27/10/2008

King Crimson - Na corte do Rei Carmesim

BLITZ

2.1.90
VALORES SELADOS

KING CRIMSON

NA CORTE DO REI CARMESIM
Ainda se cantavam a paz e o amor nos finais da década marcada pela geração hippie quando Robert Fripp e os seus pares entraram a matar, anunciando de forma violenta o advento do homem esquizóide do século XXI. Era de mais para a época. Os King Crimson ficavam definitivamente marcados com o estigma de grupo maldito. Fripp nunca se importou muito com isso. A sua guerra era outra.


Muito se escreveu e historiou já acerca desta banda, uma das mais marcantes e decisivas na definição das novas estéticas da década agora prestes a findar. Será pois talvez mais interessante procurar levantar um pouco o véu que cobre algumas das ocultas intenções do seu líder e mentor espiritual, Robert Fripp.
Logo no primeiro álbum eram já visíveis alguns indícios das principais preocupações e motivações do guitarrista e compositor do grupo. O rosto e o sinal da personagem desenhada na capa, os títulos sintomáticos de algumas das canções (entre as quais a já citada «21st Century Schizoid Man» e a que dava o nome ao disco: «In the court of the Crimson King») e as tonalidades majestosas e sombrias da música apontavam inequivocamente para uma personagem que era nem mais nem menos que o próprio diabo, padrinho e mestre de Fripp.
Peter Sinfield, letrista e encarregado de todo o aspecto gráfico e visual da banda, era o pólo oposto à negritude diabólica daquele. A tensão entre estas duas polaridades resultaria nalguns trabalhos fabulosos que viriam a constituir a fase inicial da banda. Depois do álbum de estreia, «In the Wake of Poseidon» e o deslumbrante «Lizard» (ambos de 70) marcam o apogeu desta fase de contornos classizantes e sinfónicos. No primeiro as tendências mefistofélicas do guitarrista, bem expressas em temas como «Pictures of a City» ou «The Devil’s Triangle», são contrabalançadas pelos dois poemas que abrem e fecham o disco, «Peace-A Beginnig» e «Peace-An Ending», da autoria de Peter Sinfield.
Mas seria com «Lizard» que os King Crimson atingiriam o ponto culminante da sua arte. A imprensa britânica, deslumbrada, comparava-os com os grandes autores da música clássica. O Rock (seria?) alcançava, com os Crimson e outras bandas importantes da então designada «Música Progressiva», o estatuto e as honras da maioridade e paridade em relação aos seus vizinhos eruditos.
«Lizard» é também o álbum mais «branco» de toda a sua discografia. Por uma vez o diabo ficava fora da jogada. Memorável o combate travado entre a guitarra demoníaca de Fripp e a voz celestial de Jon Anderson, convidado especial no tema épico que ocupa a totalidade do segundo lado. Do outro, a entrada grandiosa do Mellotron e do sax de Mel Collins (mais tarde nos Camel) em «Circus», as perturbantes sonoridades e alusões ao free-jazz de «Indoor Games», a subtil paródia aos Beatles em «Happy Family» e a balada de tons medievais que é «Lady of the Dancing Water». Produção impecável, arranjos esplendorosos e executantes excepcionais (que incluem como convidado o pianista de jazz, Keith Tippett) dão a esta obra o cunho da perfeição.
Em «Islands» (71) Fripp ultrapassa os limites, tornando-se como compositor de música clássica «a sério». O tom geral torna-se demasiado óbvio, com a inclusão da soprana de Ópera, Paulina Lucas e um prelúdio instrumental de música de câmara com Fripp tocando órgão de pedais.
«Earthbound», gravado ao vivo nos E.U.A., sofre de um som péssimo mas tem a vantagem de nos dar a perceber toda a energia que a banda desenvolvia em palco, com a guitarra de Fripp arrasando tudo e todos em torrentes eléctricas demenciais. A nova versão de «21st Century Schizoid Man» causa arrepios.
