Músicas
“VELVET GOLDMINE”, DE TODD
HAYNES, ESTREIA-SE HOJE
A EXCITAÇÃO
DAQUILO TUDO
"Velvet Goldmine", de
Todd Haynes, reinventa o "glam rock" da década de 70 travestindo-se
na mesma explosão de cores, pose, música e transgressão. Numa primeira leitura,
filmará a relação entre David Bowie e Iggy Pop, aqui chamados Brian Slade e
Curt Wild. Mas como nada é o que parece ser, este conto de fadas
("fairies") que é também um conto de "maricas"
("fairies") é um jogo de espelhos e uma orgia de desvios. Bowie e
Pop, sim, mas também reflexos de Brian Eno, Kurt Cobain, Brian Ferry e outros,
com Oscar Wilde no início deles todos. Era uma vez os anos 70...
ESPALHAFATO,
exibicionismo, confusão sexual. Imagens de marca do "glam rock",
movimento que eclodiu em Inglaterra nos primórdios da década de 70 para se
extinguir um par de anos depois sem deixar outras marcas senão as do vazio. Como
uma ejaculação precoce ou o relâmpago que permite ter um vislumbre do céu, o
"glam" gastou-se no instante em que foi moda. Aliás, jamais passou
disso - de uma marca de roupas, de maquilhagem e de maneiras de sentir.
"Re-make, re-model"
(canção do primeiro álbum dos Roxy Music, de 1972). Refazer e remodelar. Em
"Velvet Godmine", Brian Slade (Brian Eno e Bryan Ferry colados aos
Slade?) e Curt Wild (Kurt Weill, patriarca do cabaré berlinense do qual a
personagem de Jack Fairy é uma emanação?) não são figuras de carne e osso. São
modelos ou manequins, capazes de vestir as plumas e lantejoulas do guarda-fato
"glam" mas também - o que o filme de Todd Haynes acentua, num truque
de ilusionismo que se confunde com a essência do movimento - diferentes personagens
"reais", das quais David Bowie e Iggy Pop abocanham a maior fatia de
protagonismo.
Ao longo do filme as personagens de
Slade (Jonathan Rhys-Meyer) e Wild (Ewan McGregor) imitam a relação de Bowie e
Pop (o primeiro relançou a carreira do segundo, ao produzir-lhe o álbum
"The Idiot"), representando as duas faces que desde sempre constituem
a contradição essencial do rock, dilacerado entre o espetáculo de mil
manipulações que faz vender e a expressão genuína de emoções. Entre o artifício
que Slade personifica e o animal impossível de domesticar que é Wild, exibe-se
o confronto e a atração que levam Arthur Stuart (Christian Bale), jornalista,
do fascínio à perplexidade e, finalmente, da dúvida à resignação.
Fadas e “fairies”
"Velvet Goldmine", como o
"glam rock", acumula e sobrepõe imagens. Não propõe uma
reconstituição histórica ou sociológica de uma época, da mesma maneira que o
"glam" nunca pretendeu fazer qualquer síntese do passado da música
popular. O que Bowie, os Roxy, Marc Bolan, Steve Harley, Gary Glitter, Queen,
Slade ou Sparks, entre outros, fizeram foi misturar num batedor o rock 'n'
roll, a música de cabaré, a ópera, o bubblegum e a balada romântica, maquilhar
o produto mutante resultante com o pó de arroz da literatura e o bâton da
decadência e carimbá-lo com o passaporte do futurismo. Não faz sentido falar, a
propósito do filme e do "glam", de uma ética (era o entrave a
derrubar), mas em ambos se revela uma estética: a do movimento sem outro
propósito senão o de se exibir como correria para o abismo. Forma sem conteúdo.
Melhor, forma igual a conteúdo.
Mas o "glam" foi também a
apoplexia da aparência. E, na aparência, como toda a fase inicial do filme
demonstra num entusiasmo de cores, espelhos e canções, foi uma história de fadas
("fairies"). Com a carga de ambiguidade de uma história de
"fairies" (maricas). Oscar Wilde, homossexual, está no início dessa
história. É ele o primeiro a segurar o espelho onde as imagens são refletidas
ao contrário.
O "glam", ao contrário do
que Bowie/ "Ziggy Stardust" cantava com os seus Spiders from Mars,
noutro álbum que é um clássico de 1972, não desceu de Marte, mas de Vénus, onde
se diz que reina Lúcifer, senhor das ilusões. Verde é a cor do seu ceptro.
Verde é a cor do broche de esmeralda, pedra do pecado, que circula como
testemunho pelas personagens do filme. Brian Slade (cujo alter-ego é Matt
Demon, repare-se no apelido) rouba-a a Jack Fairy para finalmente a transmitir
dentro de uma garrafa vazia ao jornalista Arthur Stuart. O filme é também o
retrato da assunção da sexualidade deste, primeiro através do mimetismo, ainda
como fã, com os seus ídolos para, já sobre as cinzas do "glam", se
interrogar sobre a autenticidade desse processo de identificação.
Satélites do amor
Deixe-se de lado o romantismo. Cinco
anos depois da despenalização em Inglaterra, em 1967, da homossexualidade, o
"glam" quis ser um deboche em que valia, e valeu, tudo. Primeiro era
preciso trocar de roupa. Para com mais facilidade se trocar de sexo. Ser
heterossexual era uma limitação. Homossexual não o era menos. Juntavam-se as
duas pulsões. Bowie, numa entrevista em 1972, afirmava ser bissexual. Não era
suficiente. David Johansen, dos New York Dolls (clonado, em "Velvet
Goldmine", por Brian Molko, dos Placebo) babava-se ao dizer: "Sou
trissexual - quero experimentar tudo". De "Re-make, re-model" o
caminho conduzia a "The thrill of it all", "a excitação disto
tudo", outro hino dos Roxy Music.
Provavelmente, mais do que o punk, o
"glam" encarregou-se de fulminar o amor. Por mais que Brian Slade e
Curt Wild se beijem, em "Velvet Goldmine", ao som de "Satellite
of love", de Lou Reed. Ao fazer alarde do ódio e da repulsa, o punk era
ainda sinal de uma ligação afetiva. Ao "glam" bastava a profundidade
da pele. Das sedas e do veludo. Do plástico de uma boneca insuflável. Em
"In every dream home, a heartache", do álbum "For your
Pleasure", outra obra-prima dos Roxy Music, Ferry canta as delícias da
relação homem-boneca: "eu sopro para dentro do teu corpo mas tu fazes-me
explodir a cabeça".
O "glam" foi música
transformada em cinema, e "Velvet Goldmine" é cinema feito
"glam". As personagens são múltiplas. Como se a memória do cineasta
conservasse do passado uma recordação, voluntária ou involuntariamente
distorcida.
Brian Slade será David Bowie. Mas
Bowie não permitiu que usassem nenhuma das suas canções na banda-sonora,
reservando-as para outro filme, a rodar proximamente, sobre "The Rise and
Fall of Ziggy Stardust and the Spiders from Mars" - o cantor tornou
público o seu descontentamento em relação ao modo como tem sido feita a
associação entre a sua vida e a da personagem.
Slade não é Bowie, então, mas uma
fotografia sua, retocada. Foto desfocada de Bowie foi também Jobriath, bizarra
caricatura de David Bowie que, em pleno brilho "glam", a indústria
apresentou como sucessor de Elvis e dos Beatles. Jobriath gravou dois álbuns,
"Jobriath" e "Creatures of the Street", com uma música que
erguia a futilidade ao estatuto de arte mas que ninguém compreendeu. A seguir
desapareceu, afogado no álcool e nas drogas. Mais do que Bowie, foi o
verdadeiro extra-terrestre que desceu à Terra para levar o planeta à perdição.
São dele as frases: "a esquizofrenia não é uma coisa assim tão má. Pode
bem ser o estilo de vida dos anos 70", ou, num desafio a Bowie, "Eu
sou o genuíno paneleiro". Morrissey, ex-vocalista dos Smiths e admirador
de Oscar Wilde, tentou recentemente trazer Jobriath de novo para a ribalta. Em
vão. Como Brian Slade em "Velvet Goldmine", ninguém sabe do seu
paradeiro.
Será Brian Slade também Brian Eno?
Na sua primeira apresentação em palco surge com uma indumentária que não
pertencia ao guarda-roupa de Bowie mas ao do teclista, nos dois primeiros
álbuns, dos Roxy Music, cuja música é largamente utilizada na banda-sonora de
"Velvet Goldmine".
Curt Wild começa por ser Iggy Pop,
"o torso", o lado visceral do rock que se opunha à teatralidade
"camp" personificada por Bowie, mas à medida que a película de
"star" se desbota e a garrafa se esvazia, confunde-se com Kurt Cobain,
dos Nirvana, que sucumbiu ao peso das imagens e do artificialismo - e com Jim
Morrison dos Doors, no que acaba por ser mais uma inversão, a do
"glam" na pura energia do rock 'n' roll.
Mandy Slade, mulher de Brian Slade,
é Angie Bowie. Mas quando ela surpreende o marido na cama com Curt Wild mais
uma vez a cena não bate certo com o que a memória retém da
"realidade". Reza a lenda que Angie apanhou Bowie em flagrante
delito, não com Iggy Pop, mas com Mick Jagger.
Há também a cena em que um clone de
Mick Ronson, dos Mott the Hoople e guitarrista de Bowie, toca a guitarra de
Slade de joelhos, numa sugestão de "felatio" - o que aconteceu de
facto entre Bowie e Ronson. E há uma rapariga a fazer de Suzy Quatro, cantando
um título que não poderia ser mais emblemático, "Personality crisis",
dos New York Dolls, que se confundem com os Venus in Furs do filme, banda que
juntou, para "Velvet Goldmine", Thom Yorke e Jon Greenwood, dos
Radiohead, Bernard Butler, ex- Suede, e Andy MacKay, dos Roxy Music.
Onde começa a realidade e termina a
ficção? Numa das últimas cenas de "Velvet Goldmine", Curt Wild dá a
chave que abre a caixa de pechisbeques: "No início quisemos mudar o mundo
mas no fim os únicos que mudaram fomos nós". O que é mau, quando mais
ninguém mudou.
sexta-feira,
28 Maio 1999
ARTES & ÓCIOS
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