23/10/2008

Faust - As estratégias do diabo

BLITZ

17.10.89
VALORES SELADOS

FAUST
AS ESTRATÉGIAS DO DIABO


Se há grupo que nos últimos 30 anos de música popular, soube guardar ciosamente os seus segredos, esse grupo foi certamente o dos Faust. Os seus membros sempre se esconderam num secretismo cerrado, ficando para a História os discos e as raras aparições ao vivo. Nestas últimas, conta quem viu, costumavam tocar na penumbra e rodeados de televisores ligados. Para se entreterem enquanto tocavam, diziam. Se a sua própria actuação não lhes agradava especialmente, limitavam-se pura e simplesmente a abandonar os instrumentos e a ver calmamente os seus programas preferidos.
Mas a lenda foi construída graças aos discos que gravaram. Em todos eles os Faust deixaram bem impressa a marca do génio. Entre 71 e 73 editaram quatro álbuns, correspondendo a outras tantas obras-primas. 16 anos depois da saída de «Faust IV», com que encerraram a sua existência oficial, poucos grupos se poderão orgulhar de terem alcançado os níveis de qualidade absoluta e originalidade radical que estes germânicos lograram atingir.

A Torre de Babel

Não é fácil definir a sua música. A audição de cada um dos discos revela-nos uma síntese de influências tão diversas como a canção pop, a música concreta, o free jazz, as sonoridades clássicas ou um humor corrosivo filiado na tradição Zappa. Todos estes registos são unificados e filtrados por uma abordagem específica e única para a época, traduzida numa utilização revolucionária das técnicas de mistura e gravação. Os Faust foram o primeiro grupo a utilizar o estúdio como instrumento musical. A sua música é uma gigantesca colagem de sons desmontados e voltados a montar as vezes necessárias até se atingir o resultado pretendido: uma música extremamente diversificada e complexa e, no entanto, perfeitamente coerente. O segredo dos Faust está na arte de juntar e harmonizar sons e palavras aparentemente irreconciliáveis. O 1.º álbum chamava-se simplesmente «Faust». Foi editado em 71 e provocou a perplexidade total. A começar pela capa e terminando na música, tudo era diferente do que até então era suposto um grupo pop fazer. A capa e o vinil eram totalmente transparentes, sobre os quais aparecia a radiografia de um punho fechado. Esta 1.ª edição esgotou rapidamente sendo a capa das edições seguintes já em cartão. Anos mais tarde a Recommended Records reeditava o disco com a capa original. Mas se a capa era original, que dizer da música? Era a grande pedrada no charco. O que os nossos ouvidos escutaram não se parecia com nada a que estivéssemos habituados. Era o 1.º grande golpe desferido nas convenções e tabus do Rock. O álbum abre com «Why don’t you eat carrots»: sobre uma massa electrónica zunindo de canal em canal, soavam os estertores finais de «All you need is love» e «Satisfaction», dos dois grandes mitos da época, os Beatles e os Stones. Sucediam-se rapidamente um solo de piano desafinado, gritos, sons de motorizada ou algo parecido, até o tema entrar em força de forma não menos esquisita. O 2.º tema, «Meadow Meal», cheio de reverberações e jogos de palavras, passava por um rock ultra pesado, terminando com um órgão de pedais soando melancolicamente sobre sons de trovoada. O 2.º lado é ocupado na íntegra por «Miss Fortune», tocado ao vivo em estúdio e absolutamente indescritível. A ideia geral é a de que todos os músicos se encontravam em adiantado estado de embriaguez. Pelo meio aparecem algumas melodias dos Beach Boys, tocadas em serra eléctrica. Um espanto e um directo bem dirigido aos preconceitos reinantes na época dos sinfonismos e progressismos vários. Em 72 é editado o álbum seguinte «So Far». Desta vez é tudo em negro: capa, disco e rótulo central, sem qualquer informação. A versão original continha uma série de gravuras alusivas a cada um dos temas. «So Far» é ainda mais estranho e diversificado que o seu antecessor. Sucedem-se temas magníficos como «It’s a Rainy Day, Sunshine Girl» de uma violência obsessiva, «So Far», mais industrial e ameaçador que todos os actuais industrialismos juntos, a beleza acústica de «On the Way to Albamae», as delirantes paródias de «Mamie is Blue» e «I’ve got my car and my TV» ou o blues degenerado de «In the Spirit». Em 89, «So Far» continua à frente de quase tudo. Descubram-no, ouçam-no e pasmem.