Os King Crimson fecham entretanto para balanço, Fripp viria a ressurgir mais alguns anos mais tarde, orientando definitivamente a sua música segundo as directivas do senhor das trevas. «Larks’ Tongues in Apic» (73), «Starless and Bible Black» (74) e «Red» (74) constituem a fase mais negra da banda. Entram e saem constantemente novos músicos, incapazes de suportarem a tensão acumulada e a tremenda energia exigida nas prestações ao vivo. Apenas Fripp se mantém inexorável, cumprindo escrupulosamente as ordens do chefe. «Red» tem momentos quase insustentáveis, com a guitarra eléctrica e a secção rítmica formada pelo baixo de John Wetton e a bateria de Bill Bruford sem darem um minuto de descanso, numa espécie de Heavy-Metal mais sofisticado. Com «Red» os King Crimson atingem novo ponto crítico e novamente é dado o toque a dispersar, não sem entes editarem mais um disco gravado ao vivo nos E.U.A., intitulado obviamente «U.S.A.».
Fripp confessa-se então à beira da loucura e retira-se para um mosteiro para receber os ensinamentos de J.G. Bennett, discípulo de Gurdjieff, cujas doutrinas esotéricas eram o suporte teórico ideal para os seus futuros projectos musicais.
Práticas mágicas e rituais, exercícios de auto-disciplina e a aprendizagem de novas técnicas (de guitarra e não só…) impelem o músico para uma atitude agora declaradamente luciferina. Domínio da dor, o sofrimento como forma de ascese ou a utilização fria e sistemática da inteligência em detrimento das emoções conduzirão a partir de agora toda a sua vida e obra.
O modo como Fripp toca a sua guitarra é exemplar desta nova atitude. A energia é agora perfeitamente canalizada e contida, jamais explodindo em clímaxes libertadores. Exercício tântrico. Toda a energia, sexual ou emocional, é contida e dirigida para os centros mentais superiores. Como consequência, o aumento de poder e de uma certa forma de lucidez e o crescente controlo que o músico vai progressivamente adquirindo, sobre si próprio e (mais subliminarmente) sobre os outros.
Grava entretanto, juntamente com Brian Eno, os álbuns «No Pussyfootin’» (74) e «Evening Star» (75), utilizando pela primeira vez a técnica das «Frippertronics». «Evening Star» é, ainda hoje, para quem o souber escutar e perceber, dos álbuns mais terríveis e diabólicos que alguma vez foram gravados. «Index of Metals» desvela-nos implacavelmente a beleza gelada do mais terrível dos Infernos, os da inteligência que se auto-devora nos labirintos do seu próprio orgulho e desmesura. Fripp foi ainda um dos precursores das técnicas de inversão.
Não quero para já adiantar mais sobre este assunto. A electricidade e a música sempre foram bons condutores para a passagem de energia, seja ela positiva ou negativa. Magia, pois claro, neste caso melhor dizendo escuro, pois que de magia negra se trata. O trivial, nos tempos que correm, em algumas das correntes da música actual. Quanto ao resultado final de tudo isto só Deus o decidirá.
A trilogia final dos King Crimson, novamente reciclados para os anos oitenta, é constituída por mais três álbuns: «Discipline» (81), «Beat» (82) e «Three of a Perfect Pair» (84). Fripp é ultrapassado pela rapidez dos acontecimentos e pelos seus discípulos, nas artes diabólicas. Os citados álbuns são «apenas» bons, reunindo como sempre excelentes executantes, como Tony Levin ou Adrian Belew.
Hoje é um pacato cidadão casado com a senhora Toyah Wilcox e dá aulas regularmente na sua Winbourne natal.
Uma referência final para os álbuns a solo, exceptuando o primeiro, «Exposure», exercícios de estilo de «Frippertronics» apoiados em manifestos teóricos de tom apocalíptico e profético. Duas vozes dão vida e entusiasmo aos dois primeiros trabalhos: as de Peter Hammill em «Exposure» e de David Byrne em «God Save the Queen/Under Heavy Manners». Dos restantes que venha o diabo e escolha…

3 comentários:

Barmen disse...

Caramba! Li esse texto enquanto ouvia Starless and Bible Black!

Anónimo disse...

Caraio, então Fripp era satanico!!! o.O

Eduardo Rodrigues Vianna disse...

Rapaz! Essa música em especial, In The Court of Crimson King, é trilha sonora da minha vida e talvez o rock mais belo que conheço.