cultura SEXTA-FEIRA, 21 DEZEMBRO 1990
Annette Peacock
hoje, às 22h30, na Aula Magna
Subtil provocação
Annette Peacock promete um concerto inesquecível. Quem se habituou a
escutar a sua voz e os seus discos, sabe que vai ser assim. Sensualidade e uma
forma inteligente de provocação são alguns dos ingredientes capazes de
transformar a noite de hoje em qualquer coisa de diferente.
Diz-se que os olhos são o espelho da alma. A voz
também, da alma e do corpo. Com Annette Peacock, o corpo assume-se, claro e
evidente, nas entoações sensuais do seu cantar. Mas é um corpo lúcido,
inteligente, suficientemente próximo e distante para utilizar o sexo como
discurso e a ironia como desmistificação do desejo que aquele inevitavelmente
provoca – “as minhas mãos não fazem exigências/ (…)/ posso dizer que preciso de
ti/mas estaria a mentir/ posso te dizer que te amo/ mas não passa de uma
invenção/ para perpetuar o convencionalismo (…)/as minhas auto-carícias não
provocam qualquer ‘stress’/não é um mundo perfeito/mas não fui eu que o fiz/ se
não há penetração/tem de usar-se a imaginação/sou feliz com a minha mão”
(“Happy with my Hand” de “Abstract Contact”). Como se vê, não se trata
propriamente de uma “Love Story” das que os filmes nos contam…
O fruto proibido
Os
tabus constituem-se como matéria suscetível de infinitas manipulações. O
incesto, a droga, as perversões políticas (sucedâneo das sexuais) canta-os Annette
Peacock com a voz perturbantemente lânguida e pausada. Como ela própria afirma
– “os temas mais agressivos ganham um impacto muito maior quando cantados de
forma não-agressiva”. Estética assente na tensão de opostos, dialética. As
massas, como seria de esperar, desviaram a vista e os ouvidos, fazendo como a
avestruz. Annette não se importa, para ela o importante é a sinceridade. Fala
desses e de outros temas porque eles fazem parte da vida. Não há dois mundos,
um cor-de-rosa, outro sórdido e riscado a negro, mas duas faces de uma única
realidade. David Lynch há-de fazer um
filme com esta senhora, que já atuou em topless e se deixa fotografar com o
rosto envolto num véu.
A sua
história conta-se resumidamente: integrou os meios mais ou menos marginais da
“Drug culture”, convivendo com Timothy “LSD” Leary, o poeta da “Beat
generation” Allen Ginsberg ou as luminárias jazzísticas Charles Mingus e Albert
Ayler. Não ligou muito, preferindo a macrobiótica (a sua mamã nunca a ensinou a
cozinhar, “My mama never taught me how to cok”, de “X-Dreams”…) e espantar os
peritos com impossíveis proezas realizadas, ao vivo e em discos como “Revenge”
e “I’m the One”, num dos protótipos do sintetizador moog, que o próprio Dr.
Robert fez questão de lhe ofertar.
Não à fama
Segue
o caminho que escolheu, sem concessões nem compromissos de qualquer espécie.
Recusa a fama – David Bowie acenou-lhe com um convite para tocar a seu lado, na
época de “Alladin Sane”, mas ela não aceitou. Não queria ser tratada como um
objeto” – diz – “que é o que geralmente acontece quando nos transformamos em
estrelas…”. Brian Eno também não a convenceu. Queixa-se de que este queria
separar a voz das palavras, cortar tudo aos bocadinhos, misturar, transformar e
voltar a misturar, até o resultado se parecer com tudo menos com o original.
“Era como se me cortassem a mim própria aos bocados”. Portanto, de novo, Annette
disse “não”. Mostrou-lhes do que era capaz, sozinha, gravando a obra-prima
“X-Dreams”.
Queria
ainda maior liberdade. Fundou uma editora de discos só para si e chamou-lhe “Ironic
records”. Com o seu piano e os seus sintetizadores espantou a parte do mundo
mais atenta com os álbuns “Sky Skating”, “Been in the Streets too long”, “I
have no feelings” e “Abstract Contact”. Na sua música o termo “jazz” ganha
contornos inusitados, através de uma sensualidade estranha e quase obsessiva e
de uma inteligência afiada como um bisturi.
Chega
a Lisboa companhada dos seus sintetizadores e de três músicos: Michael Mondesir
(baixo), Simon Price (percussão) e Amit Mukherjee (guitarra). Promete um
espetáculo único, capaz de pôr a cabeça em água a toda a gente. Convém levá-la
à letra.

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