Os anos da virgindade

O grupo assina entretanto pela Virgin, com Richard Branson, nessa época, apenas preocupado em contratar todos os nomes importantes da música vanguardista europeia. O 1.º trabalho editado já com o novo selo é «The Faust Tapes», como o nome indica, uma recolha de material original não incluído nos dois primeiros álbuns. É uma colagem sonora nonstop, 42 minutos de inspiradíssima loucura, exemplo paradigmático do estilo e do génio do grupo. Os géneros mais heterogéneos sucedem-se numa cadência delirante, fazendo deste disco um precursor das técnicas posteriormente utilizadas, em novo contexto, por John Zorn. Experimentalismo radical, truques de gravação e mistura espantosos e melodias do outro mundo tornam «The Faust Tapes» numa peça fundamental da música do nosso século. O disco termina com a recitação, em francês e alemão de um texto surrealista, acompanhado unicamente por uma guitarra acústica. Parece simples? Escutem o resultado e abram a boca de espanto. Os Faust faziam maravilhas com os meios mais exíguos.
«Faust IV» é editado em 73, de novo pela Virgin. A formação original do grupo, até então constituída por Jean-Hervé Peron, Werner Diermaier, Joachim Irmler, Arnulf Meifert, Rudolf Sosna e Gunther Wusthoff, dissolve-se, saindo Diermaier, Meifert e Sosna, substituídos por Uli Trepte, vindo dos Amon Duul II e Peter Blegvad que viria posteriormente a formar os Slapp Happy.
«Faust IV» é o álbum da sedimentação de um estilo já então reconhecido nos meios mais vanguardistas. O som apresenta-se mais limado, a sequência das faixas é mais clássica, o choque é menor, em todos os aspectos. «Krautrock», uma divertida crítica ao então designado «Rock Alemão» ou «The Sad Skinhead», mais uma melodia perfeita das muitas que o grupo compôs, são dois momentos significativos de um álbum à altura dos anteriores.

A lenda de Fausto

Com «Faust IV» fechava-se um capítulo de ouro, escrito em apenas três anos por um grupo inesquecível. Nesses três anos os Faust tinham revolucionado toda a música popular. Os motivos da dissolução nunca foram tornados públicos. O mistério mantinha-se até ao fim. Ficaram a lenda e algumas colaborações dispersas de alguns dos seus membros. «Outside the Dream Syndicate» do radical Tony Conrad ou a gravação original do 1.º álbum dos Slapp Happy são as que merecem maior destaque. A partir de aí foi o silêncio.
Foi necessário esperar até 1986, ano em que a Recommended edita «Return of a Legend-Music & Elsewhere», com material inédito gravado já após a dissolução do grupo. Finalmente, em 88, a mesma Recommended edita ainda «The Last LP» também conhecido como «The Party Album», com honras de versão em CD. Este derradeiro testemunho dos lendários germânicos contém ainda alguns originais além de novas misturas de temas antigos. Ambos os discos são indispensáveis para a compreensão do alcance e da influência decisiva que os Faust exerceram na música do nosso tempo.
Hoje têm dignos continuadores nos Residents e nos Negativland. O canadiano Jocelyn Robert também se pode considerar como um dos seus mais brilhantes discípulos, levando às últimas consequências a arte da colagem sonora. Ainda uma referência para os Biota e a sua estética do ruído harmonioso. Foi pois a América quem melhor soube compreender a lição dos mestres. Os compêndios estão disponíveis para todos os interessados.
Para a semana Daevid Allen e o seu planeta Gong.

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