Y
19|JANEIRO|2001
mola
dudle|música
Mobília.
Os objetos do quotidiano. Entre o visionarismo e a patine retro, é o tempo a
esculpir o mistério na casa – lugar de todos os encontros e experiências para
os Mola Dudle, no seu álbum de estreia.
Homens da casa
Um
vive me Faro. O outro em Sintra. Conheceram-se em Lisboa e tocaram pela
primeira vez juntos ao vivo no Bairro Alto. “Uma coisa experimental, sem
ensaios, sem nada”. O telefone fazia, já então, parte dos seus utensílios de
trabalho. “Trocámos impressões”.
Mas na gravação de “Mobília”, álbum
de estreia dos Mola Dudle (ver crítica no “Y” de 12/1), editado pela Ananana,
Nanu e Miguel Cabral foram ainda mais longe. Uma das faixas, “300km” (a
distância entre os respetivos locais de residência) foi totalmente composto por
telefone. Nos restantes 24 temas o processo de composição resultou na troca de
cassetes e CD por correio, em que cada um apresentava um material pré-gravado
para ser posteriormente tratado pelo outro.
“Criámos algumas regras, a primeira
das quais foi a de cada um de nós restringir-se a apresentar um número certo de
12 temas, inacabados. A ideia era surpreender o outro”. Mais tarde, na casa de
Nanu, em Sintra, encontraram-se para ver o que cada um “tinha espatifado”.
O resultado final é um dos mais
originais álbuns de música, digamos eletrónica, de que há memória em Portugal.
Chama-se “Mobília” e na sua feitura Miguel e Nanu utilizaram, além de
instrumentos convencionais (teclados, guitarras, sampler, programações, banjo,
flauta, bateria), objetos e fontes sonoras como panelas, água, janela,
telefonias, televisão, atendedor de chamadas, bule, relógio de cuco, escova de
dentes, garrafas de plástico, gira-discos, cadeira, lâminas, moinho de pimenta…
Ainda gravações de campo recolhidas na cozinha e no Bairro Alto e a presença
dos convidados Miguel Pereira (contrabaixo), Cristina Parreira, Fernanda
Rodrigues, Filipa Sousa e Patrícia Tello (vozes).
Nanu e Miguel têm sensibilidades
musicais diferentes. Nanu tem trabalhado no teatro e feito “música
experimental” embora antes tenha “estado muito ligado ao rock alternativo dos
anos 80, da 4AD e Rough Trade” e, nos anos 70, à música de Frank Zappa,
Genesis, Gentle Giant – “com os quais cada vez me identifico mais, é curioso…”
Miguel inclina-se mais para a
construção e utilização de instrumentos artesanais e para a tecnologia. “Cresci
a ouvir rock-lixo, tipo Iron Maiden, Faith No More”. Mas cedo o heavy-metal
deixou de figurar nos seus hábitos auditivos, sendo substituído por John Zorn.
“O lado experimental é a única coisa que temas em comum”, diz.
Compõem e gravam ambos em casa. Nanu
com o programa Q-Base, sampler Akai e módulos Midi, além de fazer captação de
exteriores. Miguel utiliza o computador “como um gravador”. Não usa Midi. Os
dois trabalham também com programas “com quem mais ninguém trabalha, incluindo
alguns ‘roubados’ da internet”.
Espaços. Um “affaire” doméstico.
Arrumação de mobília em moldes inusitados. Colagens. De sensibilidades. De
exteriores com interiores. Da vanguarda com o retro. As gravuras de móveis e
eletrodomésticos da contracapa de “Mobília” ostentam design antigo, quase
barroco, metamorfose do funcional em objeto de arte.
Nanu chama a atenção para o facto de
haver “ambiências sempre relacionadas com o espaço da casa”. Quer “espaços
interiores, psicológicos, quer espaços físicos”. E para a importância da
dialética “contemporâneo” vs “retro”.
“Gostamos de música que não se pode
datar muito bem e por isso vamos buscar referências um bocado fora de prazo
para dar ao som um ar bolorento”, diz Miguel. Nanu alude por sua vez ao
fascínio que desde sempre sentiu pela rádio, os maus aparelhos, “a má rádio”:
“É curioso, quando ouço as coisas distorcidas dá-me a impressão de que elas
ganham a patine do tempo e um valor que as outras não têm. Só as coisas meio
escondidas, meio alteradas é que são verdadeiramente novas e causam alguma
surpresa. Por isso conservámos na música uma certa sujidade. Queremos manter o
mistério”.
“E a distância”, acrescenta Miguel.
“Casa” e “distância” são dois conceitos-chave que permitem entender a peculiar
arrumação de “Mobília”. Numa casa há tudo: “vivências, histórias, vidas, tempo,
interiores…”. As palavras são como “bibelots”. Sampladas ou em tempo real. “Aí
já não havia regras”, diz Miguel. Ou, como Nanu contrapõe, “existia a regra de
ter sempre que se trabalhar em casa”. Um dos temas, “Jefferies!”, ouve-se “como
se estivéssemos a ler as legendas de um filme”. No caso, um trecho da “Janela
Indiscreta” de Hitchcock. O tal mistério e suspense que os Mola Dudle pretendem
conservar. Em “O postal” a letra foi mesmo tirada do cartão: “Acabo de receber
o teu postal, muito estimando que continuem bem…”.
Os Mola Dudle estimam os objetos. E,
como mágicos, extraem deles música.
O próximo álbum poderá bem ser “um
projeto só sobre telefones”.
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