19/12/2016

A excitação daquilo tudo [Velvet Goldmine]

Músicas

“VELVET GOLDMINE”, DE TODD HAYNES, ESTREIA-SE HOJE

A EXCITAÇÃO DAQUILO TUDO

"Velvet Goldmine", de Todd Haynes, reinventa o "glam rock" da década de 70 travestindo-se na mesma explosão de cores, pose, música e transgressão. Numa primeira leitura, filmará a relação entre David Bowie e Iggy Pop, aqui chamados Brian Slade e Curt Wild. Mas como nada é o que parece ser, este conto de fadas ("fairies") que é também um conto de "maricas" ("fairies") é um jogo de espelhos e uma orgia de desvios. Bowie e Pop, sim, mas também reflexos de Brian Eno, Kurt Cobain, Brian Ferry e outros, com Oscar Wilde no início deles todos. Era uma vez os anos 70...

ESPALHAFATO, exibicionismo, confusão sexual. Imagens de marca do "glam rock", movimento que eclodiu em Inglaterra nos primórdios da década de 70 para se extinguir um par de anos depois sem deixar outras marcas senão as do vazio. Como uma ejaculação precoce ou o relâmpago que permite ter um vislumbre do céu, o "glam" gastou-se no instante em que foi moda. Aliás, jamais passou disso - de uma marca de roupas, de maquilhagem e de maneiras de sentir.
            "Re-make, re-model" (canção do primeiro álbum dos Roxy Music, de 1972). Refazer e remodelar. Em "Velvet Godmine", Brian Slade (Brian Eno e Bryan Ferry colados aos Slade?) e Curt Wild (Kurt Weill, patriarca do cabaré berlinense do qual a personagem de Jack Fairy é uma emanação?) não são figuras de carne e osso. São modelos ou manequins, capazes de vestir as plumas e lantejoulas do guarda-fato "glam" mas também - o que o filme de Todd Haynes acentua, num truque de ilusionismo que se confunde com a essência do movimento - diferentes personagens "reais", das quais David Bowie e Iggy Pop abocanham a maior fatia de protagonismo.
            Ao longo do filme as personagens de Slade (Jonathan Rhys-Meyer) e Wild (Ewan McGregor) imitam a relação de Bowie e Pop (o primeiro relançou a carreira do segundo, ao produzir-lhe o álbum "The Idiot"), representando as duas faces que desde sempre constituem a contradição essencial do rock, dilacerado entre o espetáculo de mil manipulações que faz vender e a expressão genuína de emoções. Entre o artifício que Slade personifica e o animal impossível de domesticar que é Wild, exibe-se o confronto e a atração que levam Arthur Stuart (Christian Bale), jornalista, do fascínio à perplexidade e, finalmente, da dúvida à resignação.

Fadas e “fairies”

            "Velvet Goldmine", como o "glam rock", acumula e sobrepõe imagens. Não propõe uma reconstituição histórica ou sociológica de uma época, da mesma maneira que o "glam" nunca pretendeu fazer qualquer síntese do passado da música popular. O que Bowie, os Roxy, Marc Bolan, Steve Harley, Gary Glitter, Queen, Slade ou Sparks, entre outros, fizeram foi misturar num batedor o rock 'n' roll, a música de cabaré, a ópera, o bubblegum e a balada romântica, maquilhar o produto mutante resultante com o pó de arroz da literatura e o bâton da decadência e carimbá-lo com o passaporte do futurismo. Não faz sentido falar, a propósito do filme e do "glam", de uma ética (era o entrave a derrubar), mas em ambos se revela uma estética: a do movimento sem outro propósito senão o de se exibir como correria para o abismo. Forma sem conteúdo. Melhor, forma igual a conteúdo.
            Mas o "glam" foi também a apoplexia da aparência. E, na aparência, como toda a fase inicial do filme demonstra num entusiasmo de cores, espelhos e canções, foi uma história de fadas ("fairies"). Com a carga de ambiguidade de uma história de "fairies" (maricas). Oscar Wilde, homossexual, está no início dessa história. É ele o primeiro a segurar o espelho onde as imagens são refletidas ao contrário.
            O "glam", ao contrário do que Bowie/ "Ziggy Stardust" cantava com os seus Spiders from Mars, noutro álbum que é um clássico de 1972, não desceu de Marte, mas de Vénus, onde se diz que reina Lúcifer, senhor das ilusões. Verde é a cor do seu ceptro. Verde é a cor do broche de esmeralda, pedra do pecado, que circula como testemunho pelas personagens do filme. Brian Slade (cujo alter-ego é Matt Demon, repare-se no apelido) rouba-a a Jack Fairy para finalmente a transmitir dentro de uma garrafa vazia ao jornalista Arthur Stuart. O filme é também o retrato da assunção da sexualidade deste, primeiro através do mimetismo, ainda como fã, com os seus ídolos para, já sobre as cinzas do "glam", se interrogar sobre a autenticidade desse processo de identificação.

Satélites do amor

            Deixe-se de lado o romantismo. Cinco anos depois da despenalização em Inglaterra, em 1967, da homossexualidade, o "glam" quis ser um deboche em que valia, e valeu, tudo. Primeiro era preciso trocar de roupa. Para com mais facilidade se trocar de sexo. Ser heterossexual era uma limitação. Homossexual não o era menos. Juntavam-se as duas pulsões. Bowie, numa entrevista em 1972, afirmava ser bissexual. Não era suficiente. David Johansen, dos New York Dolls (clonado, em "Velvet Goldmine", por Brian Molko, dos Placebo) babava-se ao dizer: "Sou trissexual - quero experimentar tudo". De "Re-make, re-model" o caminho conduzia a "The thrill of it all", "a excitação disto tudo", outro hino dos Roxy Music.
            Provavelmente, mais do que o punk, o "glam" encarregou-se de fulminar o amor. Por mais que Brian Slade e Curt Wild se beijem, em "Velvet Goldmine", ao som de "Satellite of love", de Lou Reed. Ao fazer alarde do ódio e da repulsa, o punk era ainda sinal de uma ligação afetiva. Ao "glam" bastava a profundidade da pele. Das sedas e do veludo. Do plástico de uma boneca insuflável. Em "In every dream home, a heartache", do álbum "For your Pleasure", outra obra-prima dos Roxy Music, Ferry canta as delícias da relação homem-boneca: "eu sopro para dentro do teu corpo mas tu fazes-me explodir a cabeça".
            O "glam" foi música transformada em cinema, e "Velvet Goldmine" é cinema feito "glam". As personagens são múltiplas. Como se a memória do cineasta conservasse do passado uma recordação, voluntária ou involuntariamente distorcida.
            Brian Slade será David Bowie. Mas Bowie não permitiu que usassem nenhuma das suas canções na banda-sonora, reservando-as para outro filme, a rodar proximamente, sobre "The Rise and Fall of Ziggy Stardust and the Spiders from Mars" - o cantor tornou público o seu descontentamento em relação ao modo como tem sido feita a associação entre a sua vida e a da personagem.
            Slade não é Bowie, então, mas uma fotografia sua, retocada. Foto desfocada de Bowie foi também Jobriath, bizarra caricatura de David Bowie que, em pleno brilho "glam", a indústria apresentou como sucessor de Elvis e dos Beatles. Jobriath gravou dois álbuns, "Jobriath" e "Creatures of the Street", com uma música que erguia a futilidade ao estatuto de arte mas que ninguém compreendeu. A seguir desapareceu, afogado no álcool e nas drogas. Mais do que Bowie, foi o verdadeiro extra-terrestre que desceu à Terra para levar o planeta à perdição. São dele as frases: "a esquizofrenia não é uma coisa assim tão má. Pode bem ser o estilo de vida dos anos 70", ou, num desafio a Bowie, "Eu sou o genuíno paneleiro". Morrissey, ex-vocalista dos Smiths e admirador de Oscar Wilde, tentou recentemente trazer Jobriath de novo para a ribalta. Em vão. Como Brian Slade em "Velvet Goldmine", ninguém sabe do seu paradeiro.
            Será Brian Slade também Brian Eno? Na sua primeira apresentação em palco surge com uma indumentária que não pertencia ao guarda-roupa de Bowie mas ao do teclista, nos dois primeiros álbuns, dos Roxy Music, cuja música é largamente utilizada na banda-sonora de "Velvet Goldmine".
            Curt Wild começa por ser Iggy Pop, "o torso", o lado visceral do rock que se opunha à teatralidade "camp" personificada por Bowie, mas à medida que a película de "star" se desbota e a garrafa se esvazia, confunde-se com Kurt Cobain, dos Nirvana, que sucumbiu ao peso das imagens e do artificialismo - e com Jim Morrison dos Doors, no que acaba por ser mais uma inversão, a do "glam" na pura energia do rock 'n' roll.
            Mandy Slade, mulher de Brian Slade, é Angie Bowie. Mas quando ela surpreende o marido na cama com Curt Wild mais uma vez a cena não bate certo com o que a memória retém da "realidade". Reza a lenda que Angie apanhou Bowie em flagrante delito, não com Iggy Pop, mas com Mick Jagger.
            Há também a cena em que um clone de Mick Ronson, dos Mott the Hoople e guitarrista de Bowie, toca a guitarra de Slade de joelhos, numa sugestão de "felatio" - o que aconteceu de facto entre Bowie e Ronson. E há uma rapariga a fazer de Suzy Quatro, cantando um título que não poderia ser mais emblemático, "Personality crisis", dos New York Dolls, que se confundem com os Venus in Furs do filme, banda que juntou, para "Velvet Goldmine", Thom Yorke e Jon Greenwood, dos Radiohead, Bernard Butler, ex- Suede, e Andy MacKay, dos Roxy Music.
            Onde começa a realidade e termina a ficção? Numa das últimas cenas de "Velvet Goldmine", Curt Wild dá a chave que abre a caixa de pechisbeques: "No início quisemos mudar o mundo mas no fim os únicos que mudaram fomos nós". O que é mau, quando mais ninguém mudou.

sexta-feira, 28 Maio 1999

ARTES & ÓCIOS

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