ricky Nadir, alter-Ego de Hammill, primeiro dos punks. Guitarra em punho, blusão de cabedal, óculos escuros, revolta contra tudo e todos. A fuga para a frente do desespero terminal do álbum anterior. Um som genuinamente rock a quem John Lydon deve a paternidade dos Sex Pistols e um título de faixa que diz tudo: «The Institute of Mental Health, Burning.»

1977 - «Over». O disco das canções de amor, algumas das quais remisturadas para «The Love Songs». De amores fracassados, como não podia deixar de ser. Arranjos orquestrais e um tom geral de abandono bem representado pelo magnífico e pungente «Time Heals». O tempo curará realmente todas as feridas?

1978 - «The Future Now». A grande viragem. Sonoridades predominantemente electrónicas e canções voltadas para o lado de fora como «Energy Vampires» ou «Motorbike in Africa», cheias de sintetizadores e sequenciadores. Capa a preto e branco, positivo e negativo da personalidade do músico, num arranjo gráfico brilhante.

1979 - «PH7». Prossegue as vias abertas pelo álbum anterior. Novas e mais complexas incursões na electrónica como o som industrial da «Porton Down» ou as abstracções metafísicas no labirinto de «Mr. X» e «Faculty X», alienação de todos os sentidos numa vertigem sonora o nível dos melhores arranjos dos Van Der Graaf.

1980 - «A Black Box». A dualidade negro/branco resolve-se ao negro absoluto. Um tema ocupa a totalidade do segundo lado: «Flight», justaposição dos voos aeronáuticos àqueles outros voos, interiores e bem mais perigosos. A arte da pilotagem e as piruetas prenunciadoras do desastre final. «Black Box» é a caixinha que resta dos destroços onde ficam registadas as causas da catástrofe.

1981 - «Sitting Targets». Novamente os desastres, desta vez automobilísticos. O alvo humano, o boneco amarrado ao banco da frente, submetido a testes de aceleração e choque brutais. Se o conceito é brilhante, o resto assinala a exaustão da fórmula «Hammill», repetindo até à exaustão os temas e arranjos de sempre.

1981 - «Enter K». Hammill, num derradeiro esforço de camaleão, transforma-se no enigmático K. O último sopro inspirador vem, previsivelmente, dos «Blues» como é exemplarmente demonstrado em «Happy Hour».

1983 - «Patience», 1986 - «Skin». Dois álbuns que nada trazem de novo. Hammill a meio-gás procurando tardiamente e sem sucesso o reconhecimento em grande escala, recorrendo à via nem sempre mais aconselhável da facilidade. Pelo meio a gravação do duplo ao vivo «The Margin».

1987 - «And Close as This». Voz e piano simulado por computador. Baladas tristes e despojadas reduzindo ao essencial a beleza do canto e da música daquele que por esta altura se transformara já numa espécie de Mito amaldiçoado. «And Close as This» é o álbum da introspecção tranquila, o descanso do herói.

1988 - «Spur of the Moment». Gravado exclusivamente em CD. Explorações abstractas electrónicas realizadas inteiramente em computador, com a ajuda de Guy Evans.

1989 - «In a Foreign Town». O pior Hammill de sempre. Crítica social e política na sua vertente mais demagógica. A música resume-se à repetição sistemática dos truques e tiques do costume, despojos caricatos de um som que durante anos soube sempre manter-se original.
Registe-se ainda a participação no álbum de estreia de Robert Fripp, «Exposure» juntando a violência contida e envenenada do ex-King Crimson à violência mais directa do ex-Van Der Graaf. O resultado é avassalador em temas como «Chicago» ou «Disengage».
Finalmente a célebre ópera, há muito anunciada e nunca concretizada. Há uns quinze anos atrás Hammill afirmava faltar apenas compor dez minutos de música. Está difícil, hem, Peter?

P.S. – Peter Hammill esteve duas vezes em Portugal. Em 81 no pavilhão de Alvalade, na pele de Ricky Nadir e poucos anos mais tarde no Terreiro do Paço, associando-se, como bom looser que é, ao comício do PS no ano da sua estrondosa derrota eleitoral. Mas nessa noite Hammill e os seus anónimos amigos portugueses estavam bem mais longe…

2 comentários:

Anónimo disse...

Estive nesses 2 concertos que o Peter Hammill. Achei sofrível o do pavilhão de Alvalade, muito por culpa da acústica do recinto, mas também porque foi 1 concerto muito eléctrico. E como quem eu admirava eram os Van Der Graaf Generator e era para mim desconhecido o som dele a solo... O do Terreiro do Paço foi a todos os títulos simplesmente inesquecível.
Só uma correcção. O Peter esteve pelo menos mais uma vez em Portugal. Bem mais recentemente aqui: "25/01/2008 – O Festival Gouveia Art Rock 2008, realizar-se-á a 5 e 6 de Abril, e conta como cabeça de cartaz com os Van Der Graaf Generator, os representantes Portugueses serão os Beduínos a Gasóleo."

Cumprimentos

Tiago Carvalho disse...

Não é exactamente uma correcção, dado que o artigo foi escrito em 1989.
O nosso querido Fernando Magalhães já não se encontrava entre nós na data do Gouveia Art Rock (festival que, nesse ano, lhe prestou uma justa homenagem - ver etiqueta Gouveia Art Rock).
Obrigado pelo seu contributo.