Y
9|MARÇO|2001
escolhas|ao
vivo
lágrimas
de sal
Não
me importo de ser exposta numa canção porque endureci. Passei grande parte da
minha vida sem companheiro ou a ser rejeitada. Tenho que ter desejo, sentir o
cheiro de um homem… sou uma grande romântica, mas o meu coração e as minhas
entranhas sobrepõem-se ao meu senso comum. P.J.Harvey
Desejo.
Rock. Desejo. Sombras. Desejo. E agora o oceano. Imenso. “Is This Desire?”
perguntava Polly Jean Harvey no seu álbum de 1998. A resposta era uma estranha
combinação de romance e desespero. “O meu coração e as minhas entranhas
sobrepõem-se sempre ao meu senso comum”. Restava uma única saída deste vórtice:
a viagem pelas águas.
“Stories from the City, Stories from
the Sea” materializa essa nova etapa de um percurso que em disco se iniciara em
1992, com “Dry”, e prosseguira no ano seguinte com “Rid of Me” e em 1995 com
“To bring you my love”, antes de se atolar nos pântanos do desejo e,
finalmente, desaguar no oceano. “Eu”, “secura”, “amor”, “desejo”, “mar”.
Símbolos de uma ascese feita de ternura e raiva, sol e trovoada.
“Li algures que o dever de qualquer
artista é o de reescrever incessantemente a fronteira que separa a terra do
mar”, “vivo num pequeno apartamento junto à costa e tudo o que consigo ver das
minhas janelas é o mar”, diz Polly Jean Harvey a propósito do novo álbum. O mar
no horizonte, o mar como horizonte. Exterior e interior. As águas, símbolo do
Inconsciente coletivo que urge atravessar para atingir o lado de lá, a outra
margem, o lugar onde o indivíduo se integra numa entidade cósmica mais vasta e
a personalidade finalmente se dissolve. Onde, como dizem os budistas, as águas
do rio se confundem com as do mar.
“Hoje sei que não passo de uma pequena
porção de um todo gigantesco que me ultrapassa e que já não tenho de passar
tanto tempo a confrontar-me com o meu interior sem ser capaz de olhar cá para
fora”. De “Rid of Me” (“desembaraça-me de mim”) até “Stories from the City,
Stories from the Sea”, Polly Jean Harvey cumpriu essa viagem
P.J.Harvey foi nome de grupo – um
power-trio de guitarra, baixo e bateria formado em 1991, Somerset, Inglaterra,
responsável pelos primeiros singles – antes de ser Polly Jean, como Norma Jean,
nome de mito. A estreia a solo, a seco, com “Dry”, valeu a esta mulher de 31
anos, natural da zona rural do Sudoeste inglês, adjetivos como “engraçado”,
“cáustico”, “sedutor”, “selvagem”, “disforme”, “magoado”, “irónico” e “cru”. E
nomeações para melhor álbum, melhor compositora e melhor cantora. Como se isso
lhe importasse.
“Rid of Me” foi acolhido pelo LA
Times como “um trabalho espantosamente arrojado” e o Newsweek acentuou a
“brutalidade” das canções, elevando-as à categoria de grande arte. É difícil o
rock elevar-se a esta condição. Polly Jean Harvey é dos poucos artistas
contemporâneos a consegui-lo. “To bring you my love” recebeu mais um punhado de
nomeações da Rolling Stone e da Spin, com a cantora a reforçar a componente
teatral das suas apresentações ao vivo, além de tocar guitarra, vibrafone,
percussão e teclados. Em “Is This Desire?” teve a seu lado John Parish, Eric
Drew Feldman (ex-Pixies e Captain Beefheart), Joe Gore (da banda de Tom Waits),
Mick Harvey (Bad Seeds) e Rob Ellis.
Polly Jean Harvey contribuiu com a
sua voz e composições em álbuns de Pascal Comelade (“L’Argot du Bruit”), Nick
Cave (“Murder Ballads”) e Tricky (“Angels with Dirty Faces”). A par da sua
transformação psicológica, o gosto pela representação sofreu igualmente uma
mudança de escala. Do palco dos concertos ao vivo para o palco maior, por vezes
maior do que a vida, do cinema, com a inclusão no elenco de “The Book of Life”,
média-metragem de Hal Hartley (1998), onde desempenha o papel de Maria
Madalena. Lágrimas bíblicas. Lágrimas de mar. Lágrimas de sal.
P.J. HARVEY
+ GIANT SAND
Lisboa Coliseu dos Recreios, 4ª, 14, às 21h
Bilhetes: 4000 escudos
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