Pop Rock
25 SETEMBRO 1991
25 SETEMBRO 1991
O HOMEM, A BANANA E OS FÃS
Em 1988, Leonard Cohen, ilustre representante da ala romântico-depressiva da década anterior, gravou um disco intitulado “I’m Your Man”. Na capa aparece a segurar uma banana. Passados três anos, a Columbia, em colaboração com a revista francesa “Les Inrockuptibles”, reúne 18 artistas, entre desconhecidos e consagrados, para homenagear em vida o autor de “Songs from a Room”, no projecto colectivo “I’m Your Fan”.
A ideia de reunir vários nomes para interpretar a obra de um autor específico, tem precedentes. Recorde-se, entre outros, as produções de Hal Winner sobre a música de Nino Rotta (“Amarcord”, com Carla Bley, o pianista Jaki Byard, Chris Stein e Deborrah Harry, etc.), ou de Kurt Weill (“Lost in the Stars”, com Marianne Faithfull, Lou Reed, Kronos Quartet, John Zorn, Tom Waits, de novo Carla Bley, Richard Butler, etc.), ou de trabalhos dedicados à recriação da música dos Beatles, Velvet Underground, Beach Boys e Neil Young.
No caso do disco agora editado, trata-se, segundo a entidade promotora, de um tributo a Leonard Cohen visando “captar a atenção da juventude para o poeta-compositor-cantor” e ao mesmo tempo “anunciar a edição, em Janeiro de 1992, do novo álbum” do artista canadiano.
Artistas como John Cale, Nick Cave, Bill Pritchard, os Pixies ou os R. E. M., para além de assinar as respectivas versões, deixam-se fotografar com a banana. A partir de agora a juventude deixa de ter desculpas para ignorar a obra do mestre.
O homem
Nasceu em Montreal, Canadá, a 21 de Setembro de 1934. Começou por integrar a banda “country” The Buckskin Boys, aos 20 anos de idade, enveredando depois por uma carreira a solo que lhe viria a granjear a reputação de poeta e compositor depositário dos despojos amorosos e dos sonhos africanos de toda uma geração a quem custou a transição entre duas décadas.
Gravou o primeiro álbum em 1968, “Songs of Leonard Cohen” que incluía o clássico “Suzanne”. O Canadá encontrava um bom equivalente para Dylan, na pele do visionário, místico e incorrigível apaixonado que, álbum após álbum, viria a construir um dos pilares mais sólidos da tradição dos trovadores deste século. Possuidor de uma veia poética quase sempre pessimista, disseminada por dez livros e outros tantos discos – escreveu um dia: “Às vezes consigo experimentar a doçura da morte.” –, construiu uma religião pessoal, baseada na redenção pela dor e pela solidão, ás quais as sucessivas desilusões amorosas acrescentam uma carga de maior negritude. “Avalanche”, “The partizan”, “Joan of Arc”, “So long, Marianne” são algumas das canções para sempre imortalizadas nas palavras e na voz enigmáticas de um dos compositores-autores mais negligenciados de sempre. O disco de homenagem vem de algum modo repor a justiça e relançar a carreira de alguém contra quem o tempo nada pode, desde que haja uma princesa e um castelo a conquistar.
DISCOGRAFIA DE ÁLBUNS
Songs of Leonard Cohen (1968) – faixas A2, A4, B1 e B2 de “I’m Your Fan”
Songs from a Room (1968) – A5
Songs of Love and Hate (1970) – B3
Live Songs (1973)
New Skin for the Old Ceremony (1974) – A1, C2, C4 e D2
Death of a Ladies’ Man (1978) – B4 e C5
Recent Songs (1979)
Various Positions (1984) – D4
I’m Your Man (1988) – A3, C1, C3, D1 e D3
A banana
Fruto tropical (do género bacáceo), muito nutritivo e apreciado, produzido pelas bananeiras (in “Dicionário da Língua Portuguesa”, Porto Editora, 1989). Ainda segundo a mesma obra, pode significar uma “ficha eléctrica individual” ou uma “pessoa sem energia, indolente, palerma”. Observando as fotografias, fica-se com a ideia que o termo se aplica aqui na primeira acepção.
