BLITZ
2.1.90
VALORES SELADOS
KING CRIMSON
NA CORTE DO REI CARMESIM
Ainda se cantavam a paz e o amor nos finais da década marcada pela geração hippie quando Robert Fripp e os seus pares entraram a matar, anunciando de forma violenta o advento do homem esquizóide do século XXI. Era de mais para a época. Os King Crimson ficavam definitivamente marcados com o estigma de grupo maldito. Fripp nunca se importou muito com isso. A sua guerra era outra.
Muito se escreveu e historiou já acerca desta banda, uma das mais marcantes e decisivas na definição das novas estéticas da década agora prestes a findar. Será pois talvez mais interessante procurar levantar um pouco o véu que cobre algumas das ocultas intenções do seu líder e mentor espiritual, Robert Fripp.
Logo no primeiro álbum eram já visíveis alguns indícios das principais preocupações e motivações do guitarrista e compositor do grupo. O rosto e o sinal da personagem desenhada na capa, os títulos sintomáticos de algumas das canções (entre as quais a já citada «21st Century Schizoid Man» e a que dava o nome ao disco: «In the court of the Crimson King») e as tonalidades majestosas e sombrias da música apontavam inequivocamente para uma personagem que era nem mais nem menos que o próprio diabo, padrinho e mestre de Fripp.
Peter Sinfield, letrista e encarregado de todo o aspecto gráfico e visual da banda, era o pólo oposto à negritude diabólica daquele. A tensão entre estas duas polaridades resultaria nalguns trabalhos fabulosos que viriam a constituir a fase inicial da banda. Depois do álbum de estreia, «In the Wake of Poseidon» e o deslumbrante «Lizard» (ambos de 70) marcam o apogeu desta fase de contornos classizantes e sinfónicos. No primeiro as tendências mefistofélicas do guitarrista, bem expressas em temas como «Pictures of a City» ou «The Devil’s Triangle», são contrabalançadas pelos dois poemas que abrem e fecham o disco, «Peace-A Beginnig» e «Peace-An Ending», da autoria de Peter Sinfield.
Mas seria com «Lizard» que os King Crimson atingiriam o ponto culminante da sua arte. A imprensa britânica, deslumbrada, comparava-os com os grandes autores da música clássica. O Rock (seria?) alcançava, com os Crimson e outras bandas importantes da então designada «Música Progressiva», o estatuto e as honras da maioridade e paridade em relação aos seus vizinhos eruditos.
«Lizard» é também o álbum mais «branco» de toda a sua discografia. Por uma vez o diabo ficava fora da jogada. Memorável o combate travado entre a guitarra demoníaca de Fripp e a voz celestial de Jon Anderson, convidado especial no tema épico que ocupa a totalidade do segundo lado. Do outro, a entrada grandiosa do Mellotron e do sax de Mel Collins (mais tarde nos Camel) em «Circus», as perturbantes sonoridades e alusões ao free-jazz de «Indoor Games», a subtil paródia aos Beatles em «Happy Family» e a balada de tons medievais que é «Lady of the Dancing Water». Produção impecável, arranjos esplendorosos e executantes excepcionais (que incluem como convidado o pianista de jazz, Keith Tippett) dão a esta obra o cunho da perfeição.
Em «Islands» (71) Fripp ultrapassa os limites, tornando-se como compositor de música clássica «a sério». O tom geral torna-se demasiado óbvio, com a inclusão da soprana de Ópera, Paulina Lucas e um prelúdio instrumental de música de câmara com Fripp tocando órgão de pedais.
«Earthbound», gravado ao vivo nos E.U.A., sofre de um som péssimo mas tem a vantagem de nos dar a perceber toda a energia que a banda desenvolvia em palco, com a guitarra de Fripp arrasando tudo e todos em torrentes eléctricas demenciais. A nova versão de «21st Century Schizoid Man» causa arrepios.
Os King Crimson fecham entretanto para balanço, Fripp viria a ressurgir mais alguns anos mais tarde, orientando definitivamente a sua música segundo as directivas do senhor das trevas. «Larks’ Tongues in Apic» (73), «Starless and Bible Black» (74) e «Red» (74) constituem a fase mais negra da banda. Entram e saem constantemente novos músicos, incapazes de suportarem a tensão acumulada e a tremenda energia exigida nas prestações ao vivo. Apenas Fripp se mantém inexorável, cumprindo escrupulosamente as ordens do chefe. «Red» tem momentos quase insustentáveis, com a guitarra eléctrica e a secção rítmica formada pelo baixo de John Wetton e a bateria de Bill Bruford sem darem um minuto de descanso, numa espécie de Heavy-Metal mais sofisticado. Com «Red» os King Crimson atingem novo ponto crítico e novamente é dado o toque a dispersar, não sem entes editarem mais um disco gravado ao vivo nos E.U.A., intitulado obviamente «U.S.A.».
Fripp confessa-se então à beira da loucura e retira-se para um mosteiro para receber os ensinamentos de J.G. Bennett, discípulo de Gurdjieff, cujas doutrinas esotéricas eram o suporte teórico ideal para os seus futuros projectos musicais.
Práticas mágicas e rituais, exercícios de auto-disciplina e a aprendizagem de novas técnicas (de guitarra e não só…) impelem o músico para uma atitude agora declaradamente luciferina. Domínio da dor, o sofrimento como forma de ascese ou a utilização fria e sistemática da inteligência em detrimento das emoções conduzirão a partir de agora toda a sua vida e obra.
O modo como Fripp toca a sua guitarra é exemplar desta nova atitude. A energia é agora perfeitamente canalizada e contida, jamais explodindo em clímaxes libertadores. Exercício tântrico. Toda a energia, sexual ou emocional, é contida e dirigida para os centros mentais superiores. Como consequência, o aumento de poder e de uma certa forma de lucidez e o crescente controlo que o músico vai progressivamente adquirindo, sobre si próprio e (mais subliminarmente) sobre os outros.
Grava entretanto, juntamente com Brian Eno, os álbuns «No Pussyfootin’» (74) e «Evening Star» (75), utilizando pela primeira vez a técnica das «Frippertronics». «Evening Star» é, ainda hoje, para quem o souber escutar e perceber, dos álbuns mais terríveis e diabólicos que alguma vez foram gravados. «Index of Metals» desvela-nos implacavelmente a beleza gelada do mais terrível dos Infernos, os da inteligência que se auto-devora nos labirintos do seu próprio orgulho e desmesura. Fripp foi ainda um dos precursores das técnicas de inversão.
Não quero para já adiantar mais sobre este assunto. A electricidade e a música sempre foram bons condutores para a passagem de energia, seja ela positiva ou negativa. Magia, pois claro, neste caso melhor dizendo escuro, pois que de magia negra se trata. O trivial, nos tempos que correm, em algumas das correntes da música actual. Quanto ao resultado final de tudo isto só Deus o decidirá.
A trilogia final dos King Crimson, novamente reciclados para os anos oitenta, é constituída por mais três álbuns: «Discipline» (81), «Beat» (82) e «Three of a Perfect Pair» (84). Fripp é ultrapassado pela rapidez dos acontecimentos e pelos seus discípulos, nas artes diabólicas. Os citados álbuns são «apenas» bons, reunindo como sempre excelentes executantes, como Tony Levin ou Adrian Belew.
Hoje é um pacato cidadão casado com a senhora Toyah Wilcox e dá aulas regularmente na sua Winbourne natal.
Uma referência final para os álbuns a solo, exceptuando o primeiro, «Exposure», exercícios de estilo de «Frippertronics» apoiados em manifestos teóricos de tom apocalíptico e profético. Duas vozes dão vida e entusiasmo aos dois primeiros trabalhos: as de Peter Hammill em «Exposure» e de David Byrne em «God Save the Queen/Under Heavy Manners». Dos restantes que venha o diabo e escolha…
2.1.90
VALORES SELADOS
KING CRIMSON
NA CORTE DO REI CARMESIM
Ainda se cantavam a paz e o amor nos finais da década marcada pela geração hippie quando Robert Fripp e os seus pares entraram a matar, anunciando de forma violenta o advento do homem esquizóide do século XXI. Era de mais para a época. Os King Crimson ficavam definitivamente marcados com o estigma de grupo maldito. Fripp nunca se importou muito com isso. A sua guerra era outra.
Muito se escreveu e historiou já acerca desta banda, uma das mais marcantes e decisivas na definição das novas estéticas da década agora prestes a findar. Será pois talvez mais interessante procurar levantar um pouco o véu que cobre algumas das ocultas intenções do seu líder e mentor espiritual, Robert Fripp.
Logo no primeiro álbum eram já visíveis alguns indícios das principais preocupações e motivações do guitarrista e compositor do grupo. O rosto e o sinal da personagem desenhada na capa, os títulos sintomáticos de algumas das canções (entre as quais a já citada «21st Century Schizoid Man» e a que dava o nome ao disco: «In the court of the Crimson King») e as tonalidades majestosas e sombrias da música apontavam inequivocamente para uma personagem que era nem mais nem menos que o próprio diabo, padrinho e mestre de Fripp.
Peter Sinfield, letrista e encarregado de todo o aspecto gráfico e visual da banda, era o pólo oposto à negritude diabólica daquele. A tensão entre estas duas polaridades resultaria nalguns trabalhos fabulosos que viriam a constituir a fase inicial da banda. Depois do álbum de estreia, «In the Wake of Poseidon» e o deslumbrante «Lizard» (ambos de 70) marcam o apogeu desta fase de contornos classizantes e sinfónicos. No primeiro as tendências mefistofélicas do guitarrista, bem expressas em temas como «Pictures of a City» ou «The Devil’s Triangle», são contrabalançadas pelos dois poemas que abrem e fecham o disco, «Peace-A Beginnig» e «Peace-An Ending», da autoria de Peter Sinfield.
Mas seria com «Lizard» que os King Crimson atingiriam o ponto culminante da sua arte. A imprensa britânica, deslumbrada, comparava-os com os grandes autores da música clássica. O Rock (seria?) alcançava, com os Crimson e outras bandas importantes da então designada «Música Progressiva», o estatuto e as honras da maioridade e paridade em relação aos seus vizinhos eruditos.
«Lizard» é também o álbum mais «branco» de toda a sua discografia. Por uma vez o diabo ficava fora da jogada. Memorável o combate travado entre a guitarra demoníaca de Fripp e a voz celestial de Jon Anderson, convidado especial no tema épico que ocupa a totalidade do segundo lado. Do outro, a entrada grandiosa do Mellotron e do sax de Mel Collins (mais tarde nos Camel) em «Circus», as perturbantes sonoridades e alusões ao free-jazz de «Indoor Games», a subtil paródia aos Beatles em «Happy Family» e a balada de tons medievais que é «Lady of the Dancing Water». Produção impecável, arranjos esplendorosos e executantes excepcionais (que incluem como convidado o pianista de jazz, Keith Tippett) dão a esta obra o cunho da perfeição.
Em «Islands» (71) Fripp ultrapassa os limites, tornando-se como compositor de música clássica «a sério». O tom geral torna-se demasiado óbvio, com a inclusão da soprana de Ópera, Paulina Lucas e um prelúdio instrumental de música de câmara com Fripp tocando órgão de pedais.
«Earthbound», gravado ao vivo nos E.U.A., sofre de um som péssimo mas tem a vantagem de nos dar a perceber toda a energia que a banda desenvolvia em palco, com a guitarra de Fripp arrasando tudo e todos em torrentes eléctricas demenciais. A nova versão de «21st Century Schizoid Man» causa arrepios.
Os King Crimson fecham entretanto para balanço, Fripp viria a ressurgir mais alguns anos mais tarde, orientando definitivamente a sua música segundo as directivas do senhor das trevas. «Larks’ Tongues in Apic» (73), «Starless and Bible Black» (74) e «Red» (74) constituem a fase mais negra da banda. Entram e saem constantemente novos músicos, incapazes de suportarem a tensão acumulada e a tremenda energia exigida nas prestações ao vivo. Apenas Fripp se mantém inexorável, cumprindo escrupulosamente as ordens do chefe. «Red» tem momentos quase insustentáveis, com a guitarra eléctrica e a secção rítmica formada pelo baixo de John Wetton e a bateria de Bill Bruford sem darem um minuto de descanso, numa espécie de Heavy-Metal mais sofisticado. Com «Red» os King Crimson atingem novo ponto crítico e novamente é dado o toque a dispersar, não sem entes editarem mais um disco gravado ao vivo nos E.U.A., intitulado obviamente «U.S.A.».
Fripp confessa-se então à beira da loucura e retira-se para um mosteiro para receber os ensinamentos de J.G. Bennett, discípulo de Gurdjieff, cujas doutrinas esotéricas eram o suporte teórico ideal para os seus futuros projectos musicais.
Práticas mágicas e rituais, exercícios de auto-disciplina e a aprendizagem de novas técnicas (de guitarra e não só…) impelem o músico para uma atitude agora declaradamente luciferina. Domínio da dor, o sofrimento como forma de ascese ou a utilização fria e sistemática da inteligência em detrimento das emoções conduzirão a partir de agora toda a sua vida e obra.
O modo como Fripp toca a sua guitarra é exemplar desta nova atitude. A energia é agora perfeitamente canalizada e contida, jamais explodindo em clímaxes libertadores. Exercício tântrico. Toda a energia, sexual ou emocional, é contida e dirigida para os centros mentais superiores. Como consequência, o aumento de poder e de uma certa forma de lucidez e o crescente controlo que o músico vai progressivamente adquirindo, sobre si próprio e (mais subliminarmente) sobre os outros.
Grava entretanto, juntamente com Brian Eno, os álbuns «No Pussyfootin’» (74) e «Evening Star» (75), utilizando pela primeira vez a técnica das «Frippertronics». «Evening Star» é, ainda hoje, para quem o souber escutar e perceber, dos álbuns mais terríveis e diabólicos que alguma vez foram gravados. «Index of Metals» desvela-nos implacavelmente a beleza gelada do mais terrível dos Infernos, os da inteligência que se auto-devora nos labirintos do seu próprio orgulho e desmesura. Fripp foi ainda um dos precursores das técnicas de inversão.
Não quero para já adiantar mais sobre este assunto. A electricidade e a música sempre foram bons condutores para a passagem de energia, seja ela positiva ou negativa. Magia, pois claro, neste caso melhor dizendo escuro, pois que de magia negra se trata. O trivial, nos tempos que correm, em algumas das correntes da música actual. Quanto ao resultado final de tudo isto só Deus o decidirá.
A trilogia final dos King Crimson, novamente reciclados para os anos oitenta, é constituída por mais três álbuns: «Discipline» (81), «Beat» (82) e «Three of a Perfect Pair» (84). Fripp é ultrapassado pela rapidez dos acontecimentos e pelos seus discípulos, nas artes diabólicas. Os citados álbuns são «apenas» bons, reunindo como sempre excelentes executantes, como Tony Levin ou Adrian Belew.
Hoje é um pacato cidadão casado com a senhora Toyah Wilcox e dá aulas regularmente na sua Winbourne natal.
Uma referência final para os álbuns a solo, exceptuando o primeiro, «Exposure», exercícios de estilo de «Frippertronics» apoiados em manifestos teóricos de tom apocalíptico e profético. Duas vozes dão vida e entusiasmo aos dois primeiros trabalhos: as de Peter Hammill em «Exposure» e de David Byrne em «God Save the Queen/Under Heavy Manners». Dos restantes que venha o diabo e escolha…
3 comentários:
Caramba! Li esse texto enquanto ouvia Starless and Bible Black!
Caraio, então Fripp era satanico!!! o.O
Rapaz! Essa música em especial, In The Court of Crimson King, é trilha sonora da minha vida e talvez o rock mais belo que conheço.
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