28/09/2014

Dar voz às palavras [Mafalda Arnauth]



Y 16|MARÇO|2001
fado|música

dar voz às palavras

Em Esta Voz que me Atravessa,
Mafalda Arnauth faz a travessia
entre a voz e a poesia,
soboreando tudo
o que existe pelo meio.
Amélia Muge, senhora das palavras, produz.

Mafalda Arnauth é uma das estrelas mais brilhantes da nova constelação do fado cantado no feminino. Depois de um álbum de estreia promissor, a fadista apadrinhada no início de carreira por João Braga, acaba de lançar um segundo trabalho, “Esta Voz que me Atravessa”, onde são visíveis o amadurecimento, quer da voz, quer da composição. E uma maior atenção posta nas palavras e nos segredos e prazeres que estas encerram.
            Dito de outro modo, Mafalda Arnauth ouve-se melhor a si própria. A produção do novo disco foi entregue, com alguma surpresa, a José Martins e Amélia Muge, com quem a fadista estabeleceu uma rede de empatia e cumplicidades.
            Dois anos depois de “Mafalda Arnauth”, a atitude perante a música, o fado e a gravação de um disco tinha que ser outra. Para a fadista, “num primeiro disco é tudo mais espontâneo mas também mais verde”. A uma produção diferente correspondeu “uma exigência mais forte em termos musicais, o que acabou por colocar outro peso na forma de cantar, outra dimensão”. Enquanto o primeiro disco pretendia dizer “isto é o que eu sou, e como transporto neste momento isto que eu sou para um disco”, em “Esta Voz que me Atravessa” a diferença começa logo pelo menor número de composições assinadas em nome próprio, sinal de um ano de trabalho “em cheio” mas também de uma vontade de não escrever por escrever. “Não quero escrever de propósito para poder dizer que as coisas são minhas”. Em “Esta Voz que me Atravessa” Mafalda Arnauth encontrou quem as dissesse da mesma forma que ela as teria dito: Hélia Correia, Amélia Muge, Mário Rainho, Hélder Moutinho e… Fausto, presente no tema “Lusitana”. Ela mesmo diz a tradição de Alfredo Marceneiro, em “Até logo, meu amor”.

            Cumplicidades. Amélia e Mafalda encontraram-se através de Camané, para quem a autora de “Taco a Taco” escrevera uma composição. Logo aí a fadista se sentiu impelida a trabalhar com ela e o seu parceiro de há muito, José Martins. “Um e outro funcionaram como estudiosos”, diz Mafalda, “preocupando-se em ver o que é o fado, em saber deste universo e, respeitando o tradicional, debruçando-se sobre as suas fronteiras”.
            “O que me impressionou acima de tudo na Amélia foi esse lado de ir ao fundo das coisas, além de ser uma pessoa com as emoções à flor da pele”. As duas olharam-se e “descortinaram-se” uma à outra. Daí até se estabelecer uma empatia foi um ápice.
            Respirações e outras “coisas básicas” como esta, além de pormenores mais subtis, como a forma de sentir e interpretar a música, e uma maior concentração na musicalidade e significado dos poemas – “por vezes o facto de se ter na voz um bom instrumento, distrai da força dos poemas. Neste disco tive a preocupação de saborear melhor os meus sentidos” – sofrearam alterações. Mas a audição de “Esta Voz que me Atravessa” prova que a colaboração foi acertada.
            Ricardo Rocha, na guitarra portuguesa, José Elmiro Nunes, na guitarra de fado, e Paulo Paz, no contrabaixo, acompanham Mafalda Arnauth. Nada de inovações instrumentais, nenhum violino, nem um piano para amostra, apenas os instrumentos tradicionais do fado. Por aqui, pelo fado, as mudanças terão que surgir sempre de dentro, da capacidade da personalidade de quem canta se moldar às curvas do tempo. E é assim que Mafalda Arnauth acha que se deve ser. A contestação na contra-corrente do escândalo e do folclore que outros fazem gala em exibir. Mafalda, a contestatária. Com classe e devoção.

            Novo fado? E é assim que outras das vozes femininas do fado surgidas nos últimos tempos – para além de Arnauth, também Cristina Branco, Ana Sofia Varela, Joana Amendoeira ou Cátia Guerreiro – têm procedido, deste modo garantido, sem cair no paradoxo, a renovação deste género musical que apenas o é enquanto existir uma certa forma de ser-se e sentir-se português. Não há “novo fado”, mas novas (e novos) fadistas, outras formas, renovadas mas sempre ancoradas na saudade (sem ela o fado é sombra sem corpo), de o (re)descobrir e cantar.
            Todas elas insuflaram na alma do fado a sua própria alma. Vozes e sensibilidades diferentes a explodirem num céu que, depois da morte de Amália, se desanuviou, mostrando quão imenso era e ocupado estava. Porque Amália era toda ela o céu. A estrela que ocupava todo o espaço e tudo ofuscava. Extinta essa luz, outra lentamente se foram e vão acendendo e é o seu brilho que cada vez mais se vai firmando. “Novas Amálias” não há nem poderá haver. E o fado está agora mais dividido.
            “Com o desaparecimento real de Amália Rodrigues as pessoas deram-se conta que estavam a perder as suas raízes. E aconteceu a descoberta que se lá fora lhe prestavam tanta atenção era porque algo lhes estava a escapar. Após a sua morte apareceram boas vozes, mas só o tempo definirá a sua qualidade ou não, consoante a sua recetividade por parte do público”.
            Porque os tempos agora são outros e as distâncias maiores, torna-se difícil, senão impossível, juntar estas vozes num qualquer movimento ou estética organizada. Hoje Mafalda Arnauth, Cristina Branco ou Ana Sofia Varela são mais facilmente divulgadas e ouvidas no estrangeiro do que qualquer fadista nas décadas de Amália. “Não é como antigamente, quando as fadistas se juntavam nas casas de fado”.
            Mas talvez o mais importante não seja essa partilha. E aquilo que une, afinal, todas estas vozes que reivindicam o futuro do fado por ser sintetizado nas palavras de Mafalda Arnauth: “Embora cada uma trabalhe na sua própria realidade, toda a gente tem a preocupação de fazer sempre melhor”.