Em música, a banana tem sido várias vezes utilizada, em diferentes ocasiões e contextos, acrescentando um sabor exótico e uma imagem geralmente picante à arte dos sons. A sua forma peculiar presta-se, com alguma frequência, a piadas de carácter erótico ou a interpretações mais ou menos dúbias sobre as intenções dos seus utilizadores. Citando alguns casos, logo ocorre a figura inconfundível de Carmen Miranda, que, entre outros frutos e legumes, recorria à banana como enfeite ou como chapéu. Também Josephine Baker costumava usar um cinto com bananas, penduradas à volta da cintura. É célebre a obsessão do excêntrico Kevin Ayers por este fruto: dois dos seus álbuns têm como título “Bananamour” e “Yes, we Have Mananas, so get your Mananas Today”; costumava além disso jogar xadrez com bananas em vez das peças habituais. Os Velvet Underground não hesitaram, por seu lado, em ilustrar a sua obra-prima “Velvet Underground & Nico” com a famosa hiper-realista de Andy Warhol na capa. Inúmeras letras mencionam a banana. Mencione-se ao acaso a enigmática asserção dos Faust, em “So Far”: “Daddy take a banana, tomorrow is sunday.” O assunto não é pacífico. Se a oportunidade surgir, trataremos dele de forma mais pormenorizada, se possível com fotografias detalhadas.
Os fãs, faixa a faixa
The House of Love
“Who by fire”Aproximação convincente ao tom habitual de Cohen, recriando no acompanhamento da guitarra acústica, o insustentável peso da dor e a questão metafísica essencial de “saber quem”. A própria voz de Guy Chadwick imita com bastante credibilidade a do canadiano. Como se a paisagem toda pudesse ser reproduzida num postal.
Ian McCulloch
“Hey, that’s no way to say goodbye”A mesma despedida angustiada (tema omnipresente na obra de Cohen). Suave e interiorizada na versão original. Electrificada e arranhada na do vocalista dos Echo and the Bunnymen, que optou pela táctica fácil da transposição, através do decalque nota a nota da melodia, com a tónica no trio convencional guitarra-baixo-bateria. O efeito é eficaz, mas pouco criativo. Há porventura outras formas de dizer adeus.
Pixies“I can’t forget”Reconciliação bem sucedida entre os intimismos de outrora com a descoberta da tecnologia digital. Os sintetizadores tomam conta das operações sem que a electricidade consiga destruir a magia de antanho. Curiosa a inflexão dos Pixies que, ao invés, procuraram na acidez das guitarras o registo adequado para descrever as imagens de uma América mítica, sempre em fuga, a correr contra o Futuro.
That Petrol Emotion
“Stories of the street”Um dos grandes temas de Leonard Cohen. Sobre a arte do equilíbrio no fio da navalha. Entre o suicídio e o amor. Passagem da ponte entre duas épocas, entre o céu e o abismo. Passagem de nível. Passagem de testemunho. O fim do sonho americano. A rosa esmagada na vertigem da auto-estrada. E um homem do tamanho de uma estrela, perdido no labirinto do “metro”, à procura de um olhar. Os That Petrol Emotion respeitam essa angústia, como se seu fosse também o dia derradeiro.
The Lilac Time“Bird on the Wire”Ainda uma canção sobre a dilaceração, dos temas preferidos do autor. Os Lilac Time acentuam o ambiente litúrgico, substituindo a profundidade trágica do violoncelo, no original, por uma abertura espacial fabricada no estúdio, que consegue trazer para o tema alguma claridade. A tortura interior tornada veículo privilegiado ao serviço da pop melancólica.
