25 SETEMBRO 1991
LP’S
O SILÊNCIO DA MEMÓRIA
VAN MORRISON
Hymns To The Silence
LP duplo/CD, Polydor, distri. Polygram
Nestas idades é típico: a confrontação do homem e do artista consigo mesmo e com aquilo em que acredita ou passou a acreditar. Será que vale a pena fazer música? Onde está a felicidade? A guitarra terá sido afinada correctamente? A conta do gás já está paga? Quem sou eu? (Eu não, ele, Van Morrison.) Onde está Deus, que não me liga nenhuma? Que é feito das “royalties” atrasadas? Eis algumas das questões usuais colocadas pelo artista em crise existencial que, por vezes, resultam em obras artisticamente válidas e noutras numa indiscrição imposta ao ouvinte, nas tintas para o casamento fracassado ou as fracas vendas do disco anterior.
Geralmente o que se passa é o arrependimento pelos excessos e pecados da juventude e uma conversão tardia à divindade mais próxima. Foi assim por exemplo, com Patti Smith. Foi assim com Nick Cave. Será assim enquanto houver um cigarro suspeito, uma garrafa por abrir ou uma “groupie” apetitosa à espera. E uma igreja ao fundo da rua ou uma editora disposta a vender as confissões.
Com Van Morrison é um pouco diferente. Não se trata tanto de uma introspecção culpabilizadora e da consequente necessidade de autopunição, mas de uma confrontação com o tempo passado em que se era feliz e de um desfiar de ladainhas em louvor ao “Lord”, bem como a evocação obsessiva e nostálgica do paraíso perdido. São constantes alusões directas a “God”, a “Lord Jesus”, a “heavens” distantes, “missions” a cumprir, e “graces” a alcançar.
Todo o segundo disco é, neste aspecto, como que um missal, um testamento espiritual do autor na sua busca incansável de melhores dias. Há grandes ensinamentos: “By his grace” assegura-nos de que o paraíso não fica ao virar da esquina e que é preciso viver a religião “por dentro”.
“Hymns to the Silence” rivaliza com os Yes, juntando de uma penada, em “Close to the One”, “Going for the One” com “Close to the edge”. “Be thou my vision” poderia ser solene e convencer-nos a comprar os panfletos. Infelizmente, as impressões de um esmagamento místico, que as alusões ao “great father” ou “high king of heaven” (e outras de tal forma profundas que nem sequer as podemos mencionar, sob pena da abalarmos os alicerces interior do leitor) poderiam provocar, são irremediavelmente anuladas pelo “da da da da da” final.
Musicalmente falando, o disco não traz novidades, em relação ao anterior “Enlightment” – os “rhythm’n’blues” continuam a constituir a principal fonte onde Van Morrison vai beber inspiração, aqui ainda mais acentuados pelo recrutamento do antigo colega Georgie Fame, omnipresente nas colaborações “gospel” do órgão e do piano.
“Hymns to the Silence” estende-se em demasia por esse tom de introspecção religiosa, alternando com as típicas baladas amorosas ou as inevitáveis concessões às origens irlandesas, traduzidas nas entoações da voz e no acompanhamento orquestral dos “habitués” Chieftains, em temas como o já citado “Be thou my vision” e “I can’t stop loving you”. Curiosamente, Derek Bell, harpista dos Chieftains, toca sintetizador num pare de temas.
Sobressaem do naipe de canções “On Hyndford street” e “So complicated”. O primeiro, um mergulho no Passado, em que as palavras, estranhamente declamadas, num registo vocal próximo do de William Burroughs, sobre um sintetizador a imitar um longínquo órgão de igreja, nos transportam até lugares e a uma época perdidos para sempre. Farrapos de um tempo em que se ouvia a Rádio Luxemburgo, os “blues” e Debussy no terceiro programa, se lia Kerouak, se passeava de autocarro até Hollywood e as tardes à beira do rio eram eternas. Nos tempos anteriores ao rock’n’roll, quando se vivia sem dar conta de se estar a sonhar. Aqui sim, o silêncio invade-nos a memória, e a presença de Deus, que “transporta e ilumina”, torna-se realidade. No registo oposto, “So complicated” evoca o ambiente das “big bands” dos anos 40, de Benny Goodman, Duke Ellington e Woody Herman, servindo de contraponto ao despojamento eufórico do texto. Por vezes, a voz de Van Morrison soa rouca e etilizada, à maneira de Tom Waits, como em “Pagan streams”. O espectro de Bob Dylan assoma em “Why must I always explain?”. No cômputo geral, “Hymns to the Silence” sugere uma melancolia que amiúde se confunde com monotonia. Como diria David Byrne: “Heaven is a place where nothing ever happens.” ***
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