foi Deus que as quis

Mafalda Arnauth não está só com a responsabilidade de garantir uma sucessão para o espaço deixado vago por Amália Rodrigues. Se ela é, para já, o rosto mais visível de uma nova vaga de fadistas que cresceu a ouvir cantar a diva – em parte pelo facto de já ir no segundo álbum gravado para uma multinacional; em parte por ser dona de uma voz e de uma presença notáveis –, outras cantoras se perfilam no horizonte, prontas para dar conta de uma nova era dourada do fado, contrariando quem apregoava ser esta música um anacronismo que apenas se mantinha vivo por obra e graça da existência da autora de “Foi Deus”.
Com o desaparecimento físico desta pouco mais restava senão fazer o enterro. Enganaram-se. O fado, na sua expressão mais profunda, é a manifestação musical da alma portuguesa, inseparável da saudade. Parece um lugar-comum, mas é verdade. Saudade e modernidade não são incompatíveis pela simples razão de que a segunda está presa no tempo enquanto a primeira está para além dele. Mafalda Arnauth, como Cristina Branco ou Ana Sofia Varela, são simultaneamente modernas e tradicionais, independentemente da idade, da voz e da personalidade de cada uma. Esta simultaneidade do tempo e da eternidade encontra-se no íntimo de cada uma e elas parecem ter, senão o acesso ao fogo central, pelo menos, e para já, os caminhos que a ele conduzem.
Pode mimar-se os gestos e as expressões dos grandes fadistas, moldar-se a voz à voz dos mestres nos seus mais ínfimos detalhes, decalcar as vestes, o negro, os xailes e a ordem de “silêncio que se vai cantar o fado”. Mas não se pode fazer nascer o fado das aparências. Por melhores que sejam as vozes e a técnica de canto. É esta a grande “descoberta” das novas vozes do fado. Que o fado não se aprende, mas se descobre oculto no interior, pronto a ser libertado.
Amália morreu. É impossível imitar Amália. Mas é possível, e desejável, descobrir tão fundo na alma quanto ela descobriu.
Quando ouvimos pela primeira vez Mafalda Arnauth cantar “Foi Deus”, numa já longínqua noite de “fado para multidões”, baixámos os olhos a pensar em Amália. Não porque este fado tivesse sido imortalizado antes por ela, não porque a voz fosse parecida, mas porque se sentia em Mafalda, avassaladora, a mesma força interior e a mesma entrega. Ser como Amália é ser-se como se é. Sem barreiras nem calculismos de “como se deve proceder para fazer carreira”. Só a sinceridade e a tal entrega permitem, aliás, seguir, mais do que uma carreira, um caminho.
Cristina Branco é outro caso. Ao contrário de Mafalda Arnauth, cuja música tende a expandir-se para fora dos limites do nosso país, Cristina há anos que canta na Holanda, onde gravou uma série de álbuns com escassa divulgação em Portugal, como “Murmúrios” e “Post-Scriptum”, onde canta David Mourão-Ferreira, Miguel Torga e Maria Teresa Horta-
Em Cristina Branco prima a sofisticação e uma visão mais universalista do fado, próxima da “world music” e da música popular portuguesa (em “Murmúrios” canta José Afonso e Sérgio Godinho). A seu lado tem tido um guitarrista genial, Custódio Castelo, garante de uma unidade estética rara. É ainda Amália que se revela como determinante na escolha do fado como forma de vida, “quase uma impressão digital”, como confessou em entrevista ao PÚBLICO.
Numa segunda linha de projeção mediática encontra-se Ana Sofia Varela, cuja participação em “A Guitarra e outras Mulheres”, de António Chainho, é brilhante.
Joana Amendoeira e Cátia Guerreiro, ainda sem discos gravados, são outras novas fadistas com quem o fado pode contar. Marisa, mais inclinada a fazer acompanhar a música de uma imagem visual, marcou presença num recente espetáculo televisivo, com a chancela de Filipe LaFéria, dedicado a Amália. Para além das vozes portentosas, têm outra coisa em comum: são todas muito bonitas.

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