Geoffrey Oryema
“Suzanne”Quem nunca trauteou, ao menos uma vez na vida, a melodia simples e linear de “Suzanne”? Ou com “ela” aprendeu os primeiros acordes na guitarra? Canção de entrega, de corpos tocados pelo sopro do espírito, de luzes doiradas reflectidas no espelho de rios infinitos, como eram todos os rios no sonho colectivo dos 60. Oryema acrescentou-lhe a materialidade de um baixo pneumático, desceu a altura da voz até quase ao gutural e fez, como um feiticeiro, que tudo soasse como se fosse a primeira vez. Sub-repticiamente, a África irrompe nos últimos segundos, subvertendo ainda mais as reverberações etéreas do original.
James
“So long, Marianne”Das canções mais conhecidas e divulgadas do compositor, sobre o tema eterno do amor. No caso de Cohen, quase sempre infeliz. Mas, como em literatura, o amor feliz não tem história. Pessimista por natureza, lá vai dizendo que por causa dela até se esqueceu de rezar aos anjos e que por isso (e por tantas outras incontáveis desditas) se sente frio “como uma lâmina de barbear”. O banjo, a percussão martelada e o violino marcam a cadência da viagem. Interminável. Tornada irrisória pelos James que lhe subtraem a energia, descartando-se da tarefa com a solicitude competente de um funcionário público.
Jean-Louis Murat“Avalanche IV”
O poema fala de qualquer coisa sentida como monstruosa. De ser humano, nos maus dias. Metáfora sobre a demanda do bem, da ideia platónica de “bem”, da luz oculta nas trevas, do amor incrustado na pedra do orgulho. Leonard Cohen canta o impossível super-homem que se ergue acima das leis dos outros homens, para finalmente tombar do pedestal, também ele sensível ao frémito provocado pelo confronto com o arquétipo feminino. Enfim, mesmo os deuses não conseguem resistir a um rabo de saias, Jean-Louis Murat passa o mito para francês (sempre dá um ar mais intelectual), junta-lhe um ritmo de pavoroso mau gosto, do tipo banda de arraial e apresenta, orgulhoso, o resultado, ao júri da Eurovisão. Cohen a metro, não.
David McComb & Adam Peters“Don’t go home with your hard-on”Uma fraqueza estimulante. Espécie de “Ob-la-di ob-la-da” com caução cultural, com direito a fanfarra e serviço de bufete. O tema fala de coisas de superfície, de “salões de beleza”, de “eye-lid”, de máscaras de baile que encobrem a carne. No disco em que Cohen troca os lamentos soluçados pela varinha mágica dos arranjos rítmicos de Phil Spector, sabe bem escutar a sua voz liberta do divã do psiquiatra. Quanto aos discípulos, trocam a fanfarra por sininhos de Natal e por acessos de acne electrónico em que cabe o catálogo inteiro de efeitos vocais. Como se aos meninos tivesse sido dado o estúdio de presente.
R. E. M.“First we take Manhattan”Por incrível que pareça, Leonard Cohen soa aqui como os Yello. Escute-se a maneira como canta “Firts we take Manhattan, than we take Berlin” ou “you loved me as a loser”. Repare-se como as caixas de ritmo fazem a festa, com a pista de dança no horizonte. Uma salada exótico-electrónica, cheia de corantes. Para os incondicionais da primeira fase, é uma tragédia. Talvez uma traição. Quem não tem culpa nenhuma são os R. E. M. que, como acontece em tudo o que tocam, alcançam a perfeição. Michael Stipe e companheiros restituem ao tema a dignidade perdida. Não se trata aqui tanto de uma versão, mas da apropriação total, e uma assimilação completa do essencial, reposto de forma gloriosa num outro universo.
Lloyd Cole
“Chelsea hotel”Vintage Lloyd Cole, demasiado aprisionado ao que dele se esperaria. As típicas sinuosidades vocais não disfarçam a falta de imaginação. Entre a homenagem de Cohen a Janis Joplin e o “pastiche” de Dylan, resta a história que só alguns viveram mas muitos procuram contar.
Robert Forster (ex-Go Betweens)
“Tower of song”Muito estranho, o original. Fantasmagórico. A voz do trovador a 16 r.p.m. Uma pianola desafinada no quarto dos brinquedos. Um balanço dolente com referências a Hank Williams e ao “voodoo”. Magia a que Forster retira a negritude, prescindindo dos mistérios e filtrando a melodia por um “country blues” escorreito e poderoso. A virtude reside neste caso na tradução radical de um tema fechado sobre si mesmo. E na diferente valorização de um texto impermeável a leituras redutoras.
Peter Astor (ex-Weather Prophets)
“Take this longing”Clonagem razoável da voz de Leonard Cohen. À volta tudo é mais gelado, com guitarras milimétricas soltas na imensidão reverberada do arcanjo, penetrada, ao longe, pelos acentos e acenos de Heidi Berry. Importante: o espírito não é atraiçoado. Mesmo que os ritmos automáticos desempenhem metade da tarefa.
Dead Famous People“True love leave no traces”Anos 50 revisitados. Memórias de um tempo de beijos roubados ao crepúsculo. De brilhantina, tranças atrevidas e saias de euforia. De automóveis berrantes e pranchas de “surf” quando o rock’n’roll não se envergonhava de ser meloso. De namoros iguais a Hollywood. De dias mais felizes. Um Cohen optimista numa história cujo “happy end” os Dead Famous People confundem com lantejoulas de casino. O órgão de coro e as vozes femininas não escondem os seus amores pelas praias cinzentas de Isabel Antenna. Inofensivo.
Bill Pritchard“I’m your man”
Parece Lou Reed mas não é. Bill Pritchard, então, como de costume, exagera. Swing arrastado, com simulação de violino e trompete “mariachi” sintetizados. Em todo o caso, um arranjo brilhante. Como se Pritchard se tivesse infiltrado no organismo de Cohen para melhor lhe sugar a alma e o sangue. Elegia do “crooner” imortal, requintado, inteligente e eternamente sedutor. Afinal a mesma, outra, história de amor sempre por reinventar.
Fatima Mansions“A singer must die”Inusitada a forma como os Fatima Mansions, fazendo jus à designação que ostentam, retiram todo o peso à canção, atirada para o alto por um vibrafone em levitação, enquanto a manivela do realejo acompanha cada volta da noite. Umas das surpresas agradáveis do disco que deixa antever as salas mais escuras das “mansões de Fátima”.
Nick Cave and the Bad Seeds“Tower song”Peixe abissal habituado à escuridão das profundidades (recorde-se a anterior versão de um tema de Cohen, “Avalanche”), Nick Cave faz o que quer da canção, massacrando-a até ao limite do suportável e obrigando-a a respirar ao seu próprio ritmo. Entre o grotesco e o sublime. Para Nick Cave, a música é sinónimo de carnificina e a tragédia carnaval. Rock’n’roll descarnado, em chaga. Tal como Foetus. Ou Jim Morrison, com quem Cave aqui por vezes parece confundir-se num perturbante fenómeno de mimetismo. Sobretudo nos interlúdios declamados a fazerem lembrar a litania trágica de “The end”. Regressão luxuriante à matriz do rock, deixando um rasto de destruição pelo caminho (incluindo a do ícone Presley, uma pouco à maneira paródica dos Dread Zeppelin). A harmonia da demência.
John Cale“Hallelujah”Almas gémeas, Cohen e Cale partilham as regiões do despojamento e da desolação. No fim, falam com Deus. O “espiritual” salmódico do primeiro descarna-se ainda mais, até nada restar, no segundo, senão o piano, a voz e a fé, nas palavras e na devoção ao “Lord of song” a que os versos aludem. Cale fez o mais simples e o difícil. Como diz a letra: “Não podia sentir, por isso tentei tocar.” Tocou no âmago. Onde floresce a rosa, no centro da cruz.
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