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29|DEZEMBRO|2000
música|carlos
paredes
“Canção para Titi” é o testamento musical de
Carlos Paredes. Álbum arrancado ao combate entre o génio e a doença que já lhe
tolhia o corpo, é ainda o retrato trémulo do que também em nós dói – a
ausência, o sermos incompletos.
Canções de
luta corpo a corpo
Lembramo-nos
de Carlos Paredes através da melodia perene de “Verdes anos”; da imagem do seu
corpo dobrado sobre a guitarra e do mar de notas que jorrava sem parar; do
empenhamento e da entrega, por vezes ingénua, a uma crença ideológica e
política. Um volume arrumado no canto das coisas adquiridas que, no entanto, se
faz ouvir com insistência como a banda sonora subliminar de algo que se agita
no fundo e pede para vir à superfície.
Não deixamos – e sentimos vagamente
um peso. As notas da guitarra de Paredes confundem-se numa ferida aberta
qualquer que arde ainda mais por causa do sal do mar, e vêm-nos à memória
frases desconexas – que animam quando deviam fazer chorar – sobre o “ser
português” e a “saudade”. A seguir esquecemo-nos.
“Canção para Titi” está aqui para
nos lembrar. São nove inéditos, contidos em pouco mais de 19 minutos de música.
Muito pouco ou muito, depende… As gravações foram encetadas em 1993, nos
estúdios da Valentim de Carvalho, em Paço de Arcos, quando o seu autor padecia
já da doença que hoje o impede de transmitir aos dedos o dilúvio da alma,
interrompidas pouco tempo depois pela impossibilidade do intérprete em as prosseguir.
Acompanharam Paredes nessas sessões,
Luísa Amaro, sua companheira de longa data e, em dois temas, “Memórias” e
“Valsa diabólica”, Fernando Alvim. O alinhamento é completado por “Uma canção
para minha mãe”, “Escadas do quebra costas”, “Canção para Titi”, “Mar goês”,
“Arcos do jardim”, “Arco de Almedina” e “Discurso”, este último captado ao vivo
em Junho do mesmo ano no Centro Cultural do Entroncamento. Hugo Ribeiro, outro
nome mítico da música popular portuguesa das últimas décadas, esteve na mesa de
som.
O que, em condições normais, não
passaria de uma vulgar sessão de ensaios, ficou para a posteridade como
testamento musical de Carlos Paredes. Problemas técnicos como a da respiração
do guitarrista ter ficado marcada nas fitas, não puderam ser minimizados.
Dilacerado. Carlos Paredes estava
consciente de todas estas limitações. Multiplicaram-se os “takes” de cada peça,
segundo explica Rui Vieira Nery no excelente texto de apresentação a “Canção
para Titi”: dez repetições para “Mar goês”, doze em “Canção para minha mãe”,
quatorze nos “Arcos do jardim”.
Processo lento e penoso, como se vê,
feito de avanços e recuos, de repetições exaustivas, com o tempo a escoar-se e
o corpo em progressivo estado de revolta. Interrompidas as gravações, o
material permaneceu na gaveta, sem que fosse possível decidir da justeza ou não
da sua edição. Finalmente, Luísa Amaro e o editor da EMI - VC, David Ferreira,
delegaram em Rui Vieira Nery a responsabilidade de tomar uma decisão
definitiva. O musicólogo e amigo de longa data, senão do próprio Paredes pelo
menos da sua música, confessa a angústia que sentiu antes de se lançar nas
audições, inclusive “temendo o pior” – o desmoronamento de uma discografia que
considera ser “uma referência decisiva da música e da cultura portuguesas do
séc. XX”.
A audição, porém, dissipou as nuvens
e a angústia e deu lugar a uma “sensação de enorme felicidade”. Rui Vieira Nery
condensa assim as suas impressões: “Apesar da luta desesperada evidente que
Carlos Paredes travava consigo próprio naquelas sessões de 1993 e das
limitações técnicas incontornáveis a que a doença já então o submetia, a sua
música impunha-se com uma força verdadeiramente mágica logo a partir dos
primeiros compassos – pujante de inspiração e de rasgo, deslumbrante no seu
lirismo inconfundível (…) Lá estava, mesmo que agora por vezes transformado num
grito de pássaro ferido, aquele som intenso, vibrado, plangente, e lá estava
até, aqui e além, ainda que dramatizado pelo esforço transparecente, um
virtuosismo ocasional ainda surpreendente na sua musicalidade inteligente”.
“Canção para Titi” é tudo isto e mais o que
cada um de nós quiser imaginar. Dezanove minutos de uma viagem de retorno à
infância, à família e à herança musical do fado de Coimbra, legada pelo pai,
Artur Paredes, e pelo avô, Gonçalo Paredes, e um afogamento na mágoa e na
melancolia. A desconstrução dos gestos de um “ virtuose” dilacerado entre a
necessidade de se exprimir e a impotência da vontade, e a construção mítica de
um outro lugar onde o virtuosismo se confunde com a capacidade de entrega total
à inspiração.
E essa entrega – que é também uma
coincidência e uma dádiva – teve-a sempre Carlos Paredes, na sua música e na
sua vida. Num excesso de luz que nem sempre permitiu ver para além do que nela
vimos como espelho. Por isso é justo que sejamos nós, desta vez, a
entregarmo-nos.
O lugar
exato da guitarra
Primeiro ouça-se
a música. Depois consultem-se as biografias, caso haja interesse em conhecer o
homem. Octávio Fonseca Silva escreveu uma, a que deu o título “Carlos Paredes –
A Guitarra de um Povo” (ed. MC - Mundo da Canção, 2000). E começa por afirmar,
logo de início, que “’a música de Paredes’ não existe”, existe sim “um homem
semeado no chão do seu país”, para dois parágrafos à frente pormenorizar que “a
sua música só é a sua música na medida em que o seu sangue é o seu sangue. Um
mero fluido orgânico que lhe brota naturalmente das mãos como o amor pela terra
e pelo povo lhe brota da alma”.
Conceção
telúrica e nacionalista, com a qual o bibliografado não concordará inteiramente
quando, em entrevista concedida em 1986 à revista Flama, se auto-define nos
seguintes termos: “Sou um homem que toca guitarra… que tem isso?”
Toda a gente
acha que tem alguma coisa e por isso se diz que Carlos Paredes é um dos mais
importantes músicos portugueses de sempre, sem ser dos mais universais. Paredes
é daqueles universos vastíssimos fechados sobre si mesmos. Um buraco-negro que
tudo aspirava em seu redor. Que o diga o contrabaixista de jazz Charlie Haden
que com ele improvisou no álbum “Dialogues” (1990), tendo sido positivamente
engolido pela inspiração centrípeta do genial guitarrista português.
Se outros
interlocutores existem para a sua música, eles serão ainda múltiplos “egos”
musicais em permanente dialética, encarnando a máxima de Fernando Pessoa
expressa no “Ultimatum” segundo a qual “um homem que vale por cem” tem mais
força que cem homens diferentes.
Octávio Fonseca
Silva – natural do Porto, crítico de música nos anos 70 nas revistas “A Memória
do Elefante” e “Mundo da Canção”, realizador de programas radiofónicos nos anos
80 e 90, também intérprete e estudioso da guitarra portuguesa – prefere
iluminar os aspetos intrinsecamente musicais da obra do mestre, ao invés de lhe
investigar a pessoa, tentando como tal não se esquecer “do quanto Paredes
gostava de preservar a sua vida privada”.
A biografia
propriamente dita é, por isso, curta. Seis páginas apropriadamente encimadas
pelo título “Na corrente da vida”. Depois de um capítulo dedicado aos
antecedentes musicais, entra-se na música através da relação de Paredes com
Fernando Alvim (“A Harmonia na Música de Paredes”), prosseguindo com “O
Pensamento Musical de Carlos Paredes”, segundo as perspetivas da guitarra
portuguesa e a canção coimbrã e da música popular portuguesa em geral.
Na 2ª parte,
dedicada à carreira e obra, é analisada em detalhe a discografia de paredes (22
págs.). Seguem-se uma crónica dos espetáculos, “colaboração noutras áreas
artísticas” (cinema, teatro, ballet, poesia e televisão) até se chegar a um dos
capítulos mais elucidativos do livro, uma compilação de textos do próprio
Paredes sobre tópicos musicais diversos. Num deles, publicado no jornal “O
Diário” de 27 de Dezembro de 1978 e em comentário a uma frase de Mussorgsky
citada por Francine Benoit (“Fazer uma melodia tão simples que até um mendigo a
pudesse cantar”) o guitarrista escreveu: “Parece resumir-se nesta frase
comovente todo um ideário do artista que persegue a finalidade do génio, ou
seja, a limpidez da descoberta definitiva, caracterizada por essa luminosa
simplicidade que, observada de qualquer ângulo, nos conduz sempre à profunda
convicção de que tudo se encontra no seu lugar exato”.
Tudo se encontra
no seu lugar exato. “A canção dos verdes anos”, por exemplo, encontra-se num
álbum de Paredes intitulado simplesmente “Guitarra Portuguesa”. Escutá-la
faz-nos acreditar que o mundo é um lugar com sentido.
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