05/12/2016

The Residents, pesadelo em technicolor

CULTURA
TERÇA-FEIRA, 2 OUTUBRO 2001

XV ENCONTROS ACARTE

The Residents, pesadelo em technicolor

“ICKY FLIX” EM ESTREIA AO VIVO

Cumpriu-se a história. Os Residents enfim em Portugal. Mais formais do que eram antes, mas ainda assim capazes de fazer o público arregalar os olhos perante o seu circo de horrores

Uma lenda é uma lenda é uma lenda residente. Devem as lendas permanecer para sempre como tal, meras representações simbólicas estruturantes do Real, motores invisíveis do mundo? Ou, pelo contrário, descerem à terra como anjos decaídos? Os Residents, banda "underground" (agora já não tanto...) americana que há 30 anos vem escavacando, com tanto de loucura como de método, as fundações da música pop ocidental, são uma lenda. E, ao fim de todo este tempo, o tempo que demorou a este coletivo de homens sem rosto nem nome, a desenrolar a sua visão única e distorcida do universo de emoções, sons e imagens alterados em que se movem, os Residents apresentaram-se em carne e osso em Portugal. No passado fim-de-semana, sábado e domingo, em Lisboa, com lotações esgotadas, na vetusta instituição que é a Fundação Calouste Gulbenkian.
            O que aconteceu nessas duas noites, em termos de receção do público, era previsível. Gente a aplaudir de pé, gritos de "obrigado", como se esta tivesse sido (e provavelmente terá sido...) a oportunidade de uma vida. Não é todos os dias que as lendas se mostram em carne e osso ao comum dos mortais, ainda que, no caso dos Residents, a "carne" e o "osso" tenham a consistência da alucinação.
            E, no entanto, sobretudo para quem tem acompanhado ao longo dos anos a carreira e a obra dos Residents – e que não se deixou impressionar pela tal carga simbólica e pelo "faits divers", ultracolorido e fosforescente, com que o grupo pintou esta sua performance, de genérico "Icky Flix" – ficou alguma frustração. O lado "freaky", desde sempre cuidadosamente cultivado pelos Residents, institucionalizou-se (teria a Gulbenkian aberto ao grupo as portas da sua casa, se assim não fosse?...). Foram uns Residents "mainstream", digamos assim, aqueles que passaram por Lisboa.

Catálogo geral
Foi, apesar de tudo, um bom concerto. Diferente q.b. Perigoso até, para quem se dispôs a investir numa leitura aprofundada do grande pesadelo em technicolor que os Residents, mesmo mais domesticados que há 20, 25 anos, trouxeram ao público português.
            "Icky Flix", o espetáculo, é uma espécie de catálogo geral de uma obra impossível de abarcar e catalogar de forma unidimensional. Sobre um ecrã suspenso sobre o palco, o mesmo "icky cube" que permite seleccionar as várias opções no formato DVD de "Icky Flix", serviu de "menu" ao alinhamento, indicando os títulos que iam sendo tocados. Ideia engraçada que acabou por irritar, ao acentuar o tal lado de mostruário que enfermou todo o espetáculo.
            Os músicos, em número de quatro (computadores, teclados e percussões eletrónicas, uma guitarra elétrica MIDI), apresentaram-se camuflados, como se esperava. Não disfarçados de "eyeballs", descontando o "compère" que deu início à função, que lá apareceu impecavelmente fardado de fraque e com a já mítica cabeça-em-feitio-de-olho, mas trazendo luzes de lanterna fixas na testa, a conferir-lhes o adequado ar de ameaça. Mr. Skull, o senhor deformidade, e uma "barbie"-fantoche fosforescente saída de uma "rave" psicadélica, foram os cantores, mimos e dançarinos de serviço e o principal foco de atração de um "show" que impressionou, sobretudo, pela qualidade e originalidade dos vídeos que foram sendo projetados.
            O mundo visual dos Residents é um "cartoon" grotesco e surrealista, feito de metamorfoses físicas e crueldades mais sugeridas do que explícitas. Tortura cósmica cujos efeitos se fazem sentir nos pequenos gestos do dia-a-dia. A mente perde-se neste jogo de monstros e universos paralelos que a cada momento se entrecruzam e contaminam. Como toupeiras, ou vermes, os Residents não fazem mais do que agitar a terra das aparências e trazer à superfície os demónios mais recônditos que habitam dentro de cada um de nós. À semelhança do que Cronenberg e Lynch (sobretudo de "Eraserhead") fazem nos seus filmes.
            Canções pop como o humanitário "We are the world", transformada em "We are the worms" ("nós somos os vermes"), foram amassadas até se tornarem dejetos auditivos. Mr. Skull e a boneca fosforescente mimaram a impossibilidade da relação amorosa numa dança de corpos incapazes de se tocar. Em "Where is she?", um dos raros momentos realmente dramáticos de "Icky Flix", Mr. Skull personificou a agonia da ausência do amor, gritando como uma criatura cega, a implorar a presença da mulher-fantasma.
            Terá sido, nesta inesperada dimensão, apesar de tudo amorosa, que o concerto – musicalmente, uma sinfonia eletrónica peso-pesada embora distante da anarquia Dada que fez dos Residents de antigamente os incontestados soberanos do bizarro – deixou recordações mais fortes. Ao nível do "encore", 20 minutos nos quais, prescindindo enfim de todo o aparato visual, os Residents provaram ser a Besta do rock'n'roll.
            No final, Mr.Skull, enredado na sua solidão, entre a maquinaria sonora por fim silenciada, exalou o último suspiro do náufrago, instantes antes de se afundar no oceano da sua paranóia, em "Freak show", cuja letra encerra todo um manifesto de intenções: “‘Apenas somos iguais no túmulo e na escuridão', disse um homem cuja cabeça foi mordida por um tubarão. Agora, se me perguntam porque é que eu continuo com tudo isto, duvido que saiba a resposta, por isso apenas faço um palpite: ‘Ter só metade da boca pode não ser grande coisa, mas ainda assim chega para metade de um beijo’”. E, da sua boca arrepanhada, o rosto erguido para o alto num esgar de súplica, tal qual o "Homem-Elefante", de David Lynch, desprendeu-se o horrível ruído. Derradeiro testemunho de uma humanidade perdida.

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