CULTURA
TERÇA-FEIRA,
2 OUTUBRO 2001
XV ENCONTROS ACARTE
The Residents, pesadelo em
technicolor
“ICKY FLIX” EM ESTREIA AO VIVO
Cumpriu-se a história. Os
Residents enfim em Portugal. Mais formais do que eram antes, mas ainda assim
capazes de fazer o público arregalar os olhos perante o seu circo de horrores
Uma lenda é uma lenda é uma lenda residente.
Devem as lendas permanecer para sempre como tal, meras representações
simbólicas estruturantes do Real, motores invisíveis do mundo? Ou, pelo
contrário, descerem à terra como anjos decaídos? Os Residents, banda
"underground" (agora já não tanto...) americana que há 30 anos vem
escavacando, com tanto de loucura como de método, as fundações da música pop ocidental,
são uma lenda. E, ao fim de todo este tempo, o tempo que demorou a este coletivo
de homens sem rosto nem nome, a desenrolar a sua visão única e distorcida do
universo de emoções, sons e imagens alterados em que se movem, os Residents
apresentaram-se em carne e osso em Portugal. No passado fim-de-semana, sábado e
domingo, em Lisboa, com lotações esgotadas, na vetusta instituição que é a
Fundação Calouste Gulbenkian.
O que aconteceu nessas duas noites,
em termos de receção do público, era previsível. Gente a aplaudir de pé, gritos
de "obrigado", como se esta tivesse sido (e provavelmente terá
sido...) a oportunidade de uma vida. Não é todos os dias que as lendas se
mostram em carne e osso ao comum dos mortais, ainda que, no caso dos Residents,
a "carne" e o "osso" tenham a consistência da alucinação.
E, no entanto, sobretudo para quem
tem acompanhado ao longo dos anos a carreira e a obra dos Residents – e que não
se deixou impressionar pela tal carga simbólica e pelo "faits divers",
ultracolorido e fosforescente, com que o grupo pintou esta sua performance, de
genérico "Icky Flix" – ficou alguma frustração. O lado
"freaky", desde sempre cuidadosamente cultivado pelos Residents,
institucionalizou-se (teria a Gulbenkian aberto ao grupo as portas da sua casa,
se assim não fosse?...). Foram uns Residents "mainstream", digamos
assim, aqueles que passaram por Lisboa.
Catálogo geral
Foi, apesar
de tudo, um bom concerto. Diferente q.b. Perigoso até, para quem se dispôs a
investir numa leitura aprofundada do grande pesadelo em technicolor que os
Residents, mesmo mais domesticados que há 20, 25 anos, trouxeram ao público
português.
"Icky Flix", o espetáculo,
é uma espécie de catálogo geral de uma obra impossível de abarcar e catalogar
de forma unidimensional. Sobre um ecrã suspenso sobre o palco, o mesmo
"icky cube" que permite seleccionar as várias opções no formato DVD
de "Icky Flix", serviu de "menu" ao alinhamento, indicando
os títulos que iam sendo tocados. Ideia engraçada que acabou por irritar, ao
acentuar o tal lado de mostruário que enfermou todo o espetáculo.
Os músicos, em número de quatro
(computadores, teclados e percussões eletrónicas, uma guitarra elétrica MIDI),
apresentaram-se camuflados, como se esperava. Não disfarçados de
"eyeballs", descontando o "compère" que deu início à
função, que lá apareceu impecavelmente fardado de fraque e com a já mítica
cabeça-em-feitio-de-olho, mas trazendo luzes de lanterna fixas na testa, a
conferir-lhes o adequado ar de ameaça. Mr. Skull, o senhor deformidade, e uma
"barbie"-fantoche fosforescente saída de uma "rave"
psicadélica, foram os cantores, mimos e dançarinos de serviço e o principal
foco de atração de um "show" que impressionou, sobretudo, pela
qualidade e originalidade dos vídeos que foram sendo projetados.
O mundo visual dos Residents é um
"cartoon" grotesco e surrealista, feito de metamorfoses físicas e
crueldades mais sugeridas do que explícitas. Tortura cósmica cujos efeitos se
fazem sentir nos pequenos gestos do dia-a-dia. A mente perde-se neste jogo de
monstros e universos paralelos que a cada momento se entrecruzam e contaminam.
Como toupeiras, ou vermes, os Residents não fazem mais do que agitar a terra
das aparências e trazer à superfície os demónios mais recônditos que habitam
dentro de cada um de nós. À semelhança do que Cronenberg e Lynch (sobretudo de
"Eraserhead") fazem nos seus filmes.
Canções pop como o humanitário
"We are the world", transformada em "We are the worms"
("nós somos os vermes"), foram amassadas até se tornarem dejetos auditivos.
Mr. Skull e a boneca fosforescente mimaram a impossibilidade da relação amorosa
numa dança de corpos incapazes de se tocar. Em "Where is she?", um
dos raros momentos realmente dramáticos de "Icky Flix", Mr. Skull
personificou a agonia da ausência do amor, gritando como uma criatura cega, a
implorar a presença da mulher-fantasma.
Terá sido, nesta inesperada
dimensão, apesar de tudo amorosa, que o concerto – musicalmente, uma sinfonia
eletrónica peso-pesada embora distante da anarquia Dada que fez dos Residents
de antigamente os incontestados soberanos do bizarro – deixou recordações mais
fortes. Ao nível do "encore", 20 minutos nos quais, prescindindo
enfim de todo o aparato visual, os Residents provaram ser a Besta do
rock'n'roll.
No final, Mr.Skull, enredado na sua
solidão, entre a maquinaria sonora por fim silenciada, exalou o último suspiro
do náufrago, instantes antes de se afundar no oceano da sua paranóia, em
"Freak show", cuja letra encerra todo um manifesto de intenções: “‘Apenas
somos iguais no túmulo e na escuridão', disse um homem cuja cabeça foi mordida
por um tubarão. Agora, se me perguntam porque é que eu continuo com tudo isto,
duvido que saiba a resposta, por isso apenas faço um palpite: ‘Ter só metade da
boca pode não ser grande coisa, mas ainda assim chega para metade de um beijo’”.
E, da sua boca arrepanhada, o rosto erguido para o alto num esgar de súplica,
tal qual o "Homem-Elefante", de David Lynch, desprendeu-se o horrível
ruído. Derradeiro testemunho de uma humanidade perdida.
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