8 MAIO 1991
SEM PINTA DE SANGUE
THIS MORTAL COIL
Blood
2 x LP e CD, 4AD, distri. Anónima
Derradeira etapa da trilogia iniciada em 1984 com “It’ll End in Tears”, continuada, passados dois anos, com o também duplo “Filigree and Shadow” e agora concluída (por vontade expressa do seu mentor Ivo Watts Russell) em tons sanguinolentos. A fórmula, rigorosamente idêntica à das anteriores operações, parece ter esgotado as suas virtudes. Operação que, desta vez, talvez por deficiente cicatrização, provocou maior sangria, colorindo de hemoglobina canções já por natureza a atirar para o mórbido. Ivo Watts-Russell continua como cirurgião de serviço, preocupado em dissecar o lado mais sombrio da natureza humana. Mas como há sempre quem goste de se imiscuir nos recantos mais escuros da existência, resolveu envernizá-la de dourados e roxos funerários, conferindo-lhe a dignidade de uns Moody Blues dos anos 90. Projecto de início inovador, na maneira como traduzia em luxuriantes réquiens as agruras do mundo, sobretudo na fase intermédia de “Filigree and Shadow”, em que atingiu o pico de criatividade, chegado a “Blood” parece ter enveredado por um beco sem saída. Restava a Ivo apurar a já de si apuradíssima complexidade instrumental e os requintes de produção, acrescentando-lhes mais um efeito, um apoio vocal, uma nota suplementar de exotismo.
Chegados a este ponto, cabe esclarecer que não se trata de um álbum susceptível de atirar imediatamente para o caixote do lixo. Longe disso. Possui os seus encantos, mais sensíveis e apetecíveis em certas ocasiões, saboreável de preferência num quarto mal iluminado, no fim de uma tarde chuvosa.
Naipes de cordas lúgubres e pomposos, sintetizadores que rebentam a escala no limite dos graves, vozes dilaceradas cantando angústias existenciais e as insuportáveis agonias que o amor e a vida em geral sempre comportam, constituem o pano de fundo musical à volta do qual se vão delineando as canções, intercaladas por curtas divagações experimentais, à semelhança do que acontecia nos álbuns anteriores. Canções iluminadas a luz negra pelas vozes de Deirdre Rutkowski, Caroline Crawley (dos Shelleyan Orphan) e Dominic Appleton (Breathless). Luz que somente se aclara na sublime transcendência das vozes de Kim Deal e Tanya Donnelly – num dos dois emas compostos para este disco pelo malogrado Chris Bell (da banda de Alex Chilton, Big Star), “You and your sister” –, radiosas na simplicidade de um arranjo construído sobre o dedilhar de uma guitarra acústica (sintética, samplada, mas que importa aqui a ilusão?...) e a omnipresente secção de cordas. O leque de compositores é variado e revelador, aqui sim de uma ousadia do projecto.
Para além de Chris Bell, recuperam-se canções de Randy California (“Nature’s way”), Peeter Nooten (“Several times”), Mary Maragret O’ Hara (“Help me lift you up”) e Syd Barrett (“Late night”). Pense-se em psicadelismo, na sua vertente mais obscura (e existiu outra?...), no gosto pela tragédia, na crença romântica de que a redenção se encontra somente para além dos portais da dor e da decadência. Imagine-se um velório. As alucinações de um quadro de Bosch. Lamentos na escuridão. Os This Mortal Coil, irremediavelmente atraídos pelo lado escuro do universo rock, de tanto se banharem no sangue alheio, acabaram exangues. O que lhes restava de vitalidade, verteram-no nas canções amargurados de “Blood”. Ideal para vampiros e necrófilos. ***
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