cultura SEXTA-FEIRA, 28 SETEMBRO 1990
Philip Glass em
Lisboa
Um dia na Ópera
Philip Glass e Bob Wilson encontram-se desde há duas semanas no nosso
país, a preparar uma ópera dedicada aos Descobrimentos portugueses. Dentro de
dois anos será de novo a conquista de mares nunca antes navegados.
“Through the Eye of the Raven” é o título escolhido para
a obra composta por Philip Glass, encenada por Bob Wilson e com “libretto” de
Ana Luísa Gomes, inspirada nos Descobrimentos portugueses e com estreia mundial
marcada para 28 de junho de 1992, no Teatro Nacional de S. Carlos.
Em
encontro informal com a imprensa, num dos camarins do teatro e em plena
atividade de ensaios, o compositor americano, autor de outras obras importantes
no mesmo domínio, como “Einstein on the Beach”, “Satyagraha” e “Akhnaten” e o
seu colaborador de longa data Bob Wilson, levantaram algumas pontas do véu. A
ópera será inovadora a vários níveis: música (Philip Glass ainda não escreveu
uma única nota, mas tudo está previsto até ao décimo de segundo...), coreografia
e texto funcionarão como entidades autónomas, cujo sentido global caberá em
grande parte à intuição do auditor unificar e apreender. Haverá momentos em
que, aparentemente, “a música, o texto e as movimentações sobre o palco não
terão nada a ver umas com as outras”. A vanguarda é assim mesmo.
Na
prática, a estrutura final vai sendo progressivamente construída, partindo de
um trabalho em regime de “Workshop”, por ambos considerado como “ideal”, com o
aspeto criativo fruto de uma colaboração constante entre a totalidade das
partes envolvidas. Bob Wilson chega ao ponto de afirmar “ser possível compor
uma ópera a partir do vestuário ou da iluminação...”. Mas acalmem-se os mais
tradicionalistas que, neste caso e ainda segundo Wilson, “a ópera é, do ponto
de vista formal, extremamente tradicional, dividida em cinco atos, com uma
abertura e um prólogo, para além de várias ‘Knee plays’, espécie de interlúdios
musicais fazendo a ligação entre as partes principais”.
Ditosa pátria minha amada...
No
capítulo da encenação Bob Wilson promete algumas surpresas espetaculares: Vasco
da Gama, o Rei e a Rainha, um escritor, uma freira, três cientistas, Miss
Universo e outras personagens saídas da História e da imaginação dos autores,
vão fazer mil tropelias, em locais tão diversos como o mar (incluindo uma
deslumbrante cidade de cristal oculta nas suas profundezas), o espaço cósmico,
“buracos negros” por todo o lado, a selva brasileira, os exotismos do Oriente,
na Corte de D. Manuel, e outros, menos facilmente catalogáveis. Haverá
terríveis naufrágios, terramotos, monstros de toda a espécie (alguns nascidos
de delírios de Jorge Luís Borges), cabeças de cão e patas de elefante, aviões e
foguetões, um telescópio gigantesco girando ameaçador sobre a cabeça dos
atores, uma “troupe” de dançarinos japoneses, viagens para além da morte,
enfim, como diz Glass – “não se pretende dar uma lição de história, trata-se
antes de uma abordagem poética, de caráter universalista, em que Passado,
Presente e Futuro se confundem numa nova Realidade. Quem quiser receber lições
deve procurar nos compêndios...”.
Luísa
Costa Gomes, autora do “libretto” (que incluirá excertos de “Os Lusíadas” e da
“Peregrinação” de Fernão Mendes Pinto) é de opinião que o tom geral dá uma
“visão extremamente elogiosa, destacando o seu papel pioneiro, na transição da
mentalidade e imaginário medievais para os renascentistas, dos Descobrimentos
portugueses”, designação geral para uma gesta que, para si, se reveste
inevitavelmente de um caráter simbólico, procurando na parte que lhe compete,
evitar o “kitsch” e que os textos (inteiramente falados e cantados em
português) reflitam essa mesma preocupação, para tal recorrendo a uma linguagem
frequentemente metafórica, a começar pelo corvo mencionado no título, numa
alusão às aves que equilibram a nau lisboeta. Viagens pelo mundo e pela alma
humana adentro. Terra de Preste João, a Ilha dos Amores... “Gostava que a frase
final, entoada pelo coro, fosse muito simples – ‘esta é a ditosa pátria minha
amada’ – ‘mais nada”.
... à conquista do mundo
Quanto
à partitura de “Through the Eye of the Raven” (encomendada especialmente pela
Comissão dos Descobrimentos) será exclusivamente para orquestra e coro, este
último aparecendo em cena somente na apoteose final do quinto e derradeiro ato.
Nada foi ainda escrito mas ideias parece que não faltam a Philip Glass, um dos
“papas” da música minimalista dos anos Sessenta, que hoje recusa a conotação
exclusiva com a escola que ajudou a construir e presentemente considerada
ultrapassada, chegando ao ponto de afirmar que – “se tivesse hoje 20 anos
jamais faria música minimal”.
Para
já adiantou que o terceiro ato será uma dança coreografada por um japonês
(única sem a responsabilidade direta de Bob Wilson) e a totalidade do trabalho
composicional realizada previamente ao piano.
Teoria
terminada, foram mostrados e explicados por Bob Wilson, vários esboços
referentes aos “décors” de cada um dos cinco atos, uns em branco (para as cenas
mais despojadas...) outro com uma mancha negra (o promontório de Sagres...) ou
uns rabiscos confusos (a selva amazónica...). Elucidados e siderados pelo aparato
visual do futuro evento, passou-se para o grande auditório, para uma
demonstração coreográfica provisória do primeiro ato, sem música e com Luísa
Costa Gomes soletrando o texto palavra por palavra. Nada a ver com o “Barbeiro
de Sevilha”. Quando se ligar o som, que se desiludam os amantes do “Bel
Canto”...
A
dois anos da sua apresentação oficial, “Through the Eye of the Raven”, provoca
desde já interesse por parte dos meios culturais estrangeiros (fala-se
inclusive num possível “sponsor” americano, para suportar os elevados custos da
produção), na apresentação local da ópera, nomeadamente os japoneses, aos quais
a problemática dos Descobrimentos diz obviamente respeito. Para além dos
americanos, também os alemães se mostram interessados. Em Espanha o “Olhar do
Corvo” passará na Expo-92. Philip Glass e Bob Wilson não fazem a coisa por
menos: “Com este trabalho tencionamos conquistar o mundo da ópera”. Daqui a
sensivelmente dois anos se verá... Para já a certeza de que, em termos
operáticos, depois destes descobrimentos, nada ficará como dantes.
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