29 JANEIRO 1992
O REGRESSO DOS MORTOS-VIVOS
CRANES
Wings of Joy
LP/CD, Dedicated, distri. BMG
Confirma-se que estamos a entrar numa nova idade das trevas. Não há “rave parties” que resistam, nem “ecstasy” que consiga atenuar a grande depressão. É o regresso das gabardinas negras e dos “periquitos belgas”, na pele dos Cranes, dois irmãos – Alison e Jim Shaw –, que, de novo, fazem reviver os fantasmas que se julgava enterrados com os desaparecimentos de Ian Curtis e de Marcelo Caetano. Mas não, a vaga fria regressa em força, com nova remessa de medos e ameaças, recheada de ambientes cavernosos e palavras dignas de figurar no “manual do suicida exemplar”.
Na voz e nos textos de Alison Shaw, na guitarra, no piano e nas batidas de pesadelo do mano Jim é toda a tradição das bandas “góticas” que reemerge, recuperada para novos dias (e sobretudo noites) de glória, passados entre cemitérios e declarações filosóficas sobre o fim dos tempos que se avizinha.
Não se pode dizer que os Cranes sejam optimistas: a sua música e a sua visão do mundo partilham os mesmos conceitos doentios acerca do “dark is beautiful” perfilhados por bandas como os Bauhaus, Siouxsee and the Banshees (Siouxsee parece ser uma das heroínas de Alison, a julgar por temas como “Leaves of Summer” e “Starblood”) ou os próprios Joy Division. É só angústia, terror, desgraças – vocês sabem lá!
Por outro lado, (em tudo há sempre um outro lado), verifica-se a existência, nos Cranes, de uma faceta angélica, sensível na voz da menina que, por vezes, parece confundir-se com as névoas de uns Cocteau Twins, como em “Tomorrow’s tears”, ou com as inflexões de “falsa ingénua” de Claire Grogan, ex-vocalista dos Altered Images. Afinal não era Lúcifer o anjo mais belo que, ainda por cima, tem a tendência para aparecer vestido de mulher? E, na capa do disco, lá está ele, um anjo – se não é, parece (pelo menos tem asas) – em tons rosa e de expressão cândida, para melhor nos enganar e perder. O universo surreal e as sombras dos This Mortal Coil também não andam longe.
Alison Shaw, nota-se à distância, tem prazer e jeito para criar mal-estar. Vê-se que se compraz com a infelicidade, um pouco à maneira dos românticos (para quem não havia melhor companhia nem amiga do que a morte). Títulos como “Beautiful sadness” não enganam. Os Cranes não andam cá para se divertirem, mas para fazerem a vida negra, a eles e – o que é mais grave – a nós.
“Wings of Joy” (tanto cinismo, meu Deus) tem os ingredientes certos para criar o tal mau ambiente e dar cabo do dia logo pela manhã, o que, para muita gente, se confunde com a própria essência da vida humana: caspa, mau hálito, guitarras sulfurosas, como em “Starblood” e “Wish” – um verdadeiro inferno –, pianos tétricos e vocalizações de além-túmulo. Enfim, a audição de “Wings of Joy” provoca desconforto e calafrios metafísicos tão do agrado dos apreciadores de David Lynch e de Schoppenhauer. Alison diz que não, que os Cranes não pretendem “assustar ninguém” e que a sua música é “divertida”. Pois sim Alison, cantas bem mas não me alegras. Só podem achar os cranes divertidos as mentes pervertidas que lêem os “120 dias de Sodoma” às criancinhas, para as adormecer.Descontando o facto de “Wings of Joy” poder contribuir para aumentar o número da população portuguesa não activa, já que nada vale a pena e alma – como a mulher e a sardinha – quer-se é pequena, os Cranes até conseguem ser bastante eficazes e bem sucedidos na via e na tarefa que escolheram: de fazer andar os mortos. Esqueceram-se foi de os ressuscitar. Se calhar não faz mal. Já são menos os vivos do que os “zombies”. (6)
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