DOMINGO, 7 FEVEREIRO 1999 cultura
José
Salgueiro abre Festnia no CCB
Adufes, adufões e adufeiros
ADUFÕES,
ENORMES adufões suspensos em fila no fundo do palco, iluminados por detrás,
enchiam na sexta-feira, dia 5, o campo visual do espetáculo de abertura do
Festival Etnia, que até ao fim do mês preencherá os fins-de-semana do Grande
Auditório do Centro Cultural de Belém, em Lisboa.
José Salgueiro idealizou esta nova
modalidade, revista e, sobretudo, aumentada (mais ou menos para dois metros de
lado), de um dos mais típicos instrumentos tradicionais portugueses e a partir
dela iniciou um novo projeto musical ao qual chamou, precisamente, Adufe.
Tudo se joga no aspeto cénico e
sonoro dos quatro adufões que José Salgueiro idealizou para este espetáculo.
Visível é, no modo como os músicos “atacam” a pele deste enorme instrumento, a
influência da postura dos tocadores de tambores japoneses Taiko. Os movimentos
sincronizados, a pose guerreira, até o fragor e a profundidade dos graves
produzidos pelos adufões sugerem a escuta e a visão dos grandes regimentos
percutivos que eclodem no país do sol nascente.
A primeira parte do concerto dos
Adufe incluiu um “Tronco” e “Aqui há latas”, este último tema retirado do álbum
de estreia dos Tim Tim por Tim Tum, dos quais José Salgueiro também fez parte.
Brilharam os adufões e o lado ritual do grupo, apenas quebrado pela entrada em
cena das Adufeiras de Monsanto, convidadas do espetáculo.
“Arvoredo”, “Macelada” e “Lá em cima
o castelo” trouxeram a proximidade das raízes para o palco do CCB, o toque
animal e anímico dos adufes a marcar o tempo das vozes e de tempos mais
antigos. A proximidade das raízes e não as raízes propriamente ditas porque no
segundo daqueles temas primou o conceito de fusão, com o acompanhamento de uma
“drone” gutural soprada numa grande trompa por um dos elementos dos também
convidados Boomerang, um marimbofone percutido em registo minimal por José
Salgueiro e as distorções e reverberações da guitarra elétrica, algo deslocada
e ainda à procura do seu lugar próprio na música do grupo, de Mário Delgado.
Rui Vaz protagonizou um dos melhores momentos da primeira parte do concerto com
uma vocalização possante em “Moda d’azeitona” logo seguida, a fechar, por mais
uma trovoada dos adufões, em “Adufão”.
Depois do intervalo, “Lamento do
castanho”, “Marcha” e “Lenga-lenga”, estes dois últimos extraídos do álbum
“Invasões Bárbaras”, contaram com a presença não anunciada no programa, dos
Gaiteiros de Lisboa, apresentando quatro dos seus elementos armados – o que até
nem é muito vulgar acontecer no seu próprio grupo – de gaitas-de-foles. “Lilaré
dos cinco sentidos” antecedeu nova aparição das Adufeiras de Monsanto para cantarem
“Eras tão bonita” e “Senhora do Almurtão”, desta vez apoiadas no fundo telúrico
criado pelos quatro adufões.
O público, que esteve longe de
encher a sala, gostou e pediu mais. Para o “encore” estava guardado um dos
momentos musicalmente mais cativantes de todo o concerto, um “Vai-te embora, ó
papão” que começou um intrincado dueto de percussões de Salgueiro e Acácio
Salero e terminou num uníssono de gaita-de-foles de Rui Vaz com a guitarra
elétrica de Delgado, aqui bastante mais integrada e a fazer sentido na lógica
geral dos Adufe. Para já, todo o projeto soa um pouco como uma derivação, mais
percussiva, dos Gaiteiros de Lisboa (aos quais, aliás, Salgueiro também
pertence, o mesmo acontecendo com Rui Vaz), dando, porém, garantias de possuir
dentro de si os germes de um discurso autónomo que o futuro decerto se
encarregará de confirmar.
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