12/12/2016

Adufes, adufões e adufeiros [Adufe]

DOMINGO, 7 FEVEREIRO 1999 cultura

José Salgueiro abre Festnia no CCB

Adufes, adufões e adufeiros

ADUFÕES, ENORMES adufões suspensos em fila no fundo do palco, iluminados por detrás, enchiam na sexta-feira, dia 5, o campo visual do espetáculo de abertura do Festival Etnia, que até ao fim do mês preencherá os fins-de-semana do Grande Auditório do Centro Cultural de Belém, em Lisboa.
            José Salgueiro idealizou esta nova modalidade, revista e, sobretudo, aumentada (mais ou menos para dois metros de lado), de um dos mais típicos instrumentos tradicionais portugueses e a partir dela iniciou um novo projeto musical ao qual chamou, precisamente, Adufe.
            Tudo se joga no aspeto cénico e sonoro dos quatro adufões que José Salgueiro idealizou para este espetáculo. Visível é, no modo como os músicos “atacam” a pele deste enorme instrumento, a influência da postura dos tocadores de tambores japoneses Taiko. Os movimentos sincronizados, a pose guerreira, até o fragor e a profundidade dos graves produzidos pelos adufões sugerem a escuta e a visão dos grandes regimentos percutivos que eclodem no país do sol nascente.
            A primeira parte do concerto dos Adufe incluiu um “Tronco” e “Aqui há latas”, este último tema retirado do álbum de estreia dos Tim Tim por Tim Tum, dos quais José Salgueiro também fez parte. Brilharam os adufões e o lado ritual do grupo, apenas quebrado pela entrada em cena das Adufeiras de Monsanto, convidadas do espetáculo.
            “Arvoredo”, “Macelada” e “Lá em cima o castelo” trouxeram a proximidade das raízes para o palco do CCB, o toque animal e anímico dos adufes a marcar o tempo das vozes e de tempos mais antigos. A proximidade das raízes e não as raízes propriamente ditas porque no segundo daqueles temas primou o conceito de fusão, com o acompanhamento de uma “drone” gutural soprada numa grande trompa por um dos elementos dos também convidados Boomerang, um marimbofone percutido em registo minimal por José Salgueiro e as distorções e reverberações da guitarra elétrica, algo deslocada e ainda à procura do seu lugar próprio na música do grupo, de Mário Delgado. Rui Vaz protagonizou um dos melhores momentos da primeira parte do concerto com uma vocalização possante em “Moda d’azeitona” logo seguida, a fechar, por mais uma trovoada dos adufões, em “Adufão”.
            Depois do intervalo, “Lamento do castanho”, “Marcha” e “Lenga-lenga”, estes dois últimos extraídos do álbum “Invasões Bárbaras”, contaram com a presença não anunciada no programa, dos Gaiteiros de Lisboa, apresentando quatro dos seus elementos armados – o que até nem é muito vulgar acontecer no seu próprio grupo – de gaitas-de-foles. “Lilaré dos cinco sentidos” antecedeu nova aparição das Adufeiras de Monsanto para cantarem “Eras tão bonita” e “Senhora do Almurtão”, desta vez apoiadas no fundo telúrico criado pelos quatro adufões.
            O público, que esteve longe de encher a sala, gostou e pediu mais. Para o “encore” estava guardado um dos momentos musicalmente mais cativantes de todo o concerto, um “Vai-te embora, ó papão” que começou um intrincado dueto de percussões de Salgueiro e Acácio Salero e terminou num uníssono de gaita-de-foles de Rui Vaz com a guitarra elétrica de Delgado, aqui bastante mais integrada e a fazer sentido na lógica geral dos Adufe. Para já, todo o projeto soa um pouco como uma derivação, mais percussiva, dos Gaiteiros de Lisboa (aos quais, aliás, Salgueiro também pertence, o mesmo acontecendo com Rui Vaz), dando, porém, garantias de possuir dentro de si os germes de um discurso autónomo que o futuro decerto se encarregará de confirmar.